Noites Brancas

eBookLibris

NOITES BRANCAS

Fédor Dostoievski

www.ebooksbrasil.org

--------------------------------------------------------------------------------

Noites Brancas

Fédor Dostoievski

Tradução: Carlos Loures

Créditos da digitalização: Site “O Dialético”

www.odialetico.hpg.ig.com.br/

Versão para eBook

eBooksBrasil

Fonte Digital

Site “O Dialético”

Créditos das imagens:

Capa:

Parte do poster do filme russo de 1960

Dirigido por Ivan Pyr'ev

Artista: Iu. Tsarev

fonte: www.pitt.edu

Interna:

Ilustração de Mstislav Dobuzhinsky para a edição russa de 1922

Fonte: www.abcgallery.com

©2003 — Domínio Público[*]

--------------------------------------------------------------------------------

NOITES BRANCAS

F. DOSTOIEVSKI

--------------------------------------------------------------------------------

PRIMEIRA NOITE

Era uma noite maravilhosa, uma dessas noites que apenas são possíveis quando somos jovens, amigo leitor. O céu estava tão cheio de estrelas, tão luminoso, que quem erguesse os olhos para ele se veria forçado a perguntar a si mesmo: será possível que sob um céu assim possam viver homens irritados e capri­chosos? A própria pergunta é pueril, muito pueril, mas oxalá o Senhor, amigo leitor, lha possa inspirar muitas vezes!...

Meditando sobre senhores caprichosos e irritados, não pude impedir-me de recordar a minha própria conduta — irrepreen­sível, aliás — ao longo de todo esse dia. Logo pela manhã, fora atormentado por um profundo e singular aborrecimento. Subitamente afigurou-se-me que estava só, abandonado por todos, que toda a gente se afastava de mim. Seria lógico, na verdade, que perguntasse a mim mesmo: mas quem é, afinal, «toda a gente»? Na realidade, embora viva há oito anos em Sampeters­burgo, quase não consegui estabelecer relações com outras pessoas. Mas que necessidade tenho eu de relações? Conheço já todo Sampetersburgo e foi talvez por isso que me pareceu que toda a gente me abandonava, quando todo o Sampetersburgo se ergueu e bruscamente partiu para o campo. Fui tomado pelo receio de me encontrar só e durante três dias inteiros errei pela cidade mergulhado numa profunda melancolia, sem nada com­preender do que se passava comigo.

Percorri a Perspectiva, fui ao Jardim, errei através do cais1, e não vi sequer um dos rostos que encontrava habitualmente nesses mesmos locais, sempre à mesma hora e ao longo de todo o ano. Eles, evidentemente, não me conhecem, mas eu conheço­-os. Conheço-os intimamente. Estudei as suas fisionomias — sinto-me feliz quando estão alegres e fico acabrunhado quando se velam de tristeza. Estabeleci laços quase de amizade com um velhinho que todos os dias encontro, sempre à mesma hora, na Fontanka2. Tem uma expressão muito grave e pensativa e sussurra permanentemente, falando consigo mesmo, agitando a mão esquerda enquanto com a direita segura uma longa e nodosa bengala com um castão de ouro. Ele próprio me reco­nhece, dedicando-me um cordial interesse. Se, por qualquer eventualidade, eu não aparecesse à hora do costume nesse tal sitio habitual na Fontanka, tenho a certeza de que teria um acesso de melancolia. Assim, sentimos, por vezes, a tentação de nos cumprimentarmos, principalmente, quando estamos am­bos de bom humor. Recentemente, como não nos víssemos há já dois dias, ao terceiro, quando nos encontramos, íamos já a levar as mãos aos chapéus, mas reprimimos a tempo essa intenção, baixamos os braços e passamos com simpatia um pelo outro.

Para mim, também as casas são velhas amigas. Quando pas­seio, cada uma delas parece correr ao meu encontro na rua: olha-me com todas as suas janelas, dizendo-me algo como isto: «Bom dia! Como estás? Eu vou bem, graças a Deus, muito obrigada! Em Maio vão-me aumentar um andar.» Ou: «Como vais? Amanhã vou entrar em obras.» Ou: «Estive quase a arder e tive bastante medo.» E outras coisas semelhantes.

Tenho algumas preferidas, íntimas. Uma delas tem intenções de fazer uma cura, neste Verão, nas mãos de um arquiteto. Irei vê-la todos os dias, não vá ele matá-la; nunca se sabe. Deus a guarde!

Nunca esquecerei a história de uma linda e pequena casa cor-de-rosa claro. Era uma casinha de pedra, olhava-me com um ar tão afável e mirava tão orgulhosamente as suas frias vizinhas, que o meu coração se alegrava sempre que passava diante dela. Subitamente, na semana passada, ia a passar na rua, olhei para a minha amiga e que ouço eu? Um grito dilacerante: «Pintaram-me de amarelo!» Malandros! Bárbaros! Não tiveram piedade de nada, nem das colunas, nem das cornijas; eis a minha amiga amarelo-canário. Quase tive, por causa disto, um derramamen­to de bílis, e até agora não tive coragem para ir ver a pobrezinha, estropiada, pintalgada com as cores do Celeste Império.

Por aqui já vê, amigo leitor, como tenho relações com todo Sampetersburgo.

Já disse que durante três dias fui atormentado por uma grave inquietação até ao momento em que descobri a sua causa. Na rua sentia-me indisposto (este ausentou-se, aquele saiu da cidade; para onde terá ido aquele outro?), e na minha casa também me sentia mal. Passei duas noites a perguntar a mim mesmo: que faltará no meu quarto?; por que razão me incomo­dará tanto aqui estar? — e, perplexo, examinava as paredes verdes, enegrecidas de fumo, o tecto coberto pela teia de aranha, com tanto êxito cultivada por Matriona, passei em revista todo o meu mobiliário, examinei cadeira por cadeira: não estará aqui o mal (pois se uma só cadeira: que seja não estiver no seu lugar habitual já não me sinto bem)? Olhava pela janela — trabalho perdido: não conseguia o menor alívio! Fui ao ponto de chamar Matriona e de ali mesmo lhe dirigir uma paternal censura por causa da teia de aranha e, de uma maneira geral, pela sua falta de asseio: ela limitou-se, porém, a olhar-me surpreendida; virando-me as costas sem proferir uma única palavra, de modo que a teia de aranha pende ainda intacta do tecto. Em suma, apenas esta manhã adivinhei do que se trata. Eh, não há dúvida de que foi para se livrarem de mim que eles fugiram para o campo!

Perdoem-me a vulgaridade com que me exprimo: não me sinto com disposição para usar um estilo requintado...; a verdade é que todo o Sampetersburgo fugira ou partira para o campo; a verdade é que todos os respeitáveis cavalheiros da burguesia tinham, aos meus olhos, o ar de quem está em vias de tomar um fiacre; como respeitáveis pais de família que, após o trabalho quotidiano, se dirigissem sem bagagens para o seio da família que estava no campo; a verdade é que todos os transeun­tes tinham agora um ar completamente especial que parecia dizer a cada pessoa que com eles se cruzava algo como isto: «Bem sabem, só aqui estamos de passagem. Dentro de duas horas partimos para o campo.» Se acaso via abrir-se uma janela em cujas vidraças haviam tamborilado uns dedinhos delicados, brancos como o açúcar, e debruçar-se para a rua a cabecinha de uma linda rapariga para chamar o vendedor de vasos de flores, de repente parecia-me que aquelas flores eram compradas por comprar (isto é, de modo algum para usufruir da Primavera e de flores na atmosfera sufocante de um quarto) e que em breve, rapidamente, iriam todos para o campo levando-as consigo.

Além disso, fizera já progressos tais dentro desta ordem particular de descobertas, nova para mim, que podia agora, infalivelmente, à primeira vista, determinar para que aldeia tinha ido esta ou aquela pessoa. Os turistas de Kamenny Ostrov e das ilhas Aptekarsky ou da estrada de Peterhof3 distinguiam­-se pela estudada elegância das suas maneiras, pelos seus moder­nos fatos de Verão e pelas belas carruagens em que se desloca­vam à cidade. Os habitantes de Pargolovo4 e das povoações mais afastadas distinguiam-se imediatamente pela sua sensatez e pelo seu ar grave. Os visitantes de Krestovski Ostrov5 eram reconhecíveis pela sua imperturbável jovialidade.

Encontrava, acidentalmente, uma longa procissão de carro­ceiros que caminhavam indolentemente, segurando as rédeas nas mãos, a par dos seus carros carregados de móveis diversos, mesas, cadeiras, divãs turcos e outros, e mais material domésti­co em cima do qual ia muitas vezes, sentada, no topo de toda aquela pilha, uma magra criada vigiando ciosamente os haveres dos seus amos; via as barcas pesadamente carregadas de uten­sílios domésticos, deslizando sobre o Neva ou sobre o Fontan­ka, dirigindo-se para o rio Negro ou para as Ilhas6 e, carroças ou barcas, multiplicavam-se por dez, por cem, aos meus olhos. Parecia-me que tudo se pusera em marcha pelas estradas, que todos emigravam, em enormes caravanas, para os campos e que Sampetersburgo ameaçava transformar-se num deserto, de tal modo que acabei por ficar envergonhado, humilhado, aflito: eu não tinha sequer um lugar no campo para onde ir, nem qualquer razão para o fazer. Estava, no entanto, disposto a partir a pé, com cada carroça que passava, a acompanhar cada cavalheiro de aparência respeitável que alugava um fiacre. Nem um só, porém, absolutamente ninguém, me convidou: como se eu estivesse esquecido, como se, na verdade, fosse um estranho para eles!

Andei muito e durante muito tempo, de tal modo que chegara já ao ponto de, conforme era meu hábito, esquecer onde estava, quando, de súbito, me encontrei às portas da cidade. Senti-me, num instante, tomado de alegria e passei a barreira. Avancei então pelo meio de campos semeados e de prados. Não experi­mentava a mínima fadiga, sentindo apenas, com toda a força do meu ser, que uma espécie de fardo deixava de pesar sobre a minha alma. Todos os transeuntes me olhavam tão amavelmente que por pouco ter-me-iam cumprimentado; respiravam, todos eles, uma espécie de contentamento e todos eles, sem excepção, fumavam charutos. Eu também me sentia contente como nunca me sentira antes. Dir-se-ia que subitamente fora transportado para Itália, de tal modo o esplendor da natureza me deslumbra­va, a mim, citadino meio enfermo, meio asfixiado entre as minhas quatro paredes.

Existe algo muito comovente, difícil de exprimir, na paisa­gem dos arredores de Sampetersburgo quando, à aproximação da Primavera, manifestando subitamente toda a sua violência, todas as forças que recebeu do Céu, se cobre de viçosa verdura, se adorna com o colorido das flores... Faz-me involuntariamen­te lembrar uma jovem macilenta que olhássemos umas vezes com piedade, outras com uma paciência complacente e cuja presença quase não notamos, até que, de repente, num instante lhe encontramos uma maravilhosa e inexplicável beleza, ao mesmo tempo que, estupefactos, nervosos, nos interrogamos contrariados: que força terá feito brilhar com um tal fulgor estes olhos pensativos e tristes? Que terá tingido de sangue estas faces magras e pálidas? Que terá acendido a paixão nestes delicados traços? Por que motivo arfa deste modo este peito? Que terá, tão subitamente, povoado de força, de vida e de beleza o rosto desta pobre rapariga, iluminando-o com semelhante sorriso e enchendo-o de uma alegria tão radiosa e fulgurante? Olharemos em torno de nós, procuraremos alguém, adivinharemos... Mas, passado este instante, encontraremos talvez no dia seguinte novamente o mesmo olhar pensativo e distraído que tinha antes, o mesmo rosto pálido, a mesma submissão e timidez nos movimentos e até mesmo um arrependimento e os vestígios de um mortificante aborrecimento ou despeito por aquele arrebata­mento de um minuto... Lamentaremos então que aquele fulgor, que aquela efêmera beleza, tenha tão depressa, tão irrevogavelmente, fenecido — lamentaremos por não termos sequer tido tempo de a amar...

E no entanto a minha noite foi mais proveitosa do que o dia! Eis como as coisas se passaram:

Regressei muito tarde à cidade e já tinham dado as dez horas quando me aproximei da minha casa. O caminho que percorri passava junto do cais do canal, onde, àquela hora, não se encontrava vivalma. Na realidade, moro num bairro bastante afastado. Caminhava cantando, pois quando estou contente gosto de cantarolar, como qualquer homem feliz que não tenha amigos, nem conhecidos, e que nos seus momentos de felicida­de não tem com quem Compartilhar a sua alegria. Subitamente, aconteceu-me a mais inesperada das aventuras.

Num recanto, apoiada ao parapeito da muralha, estava uma mulher. Com os cotovelos apoiados no gradeamento, parecia olhar com muita atenção a água turva do canal. Trazia um bonito chapelinho amarelo e uma encantadora mantilha negra. «É uma rapariga e certamente morena», pensei. Parecia não ouvir os meus passos e nem sequer se moveu quando passei por ela, retendo a respiração e com o coração a bater violentamente. «Estranho!», pensei «Deve ter, sem dúvida, uma grande preo­cupação»; e bruscamente detive-me, como que pregado ao solo. Sim, não me enganara: a jovem chorava. Um momento depois, ouvi um novo soluço. Santo Deus! O meu coração comprimiu-se de angústia. Embora habitualmente seja tímido com as mulheres, a verdade é que este caso era excepcional!... Voltei atrás, uns passos na sua direção e teria forçosamente dito:

«Menina!», se não tivesse a consciência de que esta exclamação fora pronunciada já mil vezes em todos os romances mundanos. Foi a única coisa que me deteve. Porém, enquanto procurava uma palavra, a jovem recompôs-se e, dominando-se, passeou um olhar em torno de si, baixou a cabeça e deslizou à minha frente ao longo do canal. Imediatamente, caminhei em sua perseguição, mas ela, descobrindo-o, deixou o cais, atravessou a rua e foi para o passeio do outro lado. Não ousei atravessar, O meu coração palpitava como o de um pássaro apanhado numa armadilha. De súbito, uma casualidade veio em meu auxílio.

No passeio para que a rapariga atravessara surgiu subitamente, perto dela, um cavalheiro de fraque, com uma idade muito respeitável, mas com um ar que não o era tanto. Cambaleava, apoiando-se cautelosamente nas muralhas. A rapariga caminha­va apressada e timidamente, como sucede geralmente com as raparigas que não querem que se lhes ofereça para as acompa­nhar à noite até suas casas, e, por certo, o oscilante cavalheiro nunca a teria conseguido apanhar se a minha boa estrela o não tivesse induzido a recorrer a meios de circunstância. De repen­te, sem dizer palavra, o sujeito encheu-se de coragem e, com todas as suas forças, desatou a correr em perseguição da minha desconhecida. Ela fugia, célere como o vento, mas o senhor, embora cambaleando, ia ganhando terreno, até que a atingiu. Ela soltou um grito a eu:.. dei graças aos Céus pela excelente e nodosa bengala que trazia na mão direita. Num abrir e fechar de olhos, eis-me do outro lado da rua, e, também num abrir e fechar de olhos, o intruso deteve-se, tomou em consideração o meu pesado argumento, calou-se, ficou para trás, e apenas ‘quando íamos já muito longe me apostrofou em termos assaz enérgicos. As suas palavras, porém, perderam-se na distância.

— Dê-me o braço — disse à desconhecida —, pois assim ele não ousará voltar a abordá-la.

Silenciosa, estendeu-me o braço ainda trêmulo de emoção e de susto. Oh, intruso, como te abençoei naquele momento! Olhei-a furtivamente: conforme calculara, era muito bela e morena; sob as suas pestanas negras brilhavam ainda pequenas lágrimas, lágrimas provocadas pelo susto recente ou pelo des­gosto que a fizera chorar junto da muralha, não sabia. Nos seus lábios, contudo, resplandecia já um sorriso. Olhou-me também de soslaio, enrubesceu levemente e baixou os olhos.

— Está a ver, Se não me tivesse repelido, nada disto acontecido...

— Mas eu não o conhecia. Julguei que o senhor também...

— E agora, já me conhece? ­

— Um pouco. Olhe, por exemplo, porque treme?

— Oh! Adivinhou logo! — respondi, entusiasmado com o fato de aquela jovem ser inteligente: a inteligência só favorece beleza. — Sim, logo à primeira vista adivinhou quem eu era. Com efeito, sou tímido com as mulheres, não nego que estou emocionado, pelo menos tanto como a menina o estava há momentos, quando aquele sujeito a assustou... Sinto uma espécie de medo, nesta altura. Dir-se-ia que vivo num sonho, mas mesmo em sonhos nunca acreditei que poderia um dia falar com uma mulher, fosse ela quem fosse...

— O quê? Será possível?...

— Sim, a minha mão treme, pois nunca nela se apoiou uma tão linda mãozinha... Perdi completamente o hábito de lidar com mulheres; isto é, nunca tive esse hábito... Bem vê, vivo só. Nem sei como se lhes deve falar. Olhe, ainda agora, consigo, não sei se já lhe disse alguma tolice. Se assim aconteceu, diga-­mo francamente, pois aviso-a de que não sou susceptível...

— Não, não disse qualquer tolice, antes pelo contrário. E se na verdade quer que lhe seja sincera, pois bem, dir-lhe-ei que mulheres apreciam essa timidez. E se ainda quer que vá mais longe, digo-lhe que não fujo à regra e que não o despedirei até me ter acompanhado a casa.

— Dada a maneira como me está a tratar — comecei, anelante de entusiasmo —, deixarei agora mesmo de ser tímido e, então, adeus todas as minhas vantagens!...

— As suas vantagens? Mas quais vantagens? Isso é que já não está bem.

— Perdão, não insistirei. A palavra escapou-se-me. Mas como quer que num momento como este não tenha o desejo de...

— De agradar, talvez?

— É isso mesmo! Mas, por amor de Deus, seja benévola! Tente compreender-me. Tenho já vinte a seis anos, bem vê, e nunca me relacionei com ninguém. Assim, como quer que fale como deve ser, com à-vontade e oportunamente? Será melhor para ambos se falarmos com sinceridade... Quando o meu coração fala, a minha boca não se sabe calar. Bem, mas é a mesma coisa... Poderá acreditar-me? Nem uma mulher, nunca, nunca! Nem sequer um amigo! Apesar disso, todos os dias sonho que, finalmente, tarde ou cedo, encontrarei alguém. Ah, se soubesse quantas vezes me apaixonei desta maneira!

— Mas como? Por quem se apaixonou então?

— Por ninguém, por um ideal, apenas, por aquela que em sonhos me visita. Criei, nos meus sonhos, romances completos! A verdade é que não me conhece! A bem dizer, não podia ser de outra maneira: encontrei duas ou três mulheres — mas seriam elas mesmo mulheres? Eram sempre criadas ou donas de casa que... Vou fazê-la rir se lhe disser que tentei, por mais de uma vez, entabular conversa, como agora fazemos, muito simplesmente, com uma aristocrata, na rua, estando ela sozinha, evidentemente; entabular conversa, claro, timidamente, respei­tosamente, apaixonadamente. Dizer-lhe que morro de solidão, que não me repila, que não tenho maneira de conhecer nenhuma mulher, dando-lhe mesmo a entender que é dever das mulheres não recusar a tímida súplica de um homem tão infeliz como eu. Que, em suma, tudo o que peço se resume a dirigir-me algumas palavras fraternas, uma ou duas palavras de afeto, a não me repelir logo à primeira tentativa, a acreditar na minha boa-fé, a escutar o que lhe disser a zombar de mim, se assim entender, mas a dar-me esperança dizendo-me duas palavras, duas pala­vras apenas, mesmo com a condição de nunca mais nos ver­mos!... Está-se a rir... De fato, o que lhe digo não para menos...

— Não se zangue. Rio-me, pois o senhor é o seu próprio inimigo, pois, se o tivesse tentado, teria talvez obtido êxito, mesmo que isso se passasse na rua: quanto mais simples se é, melhor... Não haveria nenhuma mulher, a não ser que fosse uma tola ou então que estivesse de mau humor nesse momento, que tivesse coragem de lhe recusar essas duas palavras que lhe implorava tão timidamente... Pensando melhor, que digo eu? Certamente que o tomaria por um louco. A verdade é que julgo as outras por mim. Bem sei como esta gente é!

— Agradeço-lhe muito! — exclamei. Nem sequer pode compreender o bem que acaba de me fazer!

— Bem, bem! Diga-me lá uma coisa: como concluiu que eu era a mulher que... que o ia considerar digno de atenção, de afeto... em suma, que não era uma criada ou uma dona de casa, como as outras de que falou? Por que razão decidiu a abordar-me?

— Porquê? Porquê? Talvez porque estava só, porque aquele cavalheiro era demasiado atrevido, por ser de noite: tem de reconhecer que não podia fazer outra coisa que era o meu dever...

— Não, não. Refiro-me a momentos antes, junto da muralha.

— Não é verdade que tinha já nessa altura a intenção de me abordar?

— Junto da muralha? Mas, na realidade, nem sei como lhe responder, temo... Sabe? Hoje sentia-me feliz, caminhava, cantava, tinha ido até aos arrabaldes, nunca vivera horas de tanta alegria. E a menina.., talvez tenha sido só impressão minha.., enfim, desculpe-me se lho recordo, mas tive a impres­são de que chorava, e então eu.... não suportei tal coisa... o coração apertou-se-me... Meu Deus, não teria acaso o direito de me entristecer por sua causa? Terá sido pecado experimentar por si uma fraterna compaixão?... Desculpe, eu disse «compai­xão»... Em suma, para terminar, tê-la-ei ofendido por me ter ocorrido involuntariamente a idéia de me dirigir a si?...

— Deixe! Basta! Não continue... — interrompeu, baixando a cabeça e apertando-me a mão. — Fui eu quem andou mal em lhe ter falado nisto... Mas sinto-me feliz por não me ter enganado a seu respeito... Chegamos já perto da minha casa, é ao fundo desta rua, a dois passos daqui.. Adeus, estou-lhe muito grata...

— Então é possível? Será possível que não nos voltemos a ver... Tudo ficará por aqui?

— Está a ver? — respondeu, rindo-se. —Primeiro só queria duas palavras, e agora... Mas, de fato, não lhe direi adeus... Pode ser que nos voltemos a encontrar...

— Virei amanhã. Oh, desculpe-me, eis-me já a exigir.

— Sim, o senhor está impaciente quase exige...

Escute-me só por um momento! — interrompi-a. — Perdoe-me se lhe digo mais uma coisa... É o seguinte: não posso deixar de aqui voltar amanhã. Sou um sonhador; a minha vida real tão reduzida que momentos como estes que agora vivo são para mim de tal modo preciosos que não poderei evitar de os reproduzir nos meus sonhos. Sonharei consigo toda a noite, toda a semana, todo o ano. Voltarei obrigatoriamente aqui amanhã, justamente aqui, a este mesmo local, a esta mesma hora, e sentir-me-ei feliz por recordar o que hoje aconteceu. Doravante, este lugar é sagrado para mim. Tenho já dois ou três locais como estes em Sampetersburgo. Uma vez, cheguei mesmo a chorar por causa de uma recordação semelhante à que de si vou guardar... Quem sabe, talvez que também a si, há dez minutos, fosse uma recordação que a fazia chorar... Mas desculpe-me, esqueci-me novamente... Talvez que um dia a menina tenha sido particularmente feliz aqui...

— Bem — disse a jovem —, admitamos, voltarei aqui amanhã, às dez horas, como hoje. Vejo que não o posso impedir... A verdade é que tenho necessidade de aqui vir; não vá julgar que lhe concedo uma entrevista. Repito-lhe, tenho de vir aqui por razões pessoais. Mas, está bem... Vamos lá, dir-lho-ei com franqueza: não me desagradará se o encontrar. Além de mais, pode suceder-me algum dissabor como o de hoje... Em suma, agradar-me-ia vê-lo novamente.., para lhe dizer duas palavras. No entanto, veja bem, não vá julgar-me mal, não creia que habitualmente concedo entrevistas com tanta facilidade... Não lho faria se... Mas isto é o meu segredo! Só lhe ponho previamente uma condição...

— Uma condição? Fale, diga, diga já tudo; estou de acordo com tudo, estou pronto para tudo! — exclamei, entusiasmado. — Respondo por mim, serei obediente, respeitoso... bem me conhece...

— Justamente porque o conheço é que o convido para amanhã — respondeu, rindo. — Conheço-o já perfeitamente. Mas aten­ção, só pode vir com uma condição (seja suficientemente bom para fazer o que lhe peço, bem vê que lhe falo francamente): não se apaixone por mim... É impossível, asseguro—lho. Se quiser vir por amizade, será bem-vindo, aqui tem a minha mão... Mas por amor, não, suplico-lhe!

— Juro-lho! — exclamei, segurando a sua minúscula mão...

— Basta, não jure nada: sei que o senhor é inflamável como a pólvora. Não me censure por lhe falar assim. Se soubesse... Também eu não tenho ninguém com quem trocar palavras, a quem pedir um conselho. Como é evidente, não é na rua que se deve procurar conselheiro, mas o senhor é uma excepção. Conheço-o como se fôssemos amigos há vinte anos... Não é verdade que não me trairá?...

— Vai ver... Só não sei como vou passar toda esta noite e todo o dia de amanhã.

— Durma bem. Desejo-lhe, uma boa noite e lembre-se de que confiei em si. O senhor ainda há pouco dizia que é preciso darmos conta de cada um dos nossos sentimentos, até mesmo de uma fraterna amizade! Disse isso de tal modo que subitamente me ocorreu a idéia de lhe confiar...

— O quê, por amor de Deus? Confiar-me o quê?

— Até amanhã! Que isso permaneça por ora como um segre­do. E melhor para si: pelo menos, assim isto parecer-lhe-á um romance. Pode ser que lho diga... Falaremos primeiro e travare­mos um conhecimento mais amplo...

— Eu contar-lhe-ei amanhã toda a minha história! Mas o que se passa? Dir-se-ia que algo de prodigioso me aconteceu... Onde estou eu, meu Deus? Então, diga-me: não se sente contente por não se ter zangado comigo, como teria sucedido com qualquer outra, de não me ter imediatamente repelido? Em dois minutos tomou-me feliz para sempre! Sim, feliz! Quem sabe, talvez tenha conseguido reconciliar-me comigo mesmo, resolvido as minhas dúvidas... Talvez que fique para sempre preso a estes minutos... Enfim, amanhã contar-lhe-ei tudo, saberá tudo...

— Está bem, aceito. O senhor falará primeiro....

— De acordo.

— Até amanhã!

— Até amanhã!

E separamo-nos. Caminhei pelas ruas durante toda a noite: não me decidia a voltar ao meu quarto. Sentia-me tão feliz...

«Até amanhã!»

--------------------------------------------------------------------------------

SEGUNDA NOITE

— Como vê, sempre passaram esta noite e este dia! — disse-me ela estreitando-me ambas as mãos.

— Há já duas horas que aqui estou. Nem pode imaginar de que maneira vivi todo este longo dia!

— Eu sei, eu sei... Mas vamos ao que importa! Sabe porque vim hoje? Decerto que não foi para tagarelar tolamente, como sucedeu ontem. Doravante devemo-nos conduzir mais inteli­gentemente. Ontem pensei longamente em tudo isto.

— «Mais inteligentemente»; mas em quê?. Pela minha parte, estou disposto a isso. Em toda a minha vida, porém, nunca me sucedeu nada que fosse mais inteligente do que aquilo que ontem se passou.

— Na verdade? Primeiramente, peço-lhe, não me aperte as mãos dessa maneira; além disso, informo-o de que refleti hoje longamente a seu respeito.

— E então, a que conclusão chegou?

— A que conclusão? Concluí que era necessário recomeçar tudo desde o início, pois verifiquei hoje que o senhor me é ainda perfeitamente desconhecido e que ontem me comportei como uma criança, como uma rapariguinha, e concluí justamente que a culpa foi sem dúvida do meu bom coração; em suma, fiz o meu elogio, como, no fim de contas, sempre acaba por suceder quando nos dedicamos à tarefa de nos analisarmos Assim, para reparar o meu erro, decidi informar-me a seu respeito da maneira mais pormenorizada possível. Como, porém, não conheço ninguém que me possa informar, será o senhor mesmo quem terá de me contar tudo, tudo até ao mais ínfimo pormenor. Portanto, diga-me: que espécie de homem é o senhor? Depres­sa, Comece, conte a sua história!

— A minha história? — exclamei, assustado. — A minha histó­ria? Mas quem lhe disse que eu tinha uma história? Eu não tenho história...

— Então, como viveu até agora, se não tem história? —interrompeu-me, rindo-se.

— Tenho vivido absolutamente sem a mais pequena história! Tenho vivido, assim, como se Costuma dizer, metido no meu buraco, isto é, só, absolutamente só, perfeitamente só... Com­preende o que isto significa: só?

— Que entende por só? Quer com isso dizer que nunca vê ninguém?

— Não é isso! No que se refere a ver pessoas, vejo-as, mas, no entanto, estou só.

— Então, nunca fala com ninguém?

— No sentido mais estrito da palavra: a ninguém.

— Mas, nesse caso, quem é o senhor? Explique-se! Espere, deixe-me adivinhar. Tem, por certo, uma avó, tal como eu. Ela é cega e há uma eternidade que não me deixa ir a nenhum lado, a ponto de eu quase já não saber falar. Como, há dois anos, cometi uma tolice, concluiu que não tinha mão em mim e, chamando-me junto dela, prendeu a sua saia à minha com um alfinete. E assim temos passado dias inteiros: ela faz meia, embora seja cega, e eu sou obrigada a estar junto dela, a coser ou a ler-lhe em voz alta. É um hábito esquisito, este de estar pregada já há dois anos...

— Santo Deus, que sorte a sua! Mas não, não tenho uma avó assim.

— Nesse caso, como pode ficar todo o dia em casa?

— Ouça, quer saber quem sou?

— Evidentemente que sim!

— Quer sabê-lo exatamente?

— Exatamente!

— Pois bem, vou-lhe fazer a vontade; eu sou... um tipo.

— Um tipo? Mas que espécie de tipo? — exclamou a jovem,rindo com tanta vontade que dir-se-ia não rir há mais de um ano.

—O senhor é muito divertido! Olhe, há aqui um banco: sentemo­-nos... Ninguém passa por aqui , ninguém nos ouvirá e... portan­to, comece depressa a sua história, pois, embora me tenha querido fazer acreditar no contrário, o senhor tem uma história; o que acontece é que a esconde. Antes de mais, o que é um tipo?

— Um tipo? Um tipo é um excêntrico, é um sujeito ridículo! —respondi, desatando a rir para fazer coro com as suas gargalha­das infantis. — É um caráter assim. Escute: sabe o que é um sonhador.

— Um sonhador? Desculpe, mas como não havia de o saber? Eu própria sou uma sonhadora! Por vezes, quando estou sentada ao lado da avó, não imagina o que me passa pela cabeça!... Olhe, uma pessoa começa a sonhar e já não é capaz de parar... Veja, uma ocasião fui ao ponto de imaginar que casara com um príncipe chinês... Na verdade, às vezes, faz tão bem sonhar!... Vendo melhor, não... Quem sabe! Sobretudo se não há mais nada em que pensar... — acrescentou, agora já com um ar muita grave.

— É isso mesmo! Se já casou, um dia, com o imperador da China, nesse caso vai portanto compreender-me maravilhosa­mente. Ouça então... Mas desculpe: não sei ainda o seu nome.

— Finalmente! Só agora se lembrou disso!

— Ah, meu Deus! A verdade é que isso não me ocorreu até agora; não me pareceu indispensável...

— Chamo-me Nastenka.

— Nastenka... nada mais?

— Nada mais. Não lhe é suficiente? O senhor é difícil de contentar!

— Se me é suficiente? Pelo contrário, chega-me perfeitamen­te, perfeitamente, Nastenka! A menina é uma bela rapariga e agradeço-lhe que, para mim, consinta em ser simplesmente Nastenka!

— Na verdade? E então?

— Então, Nastenka, escute e veja como é ridícula a minha história.

Sentei-me junto dela, assumindo uma pose de uma seriedade estudada e comecei, como se estivesse a ler um livro:

— Existem, não sei se o sabe, Nastenka, existem em Sampe­tersburgo lugares muito insólitos. Nesses sítios, dir-se-ia que não penetra o mesmo sol que brilha para os outros habitantes da cidade: o sol que ali entra parece ser outro, um novo sol, feito de encomenda para os tais lugares. Nesses sítios, minha querida Nastenka, leva-se uma vida completamente diferente, que em nada se assemelha à que se desenvolve junto de nós, que pode existir num mundo desconhecido, mas não no nosso, na nossa época séria, ultra-séria. Esta vida é uma mistura de algo de puramente fantástico, de encarniçadamente idealista e, simultaneamente — ai de mim, Nastenka —, de grosseiramente prosaico e comum, para já não dizer de insolitamente vulgar.

— Uf! Meu Deus, que preâmbulo! Que terei ainda de ouvir?

— Vai saber, Nastenka (parece-me que nunca me cansarei de lhe chamar Nastenka), vai saber que nesses lugares vivem seres esquisitos: os tais sonhadores. Sabe? O sonhador, para o definir pormenorizadamente. não é um homem, é uma espécie de criatura do gênero neutro. Aloja-se, na maior parte do tempo, num inacessível refúgio, como se pretendesse até ocultar-se da luz do dia, e, uma vez encolhido na sua toca, metido na sua casota como o caracol, ou pelo menos parece-se muito, neste aspecto. com esse curioso bichinho que é simultaneamente um animal e uma casa e que se chama tartaruga. Na sua opinião, por que razão gostará ele tanto das suas quatro paredes, monotonamente pintadas de verde, sujas, tristes e enegrecidas pelo fumo do tabaco? Por que razão esse ridículo sujeito, quando algum dos seus raros conhecimentos o vem visitar (e ele procede de tal modo que, a pouco e pouco, os seus amigos acabam todos por desaparecer), por que razão esse homem acolhe o visitante com tal embaraço com um rosto de tal modo perturbado e tão confuso como se acabasse de cometer um crime, ali, entre as suas quatro paredes, como se fosse apanhado a fabricar notas falsas ou a escrever versinhos para enviar a qualquer revista com uma carta anônima, dizendo que o verdadeiro poeta morreu e que um seu amigo considera como dever sagrado publicar a sua obra? Por que razão, diga-me. Nastenka, a conversa se estabelece com tanta dificuldade entre estes dois interlocutores? Porque motivo não se soltam gargalhadas e não se troca qualquer palavra espirituosa com este amigo surgido de improviso, o qual em qualquer outra circunstância tanto gosta das gargalhadas e das palavras espirituosas, dos discursos sobre o belo sexo e sobre outros assuntos agradáveis? Por que razão, em suma, este amigo, por certo um conhecimento de fresca data, logo à primeira visita — porque, em casos destes, não haverá uma segunda visita —, por que razão o próprio visitante se sente tão perturbado e frio, com o seu espírito (isto se alguma vez o teve) embotado, ao ver o rosto transtornado do seu anfitrião, o qual, por seu turno, está agora completamente destituído do seu derradeiro grão de sensatez, após ter feito esforços gigantescos, mas vãos, para remover as dificuldades da conversa e para a tomar agradável, mostrando a sua expe­riência da sociedade, falando também sobre o belo sexo e, pelo menos através desta concessão, tentar ajudar aquele pobre diabo caído por engano em sua casa? Por que razão, ainda, o visitante agarra de repente no chapéu e se retira rapidamente, lembrando-se de súbito de um assunto absolutamente inadiável, que nunca existiu, e liberta de qualquer maneira a mão do caloroso aperto do anfitrião, empenhado agora em manifestar o seu pesar e a ganhar o tempo perdido? Por que razão, ao afastar­-se da porta, o amigo solta uma grande gargalhada e promete a si mesmo nunca mais voltar a casa daquele excêntrico — se bem que, no fundo, este excêntrico seja um excelente rapaz — e, ao mesmo tempo, não se pode impedir de conceder à sua imaginação um pequeno devaneio: comparar, ainda que longinquamente, a fisionomia do seu interlocutor de há momentos durante toda a visita, com o aspecto daquele infeliz gatinho perseguido, aterrorizado, torturado de todas as maneiras pelas crianças que o aprisionaram traiçoeiramente e que, o mais assustado possí­vel, lhes conseguiu finalmente fugir para debaixo da mesa, onde, mergulhado na obscuridade, à sua vontade, se espregui­çou e lavou, alisando o pêlo com as patinhas, após as ter passado pelo seu focinho desconfiado e que, depois, cumprida esta tarefa, olhou longa e hostilmente a natureza, a vida e até os restos da refeição dos donos que a cozinheira benévola lhe reservou?

— Escute — interrompeu Nastenka, que me escutava surpreen­dida desde o começo. com os olhos e com a boca muito abertos — escute: não sei, de modo algum, a que título vem tudo isso, nem por que motivo me faz perguntas tão estranhas. Do que eu tenho a certeza é de que todas essas aventuras lhe sucederam a si, de fio a pavio.

— Sem dúvida — respondi com um rosto grave.

— Então, se não tem dúvidas, continue, pois estou ansiosa para saber como isso irá acabar.

— A Nastenka quer saber o que faz no seu reduto o nosso herói ou, dizendo melhor, o que eu faço, pois o herói de toda a história sou eu, a minha própria e modesta pessoa. Quer saber por que razão é que fiquei de tal modo perturbado e desvairado durante todo o dia, após a inesperada visita do meu amigo? Quer saber porque fiquei confundido e enrubescido quando abriram a porta do meu quarto e sucumbi tão miseravelmente ao peso da minha própria hospitalidade?

— Na verdade, quero! — respondeu Nastenka —, pois aí é que reside todo o problema. Ouça: o senhor sabe contar as coisas muito bem, mas não haveria maneira de as contar um pouco pior? Assim, quando fala, dir-se-ia que está a ler num livro.

— Nastenka! — respondi com uma voz grave e severa e fazendo esforços para não me rir —, minha querida Nastenka, bem sei que conto bem, mas, desculpe-me, não sei contar as coisas de outra maneira. Neste momento assemelho-me ao espírito do rei Salomão, que permaneceu durante mil anos encenado numa ânfora, selada com sete selos, e que; finalmente, foi liberto desses sete selos. Neste momento, minha querida Nastenka, em que nos voltamos a reunir após uma separação tão longa, pois já a conheço há muito tempo, Nastenka. porque há já muito tempo que procurava uma certa pessoa, e isto significa que a procurava a si e que estava escrito que nos veríamos agora — neste momento, abriram-se no meu cérebro milhares de válvulas e tenho de deixar as palavras afluírem em torrente, pois, caso contrário, sufocada. Por isso, peço-lhe que não me interrompa, Nastenka, e que me escute com submissão e docilidade. De outro modo, calar-me-ei.

— Não, não, não! Não quero! Fale! A partir de agora não pronunciarei nem mais uma palavra.

— Eu continuo. Nastenka, minha amiga, há uma hora do dia de que gosto extraordinariamente. E aquela em que cessam quase todas as ocupações, funções e obrigações e em que toda a gente se apressa a voltar a casa para jantar ou descansar e durante esse mesmo tempo imagina ir encontrar ainda outros motivos de alegria na noite e em todo o tempo de liberdade que resta. A essa hora, também o nosso herói — pois permitir-me-á, Nastenka, que faça a minha narrativa na terceira pessoa, pois se o fizesse na primeira pessoa envergonhar-me-ia terrivelmente —, assim, portanto, a essa hora também a nosso herói, que tão-pouco está desocupado, segue os outros. Uma bizarra sensação de contentamento, porém, resplandece no seu rosto pálido e levemente enrugado. Ele não permanece indiferente ao pôr do Sol que, lentamente, estende o seu manto sobre o céu frio de Sampetersburgo. Se dissesse que ele o contempla, mentira; não o contempla, olha-o, sim, mas sem disso se aperceber. tal como um homem fatigado ou ocupados nesse mesmo momento, na observação de outro motivo mais interessante, de maneira que só por instantes, quase involuntariamente ele pode conceder atenção àquilo que o rodela. Sente-se satisfeito porque inte­rrompeu. até ao dia seguinte, assuntos aborrecidos e contente como um colegial a quem libertassem dos deveres escolares mandando-o para o recreio, para os seus jogos e travessuras favoritas.

«Olhe-o disfarçadamente. Nastenka:, verá logo que esse sentimento de alegria já se refletiu felizmente nos seus débeis nervos, atuando sobre a sua imaginação doentiamente excitada. Veja, pensa em qualquer coisa... No que será? No seu jantar? Em como irá passar o serão de hoje? O que olhará daquela maneira? Será aquele cavalheiro de ar grave, que acaba de cumprimentar de maneira tão pitoresca uma senhora que passou por ele, há poucos momentos, na sua elegante carrua­gem, na sua flamante caleça? Não, Nastenka, o que lhe poderia agora interessar tais ninhadas? Agora é rico, rico na sua vida interior, enriqueceu de um momento para o outro e não foi em vão que brilhou tão radiosamente diante dele o derradeiro raio do Sol moribundo, fazendo florescer no seu coração rejuvenes­cido um enxame de sensações. Agora, mal repara no caminho que segue, embora os mínimos pormenores desse mesmo caminho lhe mobilizassem habitualmente a atenção. Agora, a «deusa Fantasia» (já leu Jukovski7, minha querida Nastenka?) teceu com mão caprichosa a sua trama de ouro e traçou diante dos seus olhos os arabescos de uma vida maravilhosa, estranha, e — quem sabe? — talvez, com a sua mão caprichosa, o tenha transportado ao sétimo céu de cristal, através deste excelente passeio de granito por onde se encaminha para sua casa. Tente detê-lo, agora, pergunte-lhe bruscamente onde está neste mo­mento, os ardis por que passou; estou certo de que não se recordará de nada, nem donde esteve, nem onde está nesse momento, e, enrubescendo de despeito, inventará qualquer mentira para salvar as conveniências.

«Eis a razão por que estremeceu de tal modo, quase gritando e olhando assustado em tomo de si só porque uma anciã muito respeitável o interpelou delicadamente no meio do passeio, perguntando-lhe o caminho para sua casa, pois perdera-se. Com os sobrolhos franzidos pelo mau humor, continuou a caminhar, mal notando que mais de um transeunte sorriu ao observá-lo e se voltou para o seguir com o olhar e que uma rapariguinha, após lhe ter receosamente cedido passagem, explodiu em sonoras gargalhadas fitando com os olhos arregalados o seu largo sorriso contemplativo e os gestos dos seus braços. Foi ainda, porém, a Fantasia quem arrebatou no seu vôo jovial a anciã, os transeuntes curiosos, a rapariguinha zombeteira e os homens 4que jantam ali, nas suas barcas que obstruem a Fontanka (suponhamos que o nosso herói passava justamente por aí nesse momento); a todos envolveu maliciosamente no seu véu, tal como se fossem moscas apanhadas numa teia de aranha, e, com esta nova aquisição, o excêntrico entrou finalmente no seu quarto, na sua toca dileta, sentou-se à mesa, jantou lentamente e apenas voltou à realidade quando Matriona, a criada, medita­tiva e eternamente enferma, após ter levantado a mesa, lhe veio trazer o seu cachimbo; voltou à realidade e, com surpresa, verificou que acabara completamente de jantar sem ter a mínima noção do que comera e como comera.

«O quarto está imerso na obscuridade a sua alma, está vazia e triste; todo um reino de quimeras se desmoronou em seu redor, se desmoronou sem deixar rasto, sem ruído nem tumulto, passando como um sonho, e ele nem sequer se recordou de ter acalentado essas quimeras. Porém, uma espécie de obscura sensação, que magoou levemente o seu peito. uma espécie de novo desejo seduz, estimula e irrita a sua imaginação e suscita furtivamente um exército de novos fantasmas. No exíguo quarto reina o silêncio; a solidão é a ociosidade acariciam-lhe a imaginação e ela lentamente vai-se inflamando e. lentamente, atinge o estado de ebulição, como a água na cafeteira da velha Matriona, que. imperturbável, ao lado, na cozinha, se ocupa a preparar o seu café caseiro. Ei-la que se evola em girândolas e o livro em que distraidamente pegara cai das mãos do meu sonhador, que nem sequer leu até à terceira página. Excitada, a sua imaginação de novo ganha asas, e, bruscamente, mais uma vez, uma nova vida o vem fascinar. Novo sonho: nova felicida­de’ Volta a beber o veneno delicioso e requintado do sonho! Que importa a vida real? Nós vivemos uma vida tão ociosa, tão parada, tão desprezível, estamos tão descontentes da nossa sorte, tão enfastiados da nossa existência! E, na verdade, verifique como, á primeira vista, tudo se apresenta, na nossa vida, tão amargo como hostil... ‘Pobres criaturas!’. pensa o meu sonhador. Nada de surpreendente existe no seu pensamen­to! Repare nesses mágicos fantasmas que diante dele se for­mam: fascinantes, caprichosos, amplamente e sem limites, num fantástico quadro animado onde se encontra no primeiro plano, naturalmente, corno figura principal, a preciosa pessoa do nosso herói. Veja: que aventuras variadas, que infinito turbilhão de sonhos exaltados! Perguntará talvez: com que sonha ele? Para quê fazer semelhante pergunta? Como é evidente, sonha com tudo... Vê-se no papel de um poeta, a princípio ignorado e depois consagrado; na sua amizade com Hoffmann, na matança da noite de São Bartolomeu, em Diane Vernon8, num papel heróico quando da tomada de Cazã por Ivã, o Terrível, Clara Movbray9. Effle Deans10, em Huss comparecendo perante os prelados reunidos em concílio, na revolta dos mortos em Roberto, o Diabo (lembra-se da música? Transporta-nos ao cemitério!), em Mimna e em Brenda11, na batalha do Beresina. na leitura de um poema no palácio da condessa V...a D...a12 em Danton, em Cleópatra e i suoi amanti, na casinha de Kolomna13, num pequeno refúgio onde, a seu lado, um ente amado o escutasse, numa noite de Inverno, com a sua boquinha e com os seus grandes olhos verdes abertos — como a Nastenka me escuta agora!...

«Não, Nastenka, que lhe interessa a ele, a esse ser mergulha­do na volúpia da ociosidade, essa vida à qual nós aspiramos? Na sua opinião, trata-se de uma pobre vida miserável, sem adivinhar que, também pata ele, talvez venha a chegar a bom amarga em que por um só dia dessa vida miserável dará toda a sua bagagem de devaneios fantásticos e ainda não por alegria ou felicidade, e em que não quererá mesmo escolher, nesse mo­mento de dor, de arrependimento e de infinito desgosto. Mas, enquanto não chega essa temível hora, não deseja nada, está acima dos desejos, pois nada lhe falta, está saciado, é o demiurgo da sua própria vida, construindo-a à medida da sua fantasia de momento. E, com efeito, este mundo fantástico do faz-de-conta cria-se com tanta facilidade, tão naturalmente! Como se, na verdade, tudo isso não fosse ilusão! Em certas alturas, somos verdadeiramente levados a acreditar que toda esta vida não é uma exaltação dos sentidos, de uma miragem, de um equívoco da imaginação, mas sim de algo de real, de autêntico, de existente! Por que motivo então, diga-me, Nasten­ka, por que motivo nessas alturas a respiração se lhe prende? Por que sortilégio, mercê de que desconhecida vontade, as pulsações se lhe aceleram e as lágrimas jorram dos olhos do sonhador, inundando-lhe as faces pálidas e ardentes e invadindo todo o seu ser de uma felicidade irresistível? Por que razão passam vertiginosamente as noites de insônia, envoltas numa alegria e numa felicidade inesgotáveis, e quando a aurora trespassa as janelas com a sua luz rósea e o sol da madrugada incendeia o seu triste quarto com a sua fantástica e difusa luminosidade, como sucede sempre em Sampetersburgo, por que razão o nosso sonhador, fatigado, esgotado, se deixa tombar sobre o leito e adormece, com uma respiração doentia­mente sacudida pelo entusiasmo e com um sofrimento tão languidamente delicioso no coração?

«Sim, Nastenka, enganamo-nos, embora contra a nossa vontade, ao acreditarmos que a paixão verdadeira, autêntica, atormenta a alma, ao acreditai-mos que existe algo de vivo, de tangível, nos sonhos imateriais! Mas que ilusão; veja, por exemplo: o amor avassalou o seu peito com toda a sua inesgotá­vel alegria, com todos os seus extenuantes tormentos... Deite-lhe apenas um olhar rápido e convença-se daquilo que lhe digo! Bastará olhá-lo para acreditar, minha querida Nastenka, que ele nunca conheceu realmente aquela que tanto amou no seu exaltado sonho? Será possível que apenas a tenha visto entre esses fantasmas fascinantes e que essa paixão não tenha sido para ele mais do que um sonho? Será possível que nunca haja estreitado as mãos dela ao longo de tantos anos da sua vida, sós, entregues a si mesmos, ignorando todo o universo e unindo cada um deles o seu universo, a sua vida, à vida do outro? Será possível que não tenha sido ela quem, ao crepúsculo, no momento da separação, se tenha reclinado, soluçante e desespe­rada, sobre o seu peito, sem escutar a tempestade desencadeada debaixo de um céu lúgubre, sem ouvir o vento que arrancava e arrastava com fúria as lágrimas que brotavam dos seus cílios negros? Será possível que tudo isto não tenha passado de um sonho, este jardim melancólico, abandonado e selvagem, com as suas áleas provoadas de musgo, solitário e hostil, por onde tantas vezes passearam ambos, esperando, desesperando, amando, amando-se mutuamente, durante tanto tempo, tão longa e ternamente”? E essa velha mansão ancestral, insólita, onde ela viveu solitária e triste durante tantos anos, com o seu velho e sombrio marido, perpetuamente silencioso e bilioso, um marido que os assustava, pois eram ambos tímidos como crianças, melancólicos e receosos, ocultando-se mutuamente o seu amor? Como se atormentavam, como tinham medo, como era puro e inocente o seu amor e como (isto é evidente, Nastenka) as pessoas eram más! E, Deus meu, não foi ela quem ele encontrou depois, longe da pátria, sob um céu estrangeiro, meridional e ardente, na maravilhosa Cidade Eterna, no esplen­dor de um baile, ao som da música, num palazzo (forçosamen­te, num palazzo) mergulhado num mar de fogo, nessa varanda engrinaldada de mirtos e de rosas onde, tendo-o reconhecido, arrancara apressadamente a sua máscara e sussurrando-lhe: «Sou livre!», trêmula e soluçante se lhe lançara nos braços; então, num grito de entusiasmo, apertados um contra o outro, esqueceram num abrir e fechar de olhos o desgosto e a separa­ção e todos os tormentos, a espera cruel, o velho, o sombrio jardim da pátria distante e o banco sobre o qual, com um derradeiro e apaixonado beijo, ela fugira ao seu amplexo, aturdida por um sofrimento sem esperança... Oh. tem de o confessar, minha querida Nastenka, foi caso para desejar fugir, para ter ficado perturbado e corado como um colegial que acabasse de esconder no bolso a maçã roubada no jardim vizinho, quando um rapaz seu amigo, sadio e alto, alegre e jovial, bem falante, abre sem se ter anunciado a porta do quarto e grita como se nada se tivesse passado: ‘Sou eu, meu caro, acabo de chegar de Pavlovsk!’ Santo Deus, o velho conde morreu, eis enfim a felicidade, uma indescritível felicidade, e nesta altura é que o tal tipo lhe apeteceu chegar de Pavlovsk14»

Tendo terminado as minhas patéticas exclamações, calei-me (pateticamente). Lembro-me bem, tinha uma terrível vontade de rebentar em gargalhadas, de rir desmesuradamente, pois sentia crescer dentro de mim um diabinho inimigo, que a minha garganta começava a estar presa, que o queixo me tremia e que cada vez mais os olhos se me marejavam de lágrimas... Esperava que Nastenka, que me escutava atentamente, com os seus grandes e inteligentes olhos verdes muito abertos, ia explodir em gargalhadas infantis, irresistivelmente jovial, e já me começava a arrepender de ter ido demasiado longe, de ter contado em vão aquilo que desde há tanto tempo me enchia o coração, aquilo de que podia falar como se estivesse a ler num livro, pois? desde longa data a minha sentença sobre mim mesmo estava decidida (e eu não me impedira de a ler, ainda que, confesso-o não esperasse ser compreendido)... Porém, com grande surpre­sa minha, ela guardou silêncio, deixou decorrer um momento, comprimiu levemente a minha mão e com uma tímida simpatia perguntou:

— É verdade que passou desse modo toda a sua vida?

— Toda a minha vida, Nastenka — respondi —, toda a minha vida, e, segundo me parece, acabá-la-ei da mesma forma!

— Não, é impossível — replicou com tranqüilidade—. não será assim. Será dessa maneira, isso sim, que irá decorrer a minha junto da avó. Escute: sabe que não se deve viver assim?

Eu sei, Nastenka, eu sei! — exclamei, sem poder conter a minha emoção. — E agora sei melhor do que nunca que perdi gratuitamente os melhores anos da minha vida! Agora sei-o, e, cruelmente, tenho disso uma consciência mais aguda desde que Deus a enviou junto de mim, a si, meu bom anjo, para mó dizer e provar. Agora, que estou sentado junto de si e que falo consigo, tenho medo de pensar no futuro, pois no futuro será ainda a solidão, ainda esta vida inútil e reservada.., e no que poderei depois sonhar quando, acordado, ao seu lado, fui de tal modo feliz? Seja bendita, minha querida, por não me ter repelido imediatamente, por me ter permitido dizer hoje que. pelo menos, pude viver duas noites em toda a minha vida!

— Oh, não, não! — gritou Nastenka, e pequenas lágrimas refulgiram nos seus olhos. — Não, isso nunca acontecerá. Não nos separemos assim! Que são duas noites?

— Nastenka, Nastenka! Sabe que conseguiu reconciliar-me por muito tempo comigo mesmo? Sabe que não terei, a partir de agora, uma opinião de mim próprio tão má como tive em certos momentos? Sabe que doravante não lamentarei mais, talvez, ter cometido um crime e um pecado na minha existência (porque uma vida como a minha é um crime e um pecado)? E não julgue que estou a exagerar; por amor de Deus, não pense uma coisa dessas, Nastenka, porque vivi alturas de um tal desespero, de um tal tédio...; porque nessas alturas começa a afigurar-se-me que nunca serei capaz de iniciar uma vida autêntica, porque me pareceu já que tinha perdido todo o tacto, toda a noção do presente, do real; porque, em suma, cheguei a amaldiçoar-me a mim próprio; porque após as minhas noites fantásticas passei por pavorosos momentos de abatimento! No entanto, ouvimos à nossa volta a multidão bramir e rodopiar no turbilhão da vida, ouvimos e vemos viver os homens, viver bem acordados, vemos que a vida não lhes é interdita, que a vida não se lhes evaporará como um sonho, uma visão, que a vida deles é perpetuamente renovada, eternamente jovem, sem que uma hora se assemelhe à seguinte, enquanto a tímida fantasia é sombria e monótona até à banalidade, escrava da sombra, da idéia, escrava da primeira nuvem que de súbito obscurecerá o Sol e oprimirá de angústia o verdadeiro coração sampetersburgês, tão cioso do seu sol... Ora, na angústia não pode existir fantasia!

«Sentimos que, por fim, essa inesgotável fantasia se fatiga, se esgota numa perpétua tensão, porque amadurecemos e supe­ramos os nossos ideais antigos, os quais se desfazem em pó e se desmoronam, e, se não existe outra vida, é preciso construí-la mesmo com essas minas. E, no entanto, é algo de diferente aquilo que a alma solicita e quer! E, pois, em vão que o sonhador procura entre as cinzas dos seus velhos devaneios pelo menos qualquer cintilação para lhe soprar em cima e aquecer com um fogo novo o seu coração arrefecido e nele ressuscitar tudo o que outrora era tão agradável, tudo à que lhe sensibiliza­va a alma, tudo o que lhe fazia palpitar o sangue, tudo o que lhe inundava de lágrimas os olhos e iludia de maneira tão magní­fica! Sabe, Nastenka, ao que eu cheguei? Sabe que me vejo obrigado a celebrar o aniversário dos meus sentimentos, o aniversário daquilo que dantes me era tão caro e que, na realidade nunca existiu — porque esse aniversário se celebra sempre em memória dos mesmos tolos devaneios — e, em última análise, esses próprios tolos devaneios não existem, porque não há possibilidade de os extrair da vida: até os sonhos nascem da vida, não é verdade?

«Sabe que gosto agora de lembrar e de visitar, em certas datas, locais onde um dia fui feliz à minha maneira; gosto de edificar o meu presente de harmonia com o irreversível passado, e, muitas vezes, vagueio como uma sombra, sem objetivo, sombrio e triste, por sítios afastados e pelas ruas de Sampeters­burgo?

«Que recordações! Lembro-me, por exemplo, de que neste local, há justamente um ano, precisamente a esta hora, neste mesmo passeio, vagueei tão solitário e tão sombrio como hoje! E repare que nessa altura também os pensamentos eram tristes; ainda que não fosse mais feliz, sentia, apesar de tudo, que a vida era mais fácil e tranqüila, não existindo nela esta idéia negra que agora a mim se apegou; nada desses problemas de consciência, sombrios e severos remorsos, que nem de dia nem de noite me deixam descansado. E uma pessoa interroga-se: mas então onde estão os teus sonhos? E sacode a cabeça, dizendo: como os anos passam depressa!... E novamente nos interrogamos: mas o que fizeste tu dos teus anos? Onde foste enterrar o teu tempo mais precioso? Viveste verdadeiramente? Sim ou não? Repara, dize­mos para nós mesmos, repara como o mundo arrefeceu. Passa­rão ainda mais anos e, após eles, virá a triste solidão, virá com a sua bengala a vacilante velhice e, após eles, o tédio e o desespero. O teu mundo fantástico empalidecerá; os teus so­nhos morrerão, fenecerão, cairão como as folhas mortas caem das árvores... Oh, Nastenka, como será triste ficar só, completamente só, e não ter absolutamente nada a lamentar, nada de nada..., pois tudo o que se perdeu, tudo isso junto, não significa nada, é um zero estúpido e perfeito, tudo não terá passado de um sonho!

— Vamos, não me comova mais! — pediu Nastenka, enxugan­do uma pequena lágrima que lhe rolara dos olhos. — Agora tudo isso acabou! Agora somos dois. Agora, suceda o que suceder, nunca nos separaremos. Escute. Eu sou uma rapariga simples, estudei pouco, se bem que a minha avó me tenha contratado um professor; apesar disso, eu compreendo-o, pois tudo o que acaba de me contar eu própria já o vivi quando a avó me pregou à sua saia. Certamente que não teria sido capaz de o narrar tão bem como o senhor, pois, como já lhe disse, os meus estudos não foram grandes — acrescentou timidamente, pois experimen­tava sempre um certo respeito em relação ao meu tom patético e ao meu estilo grandiloqüente. — Agora conheço-o perfeitamen­te, conheço-o dos pés à cabeça. E quer saber uma coisa? Vou­ lhe contar a minha história e vou-a contar a mim própria, sem nada ocultar, e, depois disso, em compensação, o senhor dar-me-á um conselho, pois é um homem inteligente. Promete dar-me esse conselho?

— Ah, Nastenka — respondi eu —, nunca fui conselheiro de quem quer que fosse, e muito menos um conselheiro inteligen­te, mas vejo agora que, se continuarmos a conviver desta maneira, isso será já em si inteligente e, portanto, cada um de nós proporcionará ao outro uma grande quantidade de conse­lhos inteligentes! Então, minha gentil Nastenka, qual é o conselho que me irá pedir? Diga-mo francamente. Agora estou tão alegre, tão feliz, audacioso e inteligente, que as palavras me ocorrerão sem esforço.

— Não, não! — interrompeu Nastenka, rindo-se. — Do que preciso não é somente de um conselho inteligente, mas sim de um conselho vindo do fundo do coração, de um conselho fraterno, como se me tivesse amado durante toda a sua vida!

— De acordo, Nastenka, de acordo! — exclamei num arrebata­mento. — E se a amasse desde há vinte anos não a poderia amar mais nem melhor.

— Dê-me a sua mão!

— Ei-la! — respondi, estendendo-lha.

— Vou começar então a minha história!

--------------------------------------------------------------------------------

A HISTÓRIA DE NASTENKA

— Metade da história sabe-a já o senhor, isto é, sabe que tenho uma velha avó...

— Se a outra metade não é maior do que essa. — interrompi, rindo-me.

— Cale-se e escute. Antes de prosseguir, façamos uma combinação: não me interrompa, pois de outra maneira sou capaz de perder o fio à meada. Então, escute lá com juízo.

«Tenho uma velha avó. Fui para casa dela muito pequenina, pois perdera o meu pai e a minha mãe. É de crer que a avó foi rica em tempos, pois ainda hoje recorda esses dias melhores. Foi ela que me ensinou francês e, depois, me contratou um professor. Quando fiz quinze anos — tenho agora dezessete —. abandonei os estudos. Foi nessa altura que cometi a tal tolice de que lhe falei. Não lhe direi que tolice foi; basta que lhe diga que a falta não foi grande. Apesar disso, uma bela manhã, a avó chamou-me junto dela e disse-me que, como era cega e não podia andar atrás de mim, resolvera prender a sua saia à minha com um alfinete, acrescentando que, deste modo, iríamos passar toda a vida presas uma à outra, a não ser que eu me emendasse. Em suma, nos primeiros tempos não havia maneira de me conseguir afastar: para trabalhar, ler, estudar, tinha de estar sempre junto da avó. Uma vez tentei uma manha e convenci Fiokla15 a tomar o meu lugar. Fiokla é a nossa criada e é surda. Fiokla sentou-se no meu lugar; a avó, durante esse tempo, adormecera na sua poltrona e eu saí com uma amiga para bastante longe. Pois bem, a história acabou mal. A avó, durante a minha ausência, acordou e perguntou qualquer coisa, pensando que eu continuava ajuizadamente sentada no meu lugar. Fiokla via bem que a avó lhe estava a perguntar fosse o que fosse, mas não conseguia ouvir. Pensou e tomou a pensar no. que devia fazer e, não encontrando solução, abriu o alfinete e fugiu...

Neste ponto, Nastenka deteve-se e desatou em sonoras gargalhadas. Eu ri com ela. Parou imediatamente de rir.

— Ouça lá, não se ria da minha avó. Eu rio-me porque acho isto divertido... O que quer... uma vez que a avó é assim... só eu, apesar de tudo, lhe tenho um pouco de amor. Bem... naquela altura isso arreliou-me bastante: imediatamente me obrigou a voltar ao meu lugar e, depois, nada a fazer, proibição de me mexer.

«Vamos, esqueci-me ainda de lhe dizer que nós temos, ou, melhor, que a avó tem, uma casa dela, ou, melhor ainda, uma casinha, três janelas ao todo, uma casinha de madeira, tão velha como a própria avó; em cima tem uma mansarda. Pois bem, um belo dia um novo hóspede veio morar para essa mansarda.»

— Quer então dizer que havia um antigo hóspede? — fiz notar.

— É verdade — respondeu Nastenka —, e por acaso até era capaz de estar calado, coisa que não sucede consiga... Na verdade, mal podia mexer a língua. Era um velhinho, seco, muda, cego, coxa, de tal modo que por fim já não lhe era passível estar no mundo e acabou por morrer; então, tomava-se necessário arranjar um novo hóspede, pois não podíamos passar sem esse recurso, que, com a pensão da avó, constituía quase todo o nosso rendimento. Este novo hóspede, nem de propósito, era um jovem, não aqui da cidade, mas de passagem. Como ele não discutiu o preço, a avó aceitou-o. Depois, um dia, pergun­tou-me: «Então, Nastenka, o nosso hóspede é novo ou não?» Eu não lhe quis mentir: «Bem, avó, é velho de mais para ser jovem e demasiado jovem para ser velho.»

«‘— Bom... e é fisicamente agradável?’, perguntou a avó. «Novamente, não lhe quis mentir. ‘Sim’, disse eu, ‘é fisi­camente agradável, avó! E ela: ‘Ah, maldição, maldição! O que diga, minha filha, é que não te distraias a olhá-lo. Que século o nosso! Veja-se só isto, um hóspede como este, que não tem nada, e é fisicamente agradável! Noutros tempos tudo era diferente!’

«Para a avó só existem os outros tempos. A verdade é que noutros tempos ela era mais jovem e o sol era mais quente noutros tempos, e noutros tempos as natas não azedavam tão depressa: sempre noutros tempos! — Permaneci sem dizer pala­vra: porque seria que a avó me fazia lembrar as coisas, me perguntava se ele era bonito e jovem? Mas, como já lhe disse, fiquei calada, apenas a pensar, e, imediatamente, recomecei a contar as malhas e a tricotar a minha meia e, depois, acabei por esquecer completamente o assunto.

«Ora uma vez, pela manhã, o hóspede entrou em nossa casa para lembrar que lhe tinham prometido mudar o papel das paredes do seu quarto. Palavra puxa palavra, e a avó — ela é bastante faladora — disse-me: ‘Nastenka, vai ao meu quarto e traz o ábaco.’ Dei um salto, corando até à raiz dos cabelos, sem, saber porquê, e esqueci que estava pregada; em vez de soltar discretamente o alfinete para que o hóspede não se apercebesse de nada, saltei de tal modo que a poltrona da avó veio atrás de mim. Vendo que o hóspede sabia agora toda a minha história, corei, fiquei como se estivesse colada ao chão, e, de súbito, debulhei-me em lágrimas: estava de tal maneira envergonhada e desgostosa naquela altura, que me apetecia morrer! A avó gritou: ‘Que estás tu aí a fazer especada?’, e eu cada vez pior... O hóspede, vendo-me tão envergonhada diante dele, cumpri­mentou e saiu imediatamente.

«Desde então, ao menor ruído que ouvisse no corredor, ficava como morta. É, dizia para comigo, a hóspede que vai a passar, e, dissimuladamente, abria o alfinete. A verdade é que nunca era ele quem vinha. Passaram-se duas semanas: o hóspe­de mandou dizer através de Fiokla que tinha muitos livros franceses, tudo boas obras que podiam ser lidas: a senhora não desejaria que a menina os lesse, para ajudar a passar o tempo? A avó consentiu reconhecidamente; no entanto, estava sempre a perguntar se eram livros morais ou não, pois, no caso de serem imorais, ‘seria conveniente que tu não os lesses, Nastenka, porque neles aprenderias coisas más’.

«‘— E que coisas más são essas, avó? Que vem escrito nesses livros imorais?’

«‘— Ora! Descreve-se neles como os rapazes seduzem as raparigas honestas; como, sob o pretexto de as quererem desposar, as raptam de casa do pais; como, depois, abandonam essas infelizes à sua triste sorte e como elas acabam por morrer da maneira mais triste. Eu’, dizia a avó, ‘eu li muitos desses livros e tudo aquilo está escrito de tal maneira que a noite passa num instante quando os lemos. Por isso, Nastenka, toma cuidado, não os leias. Mas, diz-me lá, que livros emprestou ele?’.

«‘— São todos eles romances de Walter Scott, avó’.

«‘— Romances de Walter Scott! Mas, espera lá, não haverá dentro deles alguma velhacaria? Vê bem, não teria ele posto entre as páginas algum bilhetinho?’

«‘— Não, avó, não há qualquer bilhetinho.’

«‘— Vê debaixo da encadernação. Às vezes eles escondemos debaixo da pele da encadernação, esses marotos!...’

«‘— Não, avó, debaixo da encadernação também não há nada. Não há bilhete nenhum.’

«‘— Bem, está bem.’

«E começamos a ler Walter Scott; ao cabo de um mês, já tínhamos lido quase metade dos livros emprestados. Depois, ele emprestou outros e outros ainda, emprestou Pushkin, de tal modo que por fim eu já não podia viver sem vc.

Conde Diego O Poeta
Enviado por Conde Diego O Poeta em 10/08/2010
Código do texto: T2430322
Classificação de conteúdo: seguro