BELEZA PERDIDA






O carro a aguardava em frente ao prédio de três andares, sem energia elétrica. Desceu lentamente o último lance de escada apoiada em um corrimão antigo e lascado. Sentiu medo de cair e achou que não conseguiria chegar até a rua. Seu corpo parecia muito pesado e colado ao chão. Cada passo era fruto de um esforço sem medida. Finalmente, avistou o táxi.

Seguiram para o aeroporto. O rádio sintonizado em uma estação de esporte mostrava a entrevista do novo técnico de futebol. O motorista aproveitou para comentar:

- Que vexame este último jogo da seleção! Perder faz parte, mas não se pode entregar assim os pontos! É preciso lutar! Se perder, tem que perder bonito, não acha?

Carolina estava quieta e o homem imaginou que ela não prestava a menor atenção no assunto, mas de repente, aquela moça perguntou:

- Como se faz para perder com beleza?

O motorista não demorou a responder:

- No futebol é mais fácil. Basta jogar o que se sabe. Na vida acho que é diferente. O que a gente sabe, muitas vezes, não adianta nada.

A mulher surpreendida por aquele breve diálogo balançou a cabeça em sinal de concordância. Seu pensamento estava de volta à mensagem de Henrique na secretária eletrônica. De tanto ouvi-la, repetia para si mesma: "não adianta fugir!".

Era difícil decifrar o que sentia por ele. Uma parte dela achava-o leviano demais. Por outro lado, verdadeiro. Ela oscilava entre seu amor e o medo de amar tanto. Seria medo ou raiva? Diversas vezes desejou odiá-lo. Em outros momentos, apenas esquecer. E na maior parte do tempo, tudo se resumia a algo tão único e intenso que a transportava do céu para o inferno, ou o inverso, em segundos.

Uma dor intraduzível a invadiu por não suportar viver ao seu lado sem garantias. Ele bem que tentou mostrar que não se pode controlar nem garantir coisa alguma. Carolina tinha fome de segurança e Henrique, sede de vida. Uma combinação improvável. E quando tudo era desencontro, Henrique parecia se entusiasmar ainda mais e dizia:

- Você não vê que isto é o melhor da vida? A gente contraria tudo que seria esperado! Você me pergunta a todo instante: é amor? Claro que é! Mas vai além! É vontade de amar desse jeito, na contramão.

Carolina, acuada, apelou para a ironia:

- Se fôssemos sócios em uma empresa seria mais seguro.

- Você apenas se permite brincar quando não sabe o que fazer. Nem a brincadeira você aproveita! E perde um tempo danado com este fantasma. Teus dias escapam ralo abaixo quando não se sente confortável e segura. Vale a pena viver sempre tão à margem? Contentar-se com o mínimo ao invés de querer mais da vida?  

Ela tentou discordar, defender suas idéias, tecer inúmeros argumentos consistentes, mas sabia que, no fundo, ele tinha razão. E este era o verdadeiro problema entre eles. Henrique parecia estar sempre correto em suas colocações, embora não fosse nem um pouco racional e se lançasse na vida sem pensar no futuro. Talvez, nem ao menos no dia seguinte. A única coisa que importava era o momento a ser vivido.
    
E o que ele disse a seguir ocupou um canto sombrio da sua alma:

- Você me lembra uma criança medrosa que só coloca o pezinho na água quando tem diante de si todo o mar. Pare de molhar só os pés! Entre nessas águas! É mais simples viver do que ter medo.

Carolina sentiu os pés apertados dentro das sandálias de tiras finas. Odiou ser tão concreta quando ele era pura abstração e falou com muita raiva:

- Você faz tudo parecer simples! Tenho tanto medo disto. Sempre achei a vida um mar de complicações. Aí vem você e simplifica tudo que eu julgava complexo. Tenho medo de perder o caminho de volta para mim mesma se um dia você for embora. Eu já não sei quem sou sem você.

- Isso não é verdade. Você não corre riscos.

Carolina se perguntava como ele conseguia falar sem rodeios, principalmente as coisas mais difíceis e sem o menor esforço. Ele não sofria? Era apenas ela imersa em fragilidade? Quando se zangava dizia que ele era radical, mas o admirava tanto que às vezes chegava a perder o sono só para olhá-lo ao seu lado enquanto dormia. Um dia, Henrique pediu:

- Não me olhe mais assim ou seremos dois a perder o sono! Não sou melhor do que você, nem quero sua devoção!

Desde aquele pedido sentiu que algo dentro dela havia se quebrado. E precisava descobrir o que era no caminho de volta para si mesma.

O som do celular a assustou. Atendeu por reflexo. A ligação estava horrível e a voz dele soava longe:

- Você vai fugir...

Carolina seguiu o impulso, abriu a janela do carro e jogou o aparelho. O motorista interveio:

- Quer que eu pare o carro? 

E enfim, sua resposta: 
    
- Quero descobrir como se perde bonito.





(*) Imagem: Google


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Dolce Vita
Enviado por Dolce Vita em 02/09/2010
Reeditado em 05/09/2010
Código do texto: T2473914
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