Ursos
Silêncio, apenas o som de alguns carros e buzinas ao longe eram a melodia que soava naquele quarto, silêncio que logo foi quebrado com o soar do alarme. Apitou duas vezes, então se sintonizou na estação de notícias, como era programado a fazer todas as manhãs.
-São seis e dois da manhã, dia 28, quinta-feira, a última do mês de setembro! E o tempo hoje será chuvoso, uma frente fria paira sobre nosso estado e isso poderá se estender até o fim de semana, ago...
A frase é interrompida com um ‘click’ seguido de um barulho de cobertas caindo do chão. Um homem, beirando os 30 anos, se levanta. Pisa no assoalho gelado, sente frio, mas não se incomoda, ainda está com as roupas da noite anterior, ao se levantar completamente, sente uma dor de cabeça fortíssima, como se duas agulhas perfurassem sua têmpora lentamente. Com esforço, tira a camiseta já amassada e cheirando a cigarro, bebida e fumaça. Ao tirar a calça jeans, quebra um copo de vidro que estava descansando ao lado da cama, um dedo de whiskey barato já aguado pelo gelo derretido se derrama no chão.
Passa pelos corredores sem ouvir nenhum barulho, apenas dos seus passos solitários no assoalho infestado de cupins. Entra no banheiro e passa direto pelo espelho sujo, já é um costume fazê-lo. Liga o chuveiro frio e deixa a água cair em seu rosto por alguns minutos, isso alivia um pouco a cabeça. Fica embaixo da água sem se mexer por muito tempo, até ouvir um barulho vindo dos fundos da casa, onde ficam os quartos. Desliga o chuveiro, que mesmo ao ser fechado com toda força, ainda continua gotejando. ‘ploc, ploc, ploc, ploc”.
Ele se deixa hipnotizar pelo barulho da água caindo no azulejo, até ouvir outro barulho vindo dos quartos, seca-se devagar, veste um jeans que estava pendurado na pia, e sai do banheiro pisando forte. No caminho, coloca uma camisa que estava pendurada na maçaneta de umas das portas, ouve barulho de passos leves em sua direção. Pára por um instante e espera. Uma pequena criança, cinco, seis anos, se aproxima dele. O olhar é vazio, o pequeno esbarra no homem, mas não diz nada, apenas anda em direção à cozinha, como um zumbi.
- Bom dia, filho. – diz o homem, mas não obtêm resposta.
O menino arrasta um urso negro, sempre andava com aquela pelúcia velha para todos os lados, isso sempre lhe chamou a atenção em seu filho. O menino de longe, parecia apenas excêntrico, mas apenas o pai o conhecia como ninguém. A criança nunca falava, e estava sempre com aqueles olhos escuros e vazios, como se tudo que visse fosse processado não em seu cérebro, mas em um processador de carne.
O homem andou até a cozinha atrás do filho, o viu sentado à mesa com uma tigela vazia em sua frente, abraçado ao seu urso.
O pai vai até a geladeira e pára por alguns instantes, sua cabeça lateja, mas este não é único motivo de ter parado. Olha por alguns segundos uma folha de caderno rasgada nas pontas, presa à porta com um ímã em formato de um ursinho. Um ursinho negro.
“John, não se esqueça de pagar o menino do jornal, o pobre coitado já entrega jornal de graça em nossa casa há meses. Vou sair cedo hoje. Precisamos muito conversar. Fran.”
John puxa a folha de caderno da geladeira, e a coloca no bolso de sua calça. Abre a geladeira, parcialmente vazia, pega uma caixa de leite já aberta, e fecha a porta.
Caminha até a tigela vazia, e derrama um pouco de leite nela. Olha para a mesa, em cima de geladeira, a pia, mas só no balcão encontra o que estava procurando, a caixa de cereais do filho. Despeja uma boa quantidade, derrubando alguns grãos para fora do recipiente. O menino ainda abraça forte seu ursinho. Anda até as gavetas e pega uma colherzinha colorida e coloca ao lado da tigela. Sem dizer uma só palavra, o pequeno lentamente apanha a colher e começa a comer. John olha para o filho, os cabelos negros, como os seus. Já o nariz alongado e as bochechas rechonchudas são de sua mãe. Mas o que mais lhe prende são os olhos da criança. Olhos escuros, levemente amarronzados como um tronco de árvore molhado. A cor, o formato de seus olhos são herdados de John, porém, ele parecia nunca usá-los. Vivia com os olhos abaixados e vagos.
A colher do filho sobe e desce inúmeras vezes, até que para. John só para de olhar para os olhos do menino ao ouvir a colher bater na tigela uma última vez. A criança levanta, agarrada a seu ursinho e anda de volta para o quarto. John levanta rapidamente, segura o ombro do filho.
-Vou passar o dia fora hoje. – Diz, medindo suas palavras. – Tem comida dentro do fogão. Vou te trancar aqui, pode jogar videogame, ver TV o quanto quiser. Não atenda à porta. Volto à noite.
O filho não havia nem ao menos levantado os olhos do assoalho, apenas consentiu com a cabeça. Desvencilhou-se do pai e continuou andando até o quarto.
-Te amo, Pete. Tome cuidado, filho. – disse bem baixo. O garoto parou por um segundo, mas logo continuou andando. Pareceu ouvir o que pai disse, mas não ligar.
Johnny pegou as chaves de seu carro na mesinha da sala, trancou bem as portas e entrou no carro. Ali ficou por alguns segundos, pensativo. Amava o filho, mas a presença dele o incomodava. Como se estivesse dividido, como se sentisse o vazio que Pete sentia. Deixou a cabeça vagar até a latejar de novo. O estômago grunhiu, precisava comer algo. Vestiu a jaqueta que estava no banco do passageiro e lembrou-se de checar os pneus, havia garotos na vizinhança que adoravam esvaziá-los. Saiu do carro e chutou cada pneu, estavam em ordem. Antes de voltar ao carro, olhou o porta-malas fechado. Não se lembrava de quando o tinha aberto, mas o frio que sentiu nas mãos ao tocar a lataria o fez desistir, não valia a pena.
Voltou ao banco do motorista e fechou a porta. Um pequeno papel velho estava saindo do porta-luvas. John o apanhou e colocou no bolso de sua jaqueta, deu a partida, esperou o motor pegar, engatou a ré e embicou para a rua. Olhou para sua casa mais uma vez, engatou a primeira e seguiu seu caminho.
Dirigir era uma de suas paixões. Quando o fazia, se abstraia do mundo, prestava atenção apenas na estrada e em nada mais. Quando dirigia, não tinha problemas, sua vida era perfeita. Alguns minutos depois, estacionou ao lado de uma lanchonete. Era a primeira que via aberta, em uma vizinhança nada amigável. John trancou o carro, receou em deixá-lo sozinho, mas uma pontada de fome o convenceu.
Entrou na lanchonete, e sem olhar para os lados caminhou até a cabine mais afastada da porta. Uma garçonete jovem e loira, com olheiras monumentais e cheirando a cigarro se aproximou. John a fitou por alguns instantes. Viu a apreensão da mulher, a expressão de tristeza disfarçada, o sorriso forçado, a maquiagem pesada. - com certeza trabalha aqui de manhã e nas ruas à noite – Pensou, pedindo um café preto e uma omelete.
Olhou a garçonete se virar, usava uma minissaia branca, do uniforme, bem curta. Talvez para atrair clientes à lanchonete, tornar suas refeições mais agradáveis. Notou em suas pernas algumas cicatrizes, uma lhe chamou a atenção. Era um corte profundo, uma marca antiga já. Talvez em sua infância, talvez em seu trabalho noturno, nunca se sabe. John divagou por muito tempo sobre a vida que a garçonete devia levar até ela trazer sua comida.
Murmurou um ‘obrigado’ e ignorou a garçonete tentando puxar conversa. Atacou sua comida com a voracidade de um animal, em poucos minutos já havia engolido sua omelete. Pediu outra, e outra. Comia sem nem sentir o gosto, era como se a comida caísse em um poço. Nem tocou o café, já não estava quente quando foi posto em sua mesa, com certeza não era café de hoje. Quanto John terminou sua quarta omelete, pegou a xícara de café e o tomou. O líquido desceu gélido pela sua garganta, mas isso não o incomodou. De forma alguma. O que te incomodava nesse momento era o olhar assustado da garçonete. Assustado, mas interessado. John a chamou com os olhos, ela trouxe a conta. Ele puxou a carteira do bolso, tirou algumas notas amassadas e deixou na mesa. Lembrou da cicatriz da menina. Tirou o resto das notas e as segurou com força. Ela veio se despedir, John colocou o dinheiro no bolso dela, sem a mesma o notar. Ela se despediu com um sorriso amarelo, ele, em silêncio.
Voltou ao seu carro, checou novamente os pneus. Estava apreensivo. E novamente parou por um tempo ao fitar o porta-malas. Caminhou até a porta do motorista passando os dedos pelo porta-malas, pela porta traseira, até chegar à maçaneta do motorista. Destrancou-a e sentiu um vento frio soprando seus cabelos. Olhou para o céu, estava muito nublado, lembrou-se da previsão; “o tempo hoje será chuvoso...”. Sentou-se, deu a partida e se foi novamente.
Dirigiu por horas, pegou ruas, estradas, rodou até sentir fome. Parou em um posto de gasolina, abasteceu. Depois levou o carro até a loja de conveniências ao lado do posto. Estacionou, e quando foi tirar a chave da ignição, sentiu algo prendendo seus dedos na chave. Olhou para as mãos, viu a aliança riscada pelo chaveiro. Fitou-a por alguns momentos, e logo se lembrou do papel que pendia para fora do porta-luvas que viu ao entrar no carro. O tirou do bolso da jaqueta e viu uma imagem velha, já amarelada, dois jovens abraçados, sorrindo como se nada os incomodassem. Como se fossem rei e rainha do mundo. Pensou se conhecia essas pessoas, tinha a impressão que sim, vagamente as conhecia.
Um deles era um jovem com os olhos marrom-escuro, rosto livre de barba, o cabelo da cor da penumbra cobrindo as orelhas e as sobrancelhas, era só isso que via de seu cabelo, pois estava usando um gorro verde. A menina abraçada a ele tinha os cabelos longos, igualmente escuros, caindo por cima de um dos olhos negros. Usava uma faixa nos cabelos, o que deixava seu rosto um pouco mais redondo. Tinha o nariz alongado e bochechas rechonchudas, rosadas. Usava certa maquiagem nos olhos, que dava a impressão de serem levemente puxados. Segurava um pequeno urso negro de pelúcia, novo em folha. John quase sorriu olhando o urso, tão deslocado no meio dos dois jovens apaixonados. Algo unia aquelas duas pessoas. John não sabia dizer o que era. Talvez fosse o urso, tão bem acomodado nos braços da garota, talvez fosse o modo de como os dois pareciam estar exalando felicidade. Ele teve inveja, teve saudade. Olhou o verso da foto, e viu algo escrito, com esforço, conseguiu ler;
“Meu Amor! Achei essa foto nossa do começo do nosso namoro, que nostalgia, não é? Você tinha me comprado esse ursinho, lembra?! Acho que foi o primeiro presente que você me deu. Não sei o que eu via em você, parecia um mendigo! Com amor, Fran!”
John leu e releu inúmeras vezes essas frases, e com firmeza, guardou a foto no bolso da calça. Deu a partida no carro e ouviu um barulho além do feito pelo motor. Ouviu um trovão. Lembrou novamente da previsão do começo do dia, iria chover. Assim que ele engatou a ré e voltou à estrada, gotas pesadas começaram a golpear o capô do garro.
“ploc, ploc, ploc, ploc”
John respirou devagar e continuou a dirigir.
John rodou por mais algumas horas na estrada, e a chuva o acompanhou, já era escuro quando encontrou uma pequena entrada de terra, quase invisível por conta da vegetação do local e das condições do clima. Virou o carro com cuidado e desceu esse caminho. Dirigiu cuidadosamente no barro molhado por volta de quinze minutos. Até que parou.
Desligou o motor, encostou a cabeça no volante. Ouviu chuva acompanhada da própria respiração por alguns minutos. Finalmente olhou para a mão esquerda e viu a aliança riscada novamente. Por fim, retirou-a do dedo, fazendo um grande esforço. O dedo já estava acostumado com o anel. Olhou dentro da aliança, e leu devagar o que via gravado;
“J.C.D. & F.M.D. Para sempre.”
Segurou a aliança na mão com força, e pela primeira vez ele chorou. Pela primeira vez permitiu-se sentir tristeza. Chorava quieto, segurando a aliança com força, as lágrimas corriam como as da criança que se sentia, talvez pela primeira vez em sua vida, chorou de verdade. As lágrimas frias escorriam sem parar por sua bochecha, molhando sua barba por fazer. Perdeu a noção do tempo enquanto chorava. Só voltou a si quando apertava a aliança tão forte que já havia rasgado sua carne e sangrado o pulso de sua camiseta.
Cessando às lágrimas, apalpou o bolso da calça. Sentiu dois papéis. Apanhou ambos e os colocou no colo. Colocou a aliança manchada de sangue de volta em seu dedo e pegou a foto novamente. Manchou o rosto da menina de vermelho ao fazê-lo. Releu novamente o bilhete. Limpou os olhos, manchando as bochechas. Sorriu em meio às lágrimas e ao sangue. Já havia se esquecido que era capaz de sorrir. Lembrou-se da fixação que ele e Fran tinham por ursos. Fran achava-os animais fascinantes, medonhos, sim, porém fascinantes. John sempre ria disso, acabou chamando-a de Ursa uma vez. O apelido pegou e logo passaram a se chamar assim, um apelido carinhoso. Mais uma lágrima correu no rosto de John, mas esta encontrou, ao cruzar sua bochecha, um sorriso.
Apanhou o outro papel que jazia em seu colo, era o bilhete de Fran que estava na geladeira. O sorriso logo se esvaiu. Desdobrou a folha de caderno e a releu. Olhou a data, Fran sempre colocava datas nos espaços que existiam nas folhas de caderno. Vinte e sete de setembro. O dia anterior. John gritou de desespero quando as lembranças do dia anterior, até agora reprimidas, voltaram à tona.
John acordou com o alarme, desligou-o e chamou por Fran, mas não encontrou a mulher. Encontrou o filho no corredor. Perguntou-o se ele havia visto a mãe. Peter não respondeu, apenas apertou seu urso com mais força. John não se importou com isso, Pete nunca falava com ele. Ao chegar à cozinha, leu o bilhete, fitou-o por alguns minutos e foi trabalhar.
John era enfermeiro, mas trabalhava em uma cidade pequena, portanto não havia muitos acidentes ou algo que lhe ocupasse por muito tempo no trabalho, então, com tempo livre de sobra, só pensava em Fran e o que ela tinha de tão importante para conversar. Haviam discutido muito no dia anterior, aliás, vinham discutindo muito há mais tempo do que ele conseguia contar.
John chegou em casa ao anoitecer, puxou seu chaveiro e destrancou a porta de casa. Andou até a cozinha, não encontrou Fran. Sentia fome, então pensou em preparar um sanduíche. Pegou o pão na dispensa, deteve-se por alguns segundos ao abrir a geladeira e olhar o bilhete novamente. Apanhou a margarina e os frios, fechou a porta, evitando olhar à folha de caderno. Abriu a gaveta de talheres e remexeu por alguns minutos procurando pela faca de manteiga. Não a encontrou. Olhou para o faqueiro em cima da pia, puxou a maior faca, que desencaixou do faqueiro com um barulho de lâmina. Olhou a lâmina por alguns segundos, seu brilho o hipnotizou.
Ouviu um barulho vindo dos fundos, ouviu passos no assoalho. Não se virou para ver quem era, provavelmente era Pete atrás de cereais. Não se virou nem mesmo quando ouviu a voz embargada de Fran;
-John... – disse ela, fungando.
- O que você queria conversar, Fran? – ele diz, segurando a faca mais forte.
-Eu vou te deixar. Vou pegar Peter e levá-lo para bem longe de você. Eu vejo como você olha para o seu filho, John, parece que a qualquer momento você vai matá-lo. Ele não tem culpa de ser do jeito que é, eu o amo do mesmo jeito. Você mudou depois que ele nasceu, John, mudou muito. Tenho medo do que você se tornou. Tenho medo de acordar e ver Pete morto em seus braços. Eu vejo o ódio em seus olhos, o homem que eu amei já não existe mais, eu olho em seus olhos e não vejo mais o brilho que via, vejo olhos opacos, que só mudam quando você olha para seu filho com aquela expressão doentia... – ela despeja, em prantos desesperados.
- Fran, não fale o que você não entende! – ele altera a voz, socando a pia com força.
- EU ESTOU COM NOJO DE VOCÊ! – Ela grita, chorando sem parar.
John se entregou aos seus instintos, em um gesto rápido, avançou em Fran, que chorava incessantemente, segurou seu pescoço com uma mão e com a outra a apunhalou no estômago. Fran parara de espernear e o olhava com os olhos arregalados cheios de lágrimas, olhos repletos de surpresa, desespero, e dor. Principalmente dor.
Ela agarra os ombros de John com força, este que, mordendo os lábios, puxa a faca do corpo de Fran e a apunhala novamente na barriga. Um fio de voz incompreensível sai da boca da mulher enquanto ela solta os ombros do marido devagar. John a golpeia outra vez, desta vez, no peito, e solta a esposa, que cai no chão com um baque, em uma poça de seu próprio sangue.
John solta a faca pingando sangue, e se ajoelha ao lado da esposa. O sangue escorre pelo assoalho, John abaixa a cabeça e cochicha em seu ouvido;
- Psss, psss... Calma Fran, tudo vai ficar bem, você não vai me deixar e eu, você e o merda do nosso filho vamos viver uma vida maravilhosa. Eu não ligo que o moleque seja um doente, afinal, eu sou um doente também. Não ligo do moleque nunca abrir a boca, não preciso de palavras para amá-lo também. Amanhã nós vamos viajar e tudo vai ficar bem, a gente só precisa de um tempo fora da cidade, pra espairecer, minha Ursinha, está tudo bem, tudo bem comigo, com você, com todos nós...
Ele levantou a cabeça, beija os lábios da esposa, fecha os olhos dela e olha o sangue. O sangue escorreu até o corredor, e agora está nos pés de uma criança. Uma criança de cabelos e olhos escuros, um nariz alongado e bochechas rosadas. Pela primeira vez Pete olha o pai nos olhos, John vê o que Pete vê. Um vazio. Um nada. Escuridão profunda. O menino nada diz, apenas dá meia volta e continua andando no corredor, sempre agarrado a seu ursinho negro.
John vai até o porão, apanha um grande saco, uma pequena corrente que prende o ferrolho da porta, muitos metros de corda e um esfregão. Apanha as coisas, mancha todo o porão de sangue sem dizer uma palavra. Sem se expressar nenhuma vez. Apenas pega o que precisa e volta à cozinha.
Com carinho, John levanta o corpo sangrento de Fran do chão e a coloca na mesa. Limpa o sangue com o esfregão, e olha Fran novamente. Ela está linda, sempre foi linda. Hoje estava usando uma faixa na cabeça, uma faixa com um ursinho desenhado. Para John, ela era a imagem da perfeição, jazendo ali na mesa. Abriu o grande saco, e com muito cuidado, colocou a esposa dentro dele, e antes de amarrá-lo, ele a beija mais uma vez, com paixão, toca suas bochechas de leve, apanha a corda e a corrente e se dirige ao carro.
John só parou de gritar quando não conseguia mais emitir nenhum som. Se lembrava agora. Havia matado a esposa. Havia matado a única pessoa que já amou em toda vida. Saiu do carro em uma chuva torrencial e andou até o porta-malas. Agora se lembrava o que estava lá. Abriu a tampa e viu um saco enorme, com um grande volume dentro, pingando sangue. Novamente o homem chorou, mas desta vez não perdeu a ação, enquanto chorava, amarrou uma ponta da corda no pacote, e a outra na corrente. Com a outra ponte da corrente, ele se abaixou e amarrou em seu pé esquerdo com firmeza. Pegou o corpo da mulher do porta-malas no colo e caminhou em direção a um pequeno caminho no mato.
Caminhava carregando um fardo pesado demais pra se suportar. John ainda chorava, suas lágrimas se misturavam à chuva, sentia a corrente em atrito com sua canela, sentia o peso da mulher em seus braços doloridos, tropeçou uma, duas, três vezes. Não caia, apenas perdia o equilíbrio. Caminhou sem parar de chorar até chegar a uma ponte abandonada, passava por cima de um grande rio que cruzava o estado.
Ao chegar ao meio da ponte, John colocou o corpo da mulher bem devagar no chão. Olhou a aliança novamente. Já não conseguia mais chorar, não conseguia mais sentir. Resistiu ao impulso de olhar a esposa novamente. Se lembrou da foto. Apalpou os bolsos e a encontrou. Tentou limpar o sangue manchado do rosto de Fran. Lembrou-se de todo tempo que haviam passado juntos. Lembrou de quanto haviam brigado após a chegada de Pete. Não se lembrava de quase nada de antes da chegada do filho, apenas se lembrava de Fran. Naquele momento ele odiou o filho. Tudo estava bem antes dele chegar, ele e Fran se amavam e nada era mais perfeito.
Segurou o corpo da mulher novamente, seguiu a corda com os olhos, ela estava bem firme, amarrando o saco a seu pé.
John respirou devagar, sentiu a chuva cair forte em seu rosto, subiu na borda da ponte.
Finalmente o fez, atirou o saco com o corpo da mulher no rio profundo. Segundos depois sentiu um grande puxão em seu pé e caiu da ponte também. Deixou-se levar pelo peso da mulher, ia afundando na água, ele via, de dentro do rio, as gotas caindo na superfície. Foi afundando cada vez mais, não se importava mais com nada. Viveria junto a Fran sua vida perfeita. Tudo foi perdendo a luz, estava cada vez mais escuro, sentia a pressão da água sobre seu corpo, então, John se deixou, pela última vez, chorar.
Sentia a água ficando mais viscosa, a corda que antes saia de seu pé, agora saia de seu umbigo. Ainda estava tudo escuro, e ele conseguia respirar mesmo dentro do líquido. Então viu uma luz e sentiu algo o empurrando de volta para a superfície, já estava chorando desesperado há muito tempo, então ouviu uma voz conhecida ao fundo.
- Vamos lá Fran, empurre! Empurre!
- Está quase saindo!
-É um menino!
Ele viu a superfície de novo, tudo estava borrado, não enxergava nada. Sentiu uma forte dor nos fundilhos e chorou mais ainda. Foi limpo por figuras estranhas e logo dormia em um lugar quente.
Ouviu a voz conhecida pela segunda vez, agora muito mais fria do que antes. A figura o levantou e beijou sua cabeça. Teve a sensação de beijar e ser beijado ao mesmo tempo. Então ouviu;
- Vamos chamá-lo de Peter.
Ele gritara novamente. Há pouco tempo atrás estava se afogando com a esposa. Não havia esquecido nada, tudo estava lá. Ele era Peter. Ele era John.
Ele era Peter, que passara toda sua vida sem dizer uma única palavra e ser incapaz de olhar o pai nos olhos por saber de toda a verdade. Ele era Peter, que aos três anos via o pai assisti-lo dormir com um olhar doentio e confuso. Ele era Peter, que aos quatro anos via o pai brigar com a mãe com mais violência que nos desenhos que assistia. Ele era Peter, que aos cinco anos viu o pai assassinar a mãe. Era Peter, que no dia 27 de setembro, quarta-feira, viu o pai fazer cicatrizes na mãe muito piores que a daquela garçonete.
Ele era Peter, que na noite do dia 28 de setembro, enquanto o pai não estava em casa, se afogou na banheira.
Afogou-se junto com seu ursinho de pelúcia.