Enquanto você dormia

Era cedo demais quando eu acordei? Não sei, pois estava tão aturdido que as coisas todas se misturavam na minha cabeça e no ambiente. Acordei de súbito, como que desperto de um terrível pesadelo, sem me lembrar de nada.

Olhei para o lado e vi você ainda deitada e dormindo. Uma figura feminina que certamente nunca havia visto antes. De onde veio? Como chegou aqui? Forcei a memória para me lembrar da noite anterior, mas sem obter sucesso. Levantei-me e percebi assustado que eu não estava em minha casa, e que esse local também me era

desconhecido. Sua casa, talvez? Pensei em acordá-la, mas me faltou coragem.

Covarde, sentei-me na cama e me pus a esquadrinhar seu rosto. Nada nele me era familiar, mas pude ler sua história em cada traço seu. Sua feição feminina era marcada por uma seriedade descomunal, ao mesmo tempo demonstrando a altivez de um general e a doçura de uma mãe. Tudo em você proclamava firmeza e determinação - ainda que no torpor do sono.

Por um momento tive medo. Imaginava, às vezes, uma maléfica aranha vindo devorar a presa enroscada nos fios de sua teia. Curiosamente, eu - mosca acordada - temia a sensual e adormecida viúva negra envolta na trama de seus próprios lençóis. Não tive medo de você por considerá-la perigosa, mas pelo meu completo desconhecimento a respeito de você, desse lugar, do que havia feito na última noite.

O que você diria quando acordasse? Saberia me explicar o que houve? Exigiria que eu ficasse, cobrando um amor que eu supostamente havia professado? De repente eu tive a certeza de que explicação nenhuma, palavra nenhuma conseguiria me levar de volta para minha casa.

Alguma coisa lá fora fez barulho e você se remexeu na cama, impaciente. Talvez viesse a acordar a qualquer momento. Crescia em mim uma vontade súbita de fugir, mesmo sem saber qual direção tomar. Sua inconsciente presença me questionava e me afligia. Mesmo assim, havia algo de hipnótico em seus olhos fechados, impedindo qualquer movimento meu. Travava-se em mim uma terrível batalha de desejos: minha mente me impelia a fugir, correr, abandoná-la; mas meu coração me obrigava a contemplá-la com reverência.

Foi então, entre os suspiros de sua respiração pesada, que compreendi. Você era uma grande síntese de tudo: era noite e também dia, era sonho e também realidade, era adulta e também criança. Em você tudo fazia sentido, os paralelos se encontravam, os opostos se completavam.

Aos poucos fui recuperando uma calma perdida desde não sei quando. O aparente caos em sua existência trazia dentro de si as mais férteis sementes de um novo cosmo, de uma nova criação, de uma nova forma de encarar as coisas. Pensei-a como serpente, mas vi que de fato você era uma nova Eva, uma novíssima possibilidade de retomar, rever, reestruturar...

Agora meu medo infundado já vai dando espaço para uma trama de otimismo e esperança. Não mais quero ficar parado, vendo-a dormir. Meu desejo é vê-la acordada e conhecê-la plenamente. Vem-me a certeza de que você poderá me explicar quem é, onde estou, como cheguei aqui. Desperte! Saia de seu torpor e venha tirar-me do meu!

Marcel Gustavo Alvarenga
Enviado por Marcel Gustavo Alvarenga em 13/08/2010
Código do texto: T2436540
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