O ciúme


      Ela morreu de súbito. Uma morte que deixa as pendências e questões não resolvidas exatamente como estão: pendentes e não resolvidas. Não pôde terminar o curso de crochê, interrompeu pela metade o tratamento de canal do segundo molar superior, e não deu satisfações aos netos por não comparecer à apresentação musical deles no final de semana. A morte é um desses mistérios que pode chegar sem aviso prévio e arrebatar a pobre alma tão repentina e inesperadamente como uma avalanche de neve que cai em uma manhã qualquer. E no caso dela, foi morte súbita, fulminante parada do miocárdio sem qualquer indício ou aviso de chegada, um choque para a família mas que, se podemos ver algo de positivo na morte, poupou a todos do lento e doloroso processo que poderia ter sido, que normalmente é.

      Mulher do lar, casada e com filho único, tinha uma vida sem extravagâncias e luxos. Era recatada, modesta e seguidora dos bons costumes, diziam os que a conheciam. Amorosa com o fiel e gentil marido e carinhosa com o filho, era sempre a que abria mão de certos caprichos para amenizar as tensões que vez ou outra surgiam. Preferia ceder a ter que ver o lar em desarmonia. Quando queria algo, fazia como se não queria e, com jeitinho e doçura, acabava conseguindo. Servia como base e eixo que sustentava o amor da família, e a sua morte deixou um enorme vazio na casa e na alma do velho viúvo.

      E ele, que viu a casa esvaziar após a saída do filho, teve que aprender a viver sem ela também. Determinado a se adaptar e organizar um novo esquema de vida que adotaria dali para frente, começou por reunir todos os pertences pessoais da falecida esposa a fim de doá-los. Por mais que a amasse, e ainda a amava, não queria sentir-se preso ao passado. E foi explorando os cômodos da casa que encontrou uma pequena caixa de madeira guardada no fundo de um velho baú, junto com outras quinquilharias e bugigangas no sótão da casa. Na caixa, para sua surpresa, encontrou desbotadas cartas escritas à mão, muito antigas. Pela data que constava calculou que sua esposa tinha apenas dezessete anos - eram cartas de amor que ela recebera de um suposto namorado. Por que ainda estavam guardadas depois de todos esses anos? Não soube responder. Misterioso e impenetrável pode ser o coração de uma mulher.

      Pensou ser incapaz de sentir ciúme naquela altura da vida, ainda mais por um amor adolescente de décadas atrás da recém-falecida esposa. Mas quando viu o nome do namorado que assinava as cartas, inquietou-se: Pedro Henrique, o mesmo nome do único filho que tiveram. Ficou intrigado e confuso, teria ela sugerido o nome do ex-namorado para batizar o filho? 

      Não, fora ele que dera o nome ao filho. Lembrou-se que o nome composto era uma homenagem ao seu avô Pedro e ao tio dela, que na verdade fora seu pai de criação, Henrique. Sim, ele que escolhera o nome, não ela, pelo menos era assim que se lembrava. Incrível coincidência. Quis o destino assim, que o nome do filho fosse o mesmo nome que ele encontraria naquelas amareladas cartas de amor, cartas estas esquecidas - ou zelosamente guardadas - naquele antigo baú. 

      E, de súbito, sentiu ciúme. Aquele sentimento o arrebatou de forma repentina e inesperada como uma avalanche de neve que cai em uma manhã qualquer. Como se Iago sussurrasse maledicências em seus ouvidos, sentiu-se Casmurro assombrado pelo olhar dissimulado de Capitu já morta. E a dúvida, perversa dúvida que surgiu tão tarde, o acompanhou por todos os seus dias e noites.


Julho de 2010

Fonte da imagem
___________________________________________________________
Este texto faz parte do exercício criativo "Desbotadas Cartas".
Saiba mais, conheça os outros textos:
http://encantodasletras.50webs.com/desbotadascartas.htm