A LENDA DOS CANAVIAIS

Kioko olha para a terra que se aproxima e seu coração dispara, daqui a poucas horas estará adentrando a soleira de uma casa, e encontrará seu companheiro, a quem recebeu sem conhecer-lhe as maneiras, desposou um homem jovem e bonito que lhe escrevera, dizendo de sua solidão e pelo olhar sincero da foto que enviou ela ficou cativada, e assim foi que seguiu para o desconhecido.

Debruça-se na amurada do grande navio fica absorta em seus pensamentos e não presta nenhuma atenção nos que iguais a ela também estão ansiosos e medrados, pela nova vida nessa ilha tão famosa pela beleza e riquezas naturais.

Cada um que chega traz dentro de si a esperança de uma vida melhor e abundante, e tenta a todo custo livrar-se do fantasma das misérias das quais fugiram, mesmo sem saber ao certo para onde estão indo, o que lhes reserva a nova estada.

Lembra-se de suas famílias, seus pais, filhos e amores e os corações adoecem um pouco, muitas moças como Kioko, estão casadas com desconhecidos, geralmente trabalhadores dos canaviais do Havaí, ilha administrada por assim dizer por americanos.

Muita gente desce do navio e o barulho das vozes se procurando e chamando é ensurdecedor, misturado com o cheiro do cais, e os mendigos que pedem tanto quanto as prostituas se oferecem.

Kioko se assusta um pouco, acostumada a uma vida pacata numa província no interior do Japão, tudo parece que roda em sua cabeça e tem uma inicio de vertigem mas é amparada por um marinheiro de olhos claros que lhe sorri e leva até uma sacaria, lhe fazendo sentar-se um pouco, serve um copo de água que trouxe não sabe ela de onde, e pergunta em fluente japonês a quem ela procura, demonstrando ser fato comum mulheres sozinhas atracarem nesse porto.

Ela lhe mostra a certidão de casamento e o visto do governo, também cartas de seu esposo o Sr. Hiroshi, além é claro de uma foto em branco e preto velha e amarelada pelo tempo.

O jovem americano pediu a ela que aguardasse que iria procurar por Hiroshi, e realmente menos de quinze minutos depois chegava ele acompanhado de um japonês gordo e bonachão muito alegre que explicou a Kioko que Hiroshi não pode vir recebe-la porque era seu turno na plantação e que os patrões não liberavam uma força de trabalho nunca.

Ela ficou visivelmente decepcionada, mas Sr, Matsuro tratou de dissipar a tristeza da moça lhe apresentando outras três que da mesma forma que ela não seriam recebidas por seus maridos.

Assim logo ela se sentiu melhor e iniciou agradável conversa sobre a viagem com suas co-irmãs.

Depois que Matsuro sam apresentou aos oficiais da alfândega os documentos das mulheres japonesas foram todos liberados e seguiram viajem até os confins da ilha, o trajeto foi feito em um grande carroção onde outros também estavam e cantavam canções populares nipônicas, causando uma sensação forte em todos que chegavam e descobriam uma pequenina parte de sua terra e tradição além mar.

Assim que se liberados pelos soldados americanos as mulheres receberam colares que representavam a forma de serem consideradas bem vindas em terras nativas.

Acharam graça naquele gesto simples e acolhedor.

Enquanto o carroção rangia na terra batida Kioko divagava em pensamento, hora buscando os seus pela lembrança de seus dias até aqui hora buscando imaginar como seria daqui para frente, estando em terra estranha, na convivência de japoneses, como poderia ser daqui a alguns anos, poderiam voltar para casa ou ficariam enterrados para sempre aqui, sentiu medo, medo do futuro, medo de não mais encontrar seus familiares, medo de não conseguir se adaptar a tantas novidades, medo de não encontrar em Hiroshi o companheiro que sonhou.

O PALÁCIO DE KIOKO

Chegam num vilarejo em meio a imenso canavial, as casas pequeninas quase palhoças se escondem umas das outras, por pequenas cercas de paus, madeiras colhidas das árvores distantes, pequenos troncos e galhos retorcidos, formando uma paisagem burlesca e pobre, algumas plantinhas espalhadas e quase mortas de sede, deixando claro tratar-se do jardim de um homem solteiro.

Kioko sorri sozinha, e pensa que em alguns dias tudo ali será exuberante, florido e perfumado para que quando seu querido vir do trabalho encontre um ninho aconchegante para seu descanso.

Escondeu dentro de si uma amarga decepção por constatar que a miséria tambem grassava esse lugar tanto quanto de onde estava fugindo.

A casa não tinha fechadura e a porta estava presa por uma corda impedindo que abrisse de todo e deixasse a mostra a intimidade do lugar, ela chegou bem próxima e sentiu o frescor que vinha lá de dentro, olhou pela fresta e a escuridão reinava, mas pode sentir suavemente o perfume de gengibre como se um pote de conserva estivesse ficado aberto sobre a mesa, talvez o dono saísse atrasado.

Assim era Kioko, sonhadora, com tão pouco que havia percebido já construiu uma estória, dando sempre certa leveza para a dureza que a vida lhe apresentava, tão nua nesse momento.

Andou em volta da casa como se faz num reconhecimento, olhou que um pássaro cantava alegremente pulando nos galhos, sem notar sua nova companheira de lugar, olhou para o chão e tirou os sapatos para melhor sentir a terra sob os pés, suspirou e desejou ser feliz, porque tudo faria para espalhar felicidade.

Estava um dia quente, e o céu azul forte, o sol amarelo, o ar parado, enfim resolver entrar, conhecer por dentro o cômodo que agora seria seu palácio, pelas proporções externas constatou tratar-se de minúscula casa, da qual ela daria aspecto de nobreza, porque um lar é nobre quando seus donos o são, mesmo que morassem sob a arvore ali adiante, seria um lar nobre, estava decidida.

Pegou a mala deixada por Sr. Matsumoto, quando ela descia do carroção e abriu a porta de vez....

Abriu a janela e mais uma e a claridade invadiu curiosa os domínios que agora receberiam os cuidados dessa senhora, caprichosa mas gentil.

Viu que tudo estava arrumado, impossível seria estar desarrumado, porque apenas uma fogão de barro, uma mesa tosca, duas cadeiras e uma cama compunham o mobiliário, as roupas do senhor estavam penduradas em uma corda acima de sua cabeça e ela assustou-se com elas, pois lembravam fantasmas, e como eram poucas mudas ela teve idéias de cozer roupas para ele.

De repente sentiu fome, e foi arrumar um almoço rápido, procurou, procurou e nada, a casa assemelhava-se a uma igreja, não havia comida, ficou pensativa e se sentou, viu que a mesa tinha uma gaveta, puxou estava pesada; Encontrou tudo que gostava de comer, ela havia escrito a ele numa dessas conversas, que gostava de comida moderna, enlatadas, que os americanos e ingleses fazem tão bem, pois ali tinha vasto farnel dessas latas que ela comeu com gosto, mesmo sendo bastante salgados.

Satisfeita Kioko resolveu descansar, a viagem de navio fora extenuante, tanto pelo tempo que durou, quanto pela aflição que sentia só vendo água por todos os lados, ela que era notadamente uma alma de fogo.

Dormiu pesado, sonhou que estava em uma avenida larga e que casarões margeavam essa avenida, por onde passavam muitos cavaleiros e charretes com muitas damas lindamente vestidas, cavalheiros elegantes andavam rapidamente como se seguissem para compromisso importante.

Olhou para uma mulher em especial sentiu que a conhecia, mas não soube precisar, estava encantada com tudo que via, um barulho forte um estrondo e ela sentou-se na cama.

Escuridão total, acordou no meio da noite e uma tempestade batia forte no telhado da cabana, não fazia idéia da hora e somente pode pensar que o Sr.Hiroshi não havia chegado.

Choveu muitas horas seguidas, e Kioko não conciliou mais o sono, ficou apreensiva, sem poder sair, e sem poder se movimentar no pequeno recinto porque imprevidente não pensou que pudesse chover, esqueceu que Hiroshi lhe escrevia sobre as chuvas que caiam de repente.

Depois de mil horas o dia começa clarear e a chuva amaina, ela se levanta, abre a porta e tudo está molhado e viçoso, novamente abre a gaveta e se prepara para fazer um chá, coloca a lenha no fogo para a fervura da água e algo lhe incomoda, angústia e um aperto no peito inexplicáveis.

Seria por ter passado a noite sozinha, ou por que não conheceu seu parceiro, ou seria pela vastidão daquele lugar vazio de gente onde a natureza foi generosa, não poderia explicar, apenas sentir, algo não estava bem, não adiantava mentir para si mesmo.

HIROSHI

O dia tornou-se claro e quente como no anterior, Kioko aos poucos foi se acalmando e acreditou que seu mal estar era fruto de sua mente nervosa por tudo que vivia, enquanto sentada tomava mais uma refeição relia as cartas e revia a foto de Hiroshi.

Era ele um homem com alguns anos mais que ela, como lhe dizia a foto, devia ter uns 28 anos e ela 23 anos, formariam um par interessante, pois ela era típica no físico e no temperamento, mesmo escondendo bem guardado um leão em seu interior, sempre conseguiu ser igual às mulheres de seu povoado, calma e ardente ao mesmo tempo.

Hiroshi era mais parecido com pescadores, pois além dos olhos puxados seus cabelos não eram de todo lisos como os dela, por isso demonstrava que sua geração antecessora e outras mais sofriam a atuação do vento sobre seus rostos.

Enquanto conjectura consigo mesma ouviu que alguém chegava, pelo barulho de vozes que se despediam, foi até a porta e viu que um homem desceu da carroça e se dirigiu a casa, ela ficou esperando, era um homem muito diferente de Hiroshi e ela teve medo que algo lhe tivesse acontecido.

O visitante lhe olhou grave e ela sentiu que ia desfalecer, ele por fim lhe perguntou:

--Kioko?

Ela pensou, devo estar vivendo um pesadelo, sei que ele vai me dar uma notícia ruim sobre Hiroshi, mas porque deveria ser assim, sem que eu lhe conhecesse antes, porque ficaria viúva tão cedo, devo mesmo ser um espírito sem nenhum merecimento; Enquanto se assombrava não notou a expressão preocupada dele, que pensava por sua vez.

--Como vou contar a ela, não é algo fácil, acabou de chegar de milhares de quilômetros, ficará arrasada, é possível que adoeça e morra, o que farei então, melhor esperar passar algumas horas, vou conversar sobre o acidente que houve ontem e deixar no ar.

Então ele entabulou uma conversa sobre um trágico acidente que aconteceu numa catarata ali próxima, onde uma criança havia caído e um companheiro deles um canavieiro havia tentado salvá-lo.

Enquanto falava notava que as feições da moça foram obscurecendo e um rito de dor foi se formando, considerou que ela compreendeu tudo, que talvez não devesse entrar diretamente no assunto e sim esperar que ela inquirisse, assim fez.

Ela por sua vez, sentiu que o chão se abriu que todo o sonho que tinha acalentado nesses oito meses desaparecia como se fosse um encanto, sentiu que não poderia mais suportar e controlando todo o tremor de sua voz, perguntou:

--Hiroshi, morreu quando tentou salvar o menino?

O homem deu um passo para trás e fitou Kioko com verdadeiro horror.

Percebeu que ela sofreria muito porque já tinha sentimentos por Hiroshi, mas não poderia mentir, até porque o tempo passa rápido para ele, muito mais que para ela, foi com essa conclusão triste que disse com muito cuidado e muito devagar.

--Não, Kioko, Hiroshi não morreu, porque não esteve na cachoeira, eu apenas lhe conto o que escutei, mas com o golpe que vou lhe dar, é possível que Hiroshi morra para você agora.

Ela nada entendeu mas estava aliviada, ele estava vivo, então perguntou rapidamente sem dar tempo dele pensar.

--E onde está que não vem para sua casa, não vem conhecer-me?

Então ele junta as mãos, dobra-se em reverência e lhe diz cerimoniosamente:

--Eu sou Hiroshi.

Kioko, ergueu a cabeça e perguntou?

--Por que me enganou, eu poderia ter vindo do mesmo jeito mesmo sabendo quem era o senhor em verdade.

Ele sentiu na voz da moça um rancor que lhe cortou a face, e ao olhar para ela, não a viu mais, soube então que acabou de perder uma chance de vida com ela, perdeu para sua vaidade que não permitiu ele se mostrasse como era atualmente.

Então como ultimo argumento respondeu:

--Se visse uma foto minha de hoje, com minha idade não aceitaria.

Recebeu a sentença que ela decretou sem nenhuma palavra a mais.

--Então Hiroshi, que poderia ser meu pai, eu viverei aqui porque não há onde eu possa ir, cuidarei da sua casa e dos seus pertences, cuidarei do senhor quando estiver com saúde e com mais cuidado quando estiver doente.

Aceito o que o céu me reservou, porque eu também fui imprudente, outras já passaram por essa desventura, mas eu farei com que os dias aqui, passem rapidamente e que assim logo eu me veja livre, minha alma voará como aquele pássaro que agora nos observa, e quando esse dia chegar o senhor saberá que nunca senti desprezo igual por ninguém que eu conheça.

Ninguém saberá do meu engano, apenas as paredes desta choupana e as arvores, nem mesmos as folhas novas conhecerão esse segredo.

Não espere de mim um sorriso, ou um afago, porque não terá, respeito a sua casa como respeito à casa do meu genitor, e assim será.

Caso o senhor me afronte levarei seu caso as autoridades, e por hoje saia, volte em três dias, porque eu já estarei refeita.

Entrou na casa e ele a seguiu, ela pegou a foto em cima da mesa, uma foto dele mesmo, de quando era jovem e queimou, o papel retorceu enquanto ela olhava a brava vermelha consumir seu sonho por inteiro.

Hiroshi rodou nos calcanhares e saiu, não pegou nada, de onde estava, silenciosamente partiu por três dias.

Kioko, pegou um tição e mexeu as brasas muito tempo, não queria pensar, nem viu que a tarde chegou e depois à noite, parecia que a noite seria sua amiga predileta.

Pegou sua mala, abriu e tirou de dentro de um lenço de seda vermelho, um longo alfinete de ouro, depois tirou algumas flores secas perfumosas, tirou um bule de chá de rara porcelana, e sementes variadas, tirou por fim um pó branco, ficou segurando esse ultimo por mais de meia hora.

Era um veneno poderoso que poria fim a sua desdita rapidamente, por outro lado levaria a desonra a sua família por séculos e séculos.

Guardou somente o pó novamente, o resto espalhou pela casa.

Não comeu mais nessa noite, deitou-se e dormiu um sono de chumbo, viu-se trabalhando em um trabalho escravo, suas vestes eram de couro de animal e seus cabelos desgrenhados, corpo sujo e olhar perdido.

Acordou tarde, com muita sede, nem sabia onde encontraria água, mas saiu com uma vasilha a procurar, como era amante da natureza, aguçou o ouvido e saiu até ouvir o som da água passando entre alguns arbustos baixos.

Chegou perto da água e molhou os pés, uma deliciosa corrente de água fresca, sua viagem não estava de toda perdida, pensou, podia desfrutar da natureza sem satisfações, entrou na água e banhou gostosamente, depois saiu pegou pequena flor colocou nos cabelos molhados e à medida que se afastava do riacho, ouviu um gemido, parecia de gente.

Vou apurando o local exato e quando estava chegando quase pisou num corpo estendido, era Hiroshi que dormia, completamente bêbado.

Ela não teve duvida, jogou a água na cabeça dele, ele acordou e endireitou-se e ela alfinetou com gosto.

--Além de velho, mentiroso ainda bêbado, Valei-me os ancestrais que me olham agora.

Ele ficou envergonhado do seu estado, mas nada podia fazer estava em situação lamentável de embriaguez e de fraqueza pela falta de alimentos já há pelo menos dois dias, pois enquanto ela estava desembarcando ele estava trabalhando horas tiranas para que seu salário fosse aumentado, queria lhe dar um presente valioso, pela coragem de vir de tão longe morar com um desconhecido e pobre homem.

Quando finalmente conseguiu ficar em pé ia seguir para o povoado novamente, afinal ainda faltava dois dias para poder voltar, conforme Kioko havia decretado.

Ouviu a voz metálica dela as suas costas.

--Vá para casa infeliz, e ponha-se decente, como deve ser um homem da sua raça.

Nem levantou a cabeça e obedeceu, mesmo com tanta ironia, sentiu que o gesto era amistoso

Hiroshi respeitou todas as vontades da companheira, e fez uma segunda cama para ele, raras foram às vezes que estiveram juntos, ela cuidava do casebre com esmero, agora a roupa dele era abundante e limpa, a mesa tosca era acompanhada de quatro cadeiras que ela própria fez com os apetrechos que ele trazia, tambem forjou de troncos mais dois bancos e de outros dois cavou profundamente até formar uma cova onde plantou flores nativas, fez com os troncos mortos guirlandas que colocou a volta da casa e assim as flores e folhagens formavam uma parede viva maravilhosamente linda.

Cozeu toalhas e vestidos para si, lenços de bolso e lenços de cabeça que começou a vender para os outros trabalhadores, a comida que ela preparava era alquímica de tanto que gostava do que fazia.

Certa vez disse a ele que queria trabalhar no canavial, queria ter seu dinheiro assim, podiam viver com mais conforto, esse pedido incomodou muito Hiroshi que não considerava prudente uma mulher manejar uma foice, tentou convença e por fim prometeu arrumar outra colocação para ela.

Depois de duas semanas ele chegou alegre e disse que o missionário da vila aceitava ela como cozinheira já que a que estava com ele adoecera gravemente, então Kioko agora também teria renda.

Estavam sempre acompanhados um do outro nas reuniões sociais e festas que às vezes aconteciam, eram alegres e comunicativos, muito cooperativos, conseguiam até despertar inveja dos amigos, pois que supunham formassem um par perfeito.

Eles não brigavam nunca, cada um cuidava de sua obrigação como se fosse um desafio provar para o outro que conseguiria fazer o melhor diante das circunstâncias, e essa convivência passou a ser agradável aos dois, se divertiam até quando um pegava uma falha do outro e valorizava o erro, então quem havia pecado prometia que encontraria algo mais grave no companheiro.

Irmãos que se uniam de forma misteriosa, ele contava com 46 anos quando ela chegou e seu aniversário estava chegando, faria os famigerados 47, não ia dizer a ela, assim não teria que ser humilhado.

Que ilusão, ela já sabia tudo dele, até pelo avesso, por isso no dia certo, ela fez uma comemoração, convidou os amigos e as famílias para que viessem jantar com eles, claro que não poderia fazer uma festa em sua casa, então combinou com o missionário e ele cedeu o lugar onde faziam as reuniões dominicais.

Era domingo, tudo conspirava e assim depois de discutirem a ordem do dia o tal missionário chamado Kelvin, convidou o aniversariante para que discursasse.

Hiroshi quase teve um colapso e olhou para Kioko que fez cara de pouco caso, como dizendo, grande coisa, ele subiu na tribuna e as palavras não saiam, ficou lá plantado, então ela admiravelmente corajosa foi em seu socorro.

Pegou de instrumento musical que estava em reservado lugar e cantou uma linda canção japonesa em sua homenagem, todos ficaram emocionados.

E o pobre homem se sentiu inferiorizado até a raiz dos cabelos, num mistura de feliz e desgraçado, porque afinal o canto foi para ele, e falava de uma promessa de ventura, igual a que ele acalentava desde o dia fatídico da revelação de sua mentira.

ESPÍRITOS AFINS...

Naquela noite todos estavam alegre e a bebida que sempre se espalha nas festas fez corar as faces de Kioko que sem costume e afeita bebeu para brindar o aniversario de Hiroshi logo se desfez da sua parte em uma janela próxima.

Ele por ter sido flagrado uma vez controlou e bebeu tão pouco que os companheiros fizeram troça mas ele não ligou e ficou firme no propósito de estar sóbrio a noite toda.

Quando chegaram em casa desceram do carroção que levava os canavieiros para suas casas e quando o silencio os envolveu, Hiroshi tomou Kioko pela mão e adentraram a pequena mansão, com o consentimento dela, estiveram em um mundo desconhecido dos mortais, enquanto as naves de seus corpos dançam um sobre o outro seus espíritos passeavam pelo cosmo afora, num êxtase que somente as almas complementares podem sentir.

O dia os encontrou adormecidos, pernas sobre pernas, cobertos pelos cabelos de Kioko e amparados pelos braços de Hiroshi, lentamente mexeram-se e sentiram o suor que ainda brotava deles.

Ele levantou-se foi banhar-se no riacho, ela não se levantou permaneceu olhando para o teto, e depois fechou lentamente os olhos para o mundo.

Foi viver longe dele, em outro plano.

Ao voltar constatou que ela lhe dera um presente derradeiro e partira, ficou horas ao lado do corpo até que ele enrijece de todo, só então saiu para avisar as pessoas que ficaram surpresas e tristes, pois Kioko havia plantado a harmonia naquele lugar abandonado pelos anjos do céu.

Passaram-se três meses da viuvez de Hiroshi, quando um navio chegou vindo com japoneses a bordo, estes estavam cansados mais que os que chegaram das outras vezes, trouxeram um desalento tão grande, pois um navio intermediário havia soçobrado em água geladas e pouquíssimos dos passageiros sobreviveram, os que chegaram trouxeram noticias das mortes e os pertences de todos.

Foi assim que certo dia na reunião da missão, chegou duas malas, e uma frasqueira pequena, chamaram pelo nome de Hiroshi, que prontamente se levantou, pegou as coisas sem entender.

O mensageiro que os trouxera lhe deu os pêsames e relatou que sua noiva Kioko Shimura havia perecido no navio que afundou exatamente há um ano e três meses atrás.

Contam que Hiroshi enlouqueceu e nunca mais voltou para casa, até hoje depois de sua morte já há mais de século e meio ele perambula pelos canaviais sem descanso, se descabelando, e implorando para ver Kioko mais uma vez...

OWARI

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