Apenas Caminhando - Parte I

Tiro o óculos do rosto, esfrego os olhos e tento voltar ao foco. Brinco com os dedos em cima das teclas, sem digitar nada, não tendo o que digitar. Não havia motivo, não estava em nenhuma conversa virtual, nem escrevendo algum texto, mas entristeceu-me por um momento não ter o que digitar.

Eu estava na videolocadora. Lugar tão monótono quando cheio, ainda que especial para mim e importante para minha história, quando vazio. Quando não tínhamos computador, vinha sempre para cá, nunca com a intenção de trabalhar - trabalhar aqui não é legal, principalmente para os que tem dificuldade de interagir com desconhecidos, não por timidez, mas por impaciência mesmo. Ninguém gosta de falsos que fazem piadas ensaiadas, consequentemente levando-me a rir falsamente também, já que da outra forma seria falta de educação - para alguns é simplesmente fácil tolerar. Nunca me dei bem com a etiqueta e certamente não sou o único. Pessoas e mais pessoas entram o tempo todo, é quando preciso manter a postura, seguir as regras de convivência, falar num tom formal. A vontade de filosofar é grande, afinal, mudamos ao ponto de viver mentindo para nós e para os outros, cada segundo de cada dia. Bobagem. Se todos não fossem iguais, que graça teria ser diferente? Não tenho força de vontade suficiente para ser o tipo rebelde, não da forma radical. Em meio a esse mundo caótico e turbulento, sou um mestre Zen, alheio a questões mundiais, focado em questões pessoais. Estou dentro das músicas do Coldplay.

Um exercício legal é imaginar que estou num filme, daqueles bem escritos, com diálogos interessantes no qual o protagonista cativante sou eu. É um papel difícil. Minha forma de ver as coisas, de ser criativo, espontâneo ou internamente sarcástico, como manda a situação, é essa, quando entra a voz em off, que narra meus pensamentos secretos, geralmente constatações engraçadinhas que ninguém nunca terá a chance de escutar, o que pode ser bom ou ruim.

Se alguém escreve as falas por mim, não tenho como saber. Vez ou outra as pessoas me perguntam sobre Deus. Eu lhes digo que tenho um lado espiritual independente de religiões, pois mesmo vindo de família católica e mesmo tendo feito catequese, a coisa toda não me conquistou - não parecia muito diferente dos seres mitológicos inventados pra explicar a origem do mundo. É quando penso profundamente no que acredito sem chegar a lugar nenhum, mas é o tipo de labirinto que não precisa ser descoberto e decifrado.

Balanço a cabeça. A turbulência de ideias desconexas geralmente ocorre quando estou com sono ou desconfortável no lugar ou situação em que me encontro.

Apenas quando minha mãe ligou o alarme pensando estar desligando-o que acordei. Ela não sabia da minha escapada furtiva até aqui, provavelmente só descobriu quando viu minha cama sem a minha pessoa deitada em cima. Apostei comigo mesmo que ela ligou o alarme de propósito. Esfreguei os olhos e bocejei. Estava mesmo com sono, mas só veria uma cama após a meia-noite do dia.

O primeiro que fiz ao levantar foi um café como havia aprendido duas semanas antes. Era o pouco de cozinha que eu havia aprendido: café. Nesse caso, propositalmente forte e mal adoçado.

A segunda coisa foi conseguir uma passagem para casa mais cedo. Meus dias de moleza terminavam na segunda-feira seguinte, então não precisava trabalhar hoje. Era uma opção, mas descartei-a. Não estava preparado ainda, sabia mexer no computador, pegar os filmes e tudo mais, porém, não era isso que me assustava, e sim a responsabilidade. Não era meu início em um serviço fixo, era meu início na responsabilidade, na administração do tempo e dinheiro. Argh.

- Mãe. - chamei quando as luzes já estavam todas acesas. - Eu estou com sono.

- Por que veio para cá de manhã então? - perguntou levemente irritada enquanto ligava o computador.

- Não conseguia dormir. - admiti. - Mas agora consigo. Quer ver?

- Não, não aqui. Vá para casa e de preferência, não saia de lá. - disse jogando algumas coisas para um lado do balcão e puxando outras para o centro. Cadernos e calculadoras.

- Qualquer coisa, estou com o celular.

Ela parou e me estudou por um momento.

- Sabe do que você precisa, filho? - ficou claro que era uma pergunta retórica. - Uma namorada.

Estremeci.

- Quanto custa uma? - perguntei.

Ela riu alto.

- À longo prazo? Não tem noção...

Acabei sorrindo também, mas continuei meu plano. Tinha certeza que minha falta de atividade cerebral e física nos últimos dias se aplicava à preparação emocional para segunda-feira. Não era apenas um dia de trabalho, era muito mais.

Peguei a mochila no escritório, onde estava antes. Despedi-me de mamãe com um beijo no rosto e dei a volta no balcão, caminhando em direção à porta, a única visão da rua de quem sentava atrás do balcão, excluindo-se as pequenas janelas que ficavam nos arredores. O prédio ficava no meio de outros dois, logo, não havia muito o que ver através delas.

O frio na rua era típico do começo de inverno, aquele frio abrupto após um dia morno. Caminhar parecia confortável, distrativo. Assim o foi.

Durante minha lenta e desinteressada caminhada, percebi que não queria ir para casa dormir, estava apenas caminhando para algum lugar, sem saber para onde. Dormir de tarde fazia todo o dia parecer mal aproveitado, como se estivesse perdendo tempo. Minhas opções resumiam-se a voltar e trabalhar, encontrar algum amigo no meio do caminho, encontrar uma namorada no meio do caminho, encontrar, encontrar...

Tudo na vida parece se resumir a isso, encontrar e ser encontrado. Enquanto pensei isso, duas garotas passaram por mim, rindo de alguma coisa.

- Sério, no shopping? - indignou-se entre risos a mais alta.

- Na frente do cinema, cara, eu não acreditei! - dizia também entre risos. Pareciam estar falando mal de alguém, pelo tom.

O Shopping.

Lá era quente. Eu não corria riscos grandes de encontrar alguém indesejável - não no cinema pelo menos. Meus passos assumiram um ritmo mais rápido e determinado.

Não foi difícil manter a mente em branco até chegar lá. O estacionamento estava bem movimentado, como de costume num dia de semana. O lugar era grande, bem cuidado e lotado de pessoas, como um shopping deve ser no meio de semana. Subi uma pequena escadaria que ficava na entrada, rindo internamente de uma mãe desesperada ao tentar controlar o choro da filha que não queria ir embora.

Lembrei de mim mesmo, quando criança. Morava na cidade vizinha e era trazido aqui de vez em quando, um lugar que a meu ver na época, era o cúmulo do futurismo, era grande, cheio de coisas, impressionante. Pobre criança, eu entendo seu desespero. Mas você vai crescer e ver que em alguns países, lugares como esse são um lixo, vai ver que o mundo não é perfeito, que um dia você vai pegar seus brinquedos e lembrar de como era bom ser criança. O dia ainda não chegou para mim, mas enfim.

O hall de entrada era bem aberto, com uma lancheria pequena no meio cercada por algumas mesas e cadeiras. O corredor que levava ao cinema era o da direita, por onde fui sem hesitar. Analisei as lojas, procurando uma que chamasse a atenção, mas para aquele lado só encontrei umas de calçados, roupas e bolsas. Perdida, uma de informática.

A área do cinema era bem maior que o hall, lotada de cadeiras para suprir os vinte restaurantes e fast-foods que cercavam os visitantes. Alguns sentavam por ali em grupos, de forma que havia grandes "buracos". Finalmente na bilheteria do cinema, constatei que o único filme disponível naquele horário era "2012". Podia ser interessante ver um filme sobre o fim do mundo, onde todos morrem no final, o que leva os espectadores a questionar sua sanidade em relação ao meio ambiente, fazer pensar de novo antes de jogar uma bituca de cigarro no chão. Mas é claro que isso não ia acontecer, e o mundo ia continuar exatamente como estava antes.

Corpos inertes. A cena é grandiosa, fascinante, mas horrível. O chão treme, ora cede, ora pula, tão rápido que engole prédios ou lança tudo para o alto. No meio de fogo, fumaça e gritos, pessoas, muitas pessoas. Vidas completas, outras não, amores, mágoas, mentes brilhantes, outras nem tanto, extrovertidos, sarcásticos, solitários ou não. Todas, resumidas a uma simples cena, em que nenhum pequeno detalhe de suas vidas tem importância, a única coisa que importa é a família desajustada sobrevoando o local e a musiquinha heróica que surge sempre que desviam de algo.

Forma estranha de entretenimento, ver as pessoas morrerem.

O filme acaba, todos se salvam - o mundo acaba, mas de alguma forma isso é uma boa notícia. Eu sempre quis ver algo sério sobre isso, algo pesado, em que as mortes realmente chocassem, e as pessoas não fossem apenas formigas sempre esmagadas por carros e muito, muito cimento. De certa forma, esmagamos formigas todos os dias, sem perceber. Está aí um pensamento interessante. Será que elas pensam que menosprezamos seu trabalho?

Saio do cinema resolvido a tomar um refrigerante antes de ir para casa. Apenas duas pessoas estão na fila, mesmo assim me parece um atraso chatinho. Pego uma nota do bolso da calça e espero ali, distraído olhando os preços dos sorvetes.

Paguei por uma lata de refrigerante e sentei numa das várias mesas vazias mais próximas. A mesa parecia grande demais apenas para uma pessoa - estava mais vazio que antes. Desconcentrei-me brincando com os dedos na mesa, batucando um solo de guitarra, que por motivos óbvios, ficou indistinguível.

Talvez eu precisasse apenas de um pouco de música, The Killers, Coldplay talvez. Quem sabe, comprar uma palheta, perdi a que comprei na semana anterior. Suspirei.

- Você não tem ideia de como me irritou, não tem ideia! - uma voz feminina furiosa se aproximou, e mesmo não tendo nada a ver comigo, assumi uma postura cautelosa. Não foi tão alto, mas como não haviam muitas conversas, sua voz se destacou facilmente. Virei a cabeça para olhar quem falava. Sempre achei engraçado como as pessoas gostam de parar para observar brigas.

Uma garota visivelmente irritada, vindo em minha direção, mas não exatamente para mim. Um garoto vinha atrás dela, com uma expressão que me fez perguntar que diabos tinha feito de errado. Ela não olhava para ele, que quando resolveu abrir a boca para falar, foi interrompido como se ela tivesse previsto.

- Não pode falar nada que mude alguma coisa, e pare de me seguir. Eu não vou conversar com você agora, nem depois, acabou. - ela parou e virou-se para ele. - Vai conversar com ela. - murmurou entre dentes, agora bem perto de onde eu estava.

Uma pequena história se formou em minha cabeça, sobre o que poderia ter acontecido e apesar de provavelmente estar certa, ignorei-a.

O garoto percebeu sua derrota ali, apenas deixou os ombros caírem e deu as costas, caminhando para longe, sem parecer se importar muito. Ela respirou fundo aliviada, ignorando as poucas pessoas que pararam para olhar. Então deu os dois passos que faltava para a minha mesa e sentou na cadeira perto de mim.

Por um momento fiquei apenas olhando para ela, esperando alguma reação. Tomei um gole do refri, engolindo uma risada junto com o líquido gaseificado.

- Prazer. - arrisquei.

Ela estava distante brincando com os dedos embaixo da mesa.

- Prazer. - quase sorriu.

- A vida é injusta, né? - brinquei, não tendo certeza se havia soado desagradável.

- Concordo plenamente em todos os sentidos possíveis. - soltou em um suspiro.

Levantou o olhar, começando a desdenhar da minha tentativa de iniciar uma conversação. Era moreninha, com o cabelo escuro descendo um pouco sobre os ombros. Bonita, com os olhos certamente castanho escuros me estudando antes que resolvesse falar. Bem vestida, provavelmente cheirosa também - jurei ter sentido um perfume doce, apesar da pequena distância não me permitir confirmar de certeza. Talvez no segundo encontro.

- O que faz você pensar assim? - perguntou.

- Longa história. – disse-lhe. Uma história que até então, não revelou seu propósito.

Silêncio se fez por alguns segundos. Brinquei com o solo de guitarra batucado novamente, quando uma pergunta óbvia me ocorreu.

- O que ele fez? – já tinha meia resposta na cabeça.

- Achei que não fosse perguntar. – disse rindo para si mesma. – Ele não fez nada de mais, só estava conversando com uma garota, que eu nunca gostei muito. Disseram-me que eles ficaram, mas não acreditei, até agora. Foi só começar a briga que ele se entregou. Mas nem devia ter começado, foi bom ter acabado.

- A briga foi só fingimento?

- Claro que não, acha que é legal ser traída?

- Não parece tão preocupada assim.

Ela sorriu com certo receio, pensando em alguma outra coisa enquanto encarava um casal que passou por nosso lado. Suspirou e continuou falando com o olhar distante.

- Numa festa, é muito fácil trair se você não se importa com quem está. Cheguei muito perto de fazer o mesmo, então foi natural termos terminado. Não foi ruim de forma alguma.

- Ainda assim, "nada de mais"?

- Ele nunca teve minha confiança mesmo.

Silêncio novamente. Observei o casal que ela encarou na frente da bilheteria, sorridentes, abraçados. A sensação deve ser boa...

Meus pensamentos foram interrompidos pelo toque do celular dela. Surpreendentemente, era uma música do The Cure. Sem dar muita atenção, atendeu-o segundos depois de deixar a música tocar um pouco.

- Alô... sério? Não me importo... tudo bem, beijos. - e desligou.

Era impossível inventar uma história ali.

- Seria forçar intimidade se perguntasse quem era? - franzi o cenho.

Ela sorriu, um pouco misteriosa. Pela segunda vez, reagiu à uma pergunta coçando a cabeça e fechando os olhos.

- Era minha mãe. Vamos na cidade vizinha fazer umas compras amanhã de tarde. Eu disse que não me importava em ir de ônibus.

- Há tempos que não vou lá. - comentei, lembrando da minha infância. - Na verdade, há tempos que não faço nada que valesse a pena ressaltar.

- Às vezes basta fazer uma força para deixar sua vida interessante. Basta ser interessante eu acho. - parecia não acreditar em suas próprias palavras.

- Posso tentar isso algum dia.

- Mas não é questão de ser interessante para as pessoas, digo para si mesmo, entende?

Pensei no que ela disse, quase montei um argumento, mas logo, voltei minha atenção ao fato de estar conversando filosofia com uma estranha. Dei de ombros, sorrindo um pouco.

- O que foi? - perguntou, claramente mais descontraída na conversa.

- Agora deve o momento em que me identifico. - quase foi uma pergunta da minha parte.

- Como assim?

- Você tem uma música do The Cure no celular. - dei ênfase ao fato como se fosse uma história fantástica. - Quem coloca uma música deles como toque? Para uma garota que conheci sem querer, você é muito interessante.

- Obrigada. - agradeceu gentilmente. - Você também é, um pouco.

- Um pouco. - repeti.

- The Cure é a melhor banda do mundo, se quer saber.

- Já escutou Radiohead?

- Não.

- Então ainda não conhece a melhor banda do mundo.

Sorrimos, apreciando a brincadeira. Ficamos em silêncio mais uma vez, quando lembrei que nem devia estar no shopping e sim em casa, como havia dito à mamãe. A rotina de chegar em casa não era animadora: meu cansaço agora, somado à típica sonolência pós-banho, somada a típica sonolência pós-refeição, juntas, formam uma sonolência completa, com sobra. Sem contar a sonolência que já surge ao pensar dormir. Queria fazer algo que realmente me fizesse sentir... acordado.

- Eu conheço você? - ela perguntou repentinamente, juntando as sobrancelhas e apertando os olhos.

- Essa é velha...

- Sério.

Também juntei as sobrancelhas.

- Conhece alguém que eu conheço? - ela desviou o olhar para o teto, com a mão no queixo.

- Não sei... - murmurei, ainda tentando.

- Ah! - esperei ela continuar. - Você trabalha na videolocadora? - foi quase um chute.

- Não chamaria de trabalho... Já me viu lá?

- Poucas vezes. Lembro que uma vez estava com um violão preto no balcão, mas foi um dia que não entrei, só vi de longe. Vou poucas vezes lá, raramente arranjo tempo para ver filmes, mesmo que goste muito.

- Não achou que eu era retardado por causa do violão? - sempre tive vontade de perguntar isso para os clientes que me viam ter que soltar o instrumento em cima do balcão para depois atendê-los.

- Achei meio corajoso até. Nunca vi música ao vivo em nenhuma outra locadora.

- Anti-ético. - lembrei do que estava pensando no começo do dia.

Não imaginava seriamente que eu passasse uma imagem corajosa enquanto brincava com o violão lá, dedilhando notar inventadas e cantarolando mentalmente palavras bobinhas que por serem criações da minha cabeça, sempre pareciam ruins. Como seria muito mais tranquilo levar o violão para a pracinha de noite, se nesse horário não fosse tão perigoso rondar por lá.

- No que está pensando? - perguntou-me de repente.

- Em tocar violão e olhar as estrelas. - respondi instintivamente, sem perceber que a pergunta foi estranha. Assim como a pergunta. - E você?

- Em olhar as vitrines. - disse calmamente.

- Igualmente interessante. - brinquei.

Comprimiu um sorriso à uma careta bonitinha. Seu olhar viajou pelo salão até para nos posteres dos filmes a serem exibidos.

- Qual você viu? - quis saber.

- "2012". - confessei, como se fosse algo vergonhoso de se admitir. - Não gostei.

- Por que não?

- Muito... fútil. É apenas diversão, vendo assim ele funciona, mas não deixei de me decepcionar um pouco com mais uma história sobre heróis desajustados no fim do mundo.

Concordou com um aceno de cabeça.

- Heróis desajustados no fim do mundo. - repetiu minha expressão. - Um bom subnick para o MSN.

- Ou um bom epitáfio. - sorri. Divaguei rapidamente sobre o assunto, o que me levou a mudar bruscamente o rumo da conversa - Meu conceito de vida é bem menos coeso. - resolvi falar, sem esperar reação.

- Está falando sobre eu tentar ser interessante?

- Mais ou menos. - apoiei os cotovelos na mesa. - Às vezes acho muito fácil encarar a vida como algo finito e sem sentido.

- Cada um encontra um sentido uma hora ou outra. Da mesma forma, não é difícil querer muito algo e lutar por essa coisa até encontrá-la.

- Fala de bens materiais?

- Claro que não. Não morreria feliz por ter comprado uma mansão ou... um namorado. - compartilhamos uma risada. - Meu sentido da vida é meio egocêntrico, seria algo bem pessoal e individual. Minha própria satisfação.

- Entendo, é difícil pensar no coletivo. Não sei se entendi, mas enfim, ninguém nunca entende nada. Não tenho nem uma pista do que seria uma boa vida para mim. Deixar saudades quando morrer, talvez.

- Ou não. Um tirano pode deixar saudades para seus seguidores, mesmo não tendo sido bom para as outras pessoas.

- É, não tinha pensado dessa forma.

- E uau. - também aproximou-se, apoiando os cotovelos na mesa. - "Ninguém nunca entende nada." Que tanta negação na mesma frase.

- Saiu sem querer. Sou um cara feliz, só não sei disso ainda.

Ela sorriu, fazendo novamente aquilo - coçou a cabeça e fechou os olhos. Perguntei-me o que aquilo significava. À esse ponto, não custava nada.

- Por que você faz isso?

- O quê? - parecia surpresa. - Isso? - e fez o movimento novamente.

- É. - sorri.

- Mania. Geralmente sai sem querer quando estou nervosa.

- Que motivos tem para estar nervosa? - perguntei rindo.

Ela apenas sorriu dessa vez, o que me fez crer que deveria deixar o assunto de lado.

- Ei. - chamou meu olhar, que vagava em alguma cadeira vazia e desfocada. - Sei que isso não é bem algo que os garotos gostam de fazer, mas se importa em olhar as vitrines comigo?

Franzi a testa.

- Garotos fazem tais coisas se existe uma segunda intenção, eu sei, mas espero que você seja uma exceção. - brincou.

- Garanto que minha única intenção é se divertir. - confessei.

- Isso pode significar várias coisas.

- Você que abriu o leque de opções. - brinquei e me expliquei. - Nesse caso, aproveitar sua companhia enquanto você olha para as vitrines fazendo comentários que provavelmente vou ignorar.

Mais uma vez ela sorriu e me senti engraçado.

- Pelo menos você é sincero. - disse.

- Pelo menos isso.

Levantamos, e perguntei por onde queria ir. Caminhamos primeiro por um corredor que tinha apenas lojas de informática. Ela contou uma história engraçada que aconteceu no mês anterior, quando sua mãe foi clicar em um arquivo e arrastou-o para dentro de uma pasta. Quando foi fazer um trabalho, depois que sua mãe saiu, deletou sem querer aquela pasta cheia de trabalhos importantes que parecia ser apenas uma vazia no lugar errado, ou seja, a culpa de toda a perda foi dela, sem discussão. Contava de um jeito engraçado, charmoso, sua voz era poderosa.

Seus comentários iam além do esperado - dizia "ei, essa blusa me lembra uma tarde ensoladara." Criticou a capa de uma revista masculina que estava a mostra na banca, uma que tinha os dizeres "Transe mais no verão". Disse que os rapazes são praticamente forçados a serem machistas por causa de coisas assim, sendo poucos os que se salvavam.

Reclamou dos livros clássicos brasileiros quando passamos pela livraria. Gostou de alguns, os que entendia, pois não podia julgar os que nem leu até o final por causa da linguagem estranha. Não gostava da tristeza sempre presente por lá, histórias onde alguém sempre morria e tal morte não era usada para provar nada, era apenas mais uma morte.

- Talvez a intenção seja essa. - eu disse. - Os autores dessa época geralmente eram melancólicos, queriam dizer que a morte era seca, não tinha nada depois.

- Não foi isso que eu quis dizer. Existe uma diferença entre melancolia e tristeza. Eu sou melancólica por exemplo, tenho essa visão diferente e meio desanimada do mundo e das pessoas, mas não sou triste.

- Para compensar, os escritores românticos exageravam.

- Exagero é pouco... - riu. - Já leu Iracema? É bonitinho, mas aquela coisa da mulher sempre ganhar da natureza, sempre ser mais bela, mais suave, é difícil de engolir. Hoje não dá pra ser um pouquinho piegas que já é considerado fora da casa. Imagina se aquele livro fosse lançado nos dias de hoje?

- Iracema é escrito como prosa poética, faz sentido ser forçado assim. Mas concordo com você, hoje não dá pra ser romântico às antigas.

- Uma pena. - finalizou, enquanto ainda analisávamos as capas da vitrine.

Reconheci um livro de suspense que li sobre numa revista, achei interessante a capa de um baseado em fatos reais que não havia ouvido falar. Ri de um título engraçado de um daqueles supostamente ditados por espíritos, o que foi irônico.

Ela analisou meu olhar interessado.

- Quer entrar aqui? - perguntou-me.

- Vamos. Talvez compre alguma coisa. - Aquele livro de suspense me interessou.

Entramos, e rapidamente uma atendente veio até nós.

- Boa tarde, o que desejam? - perguntou tão adoravelmente que parecia sinceramente querer saber.

- Quanto custa aquele livro com a capa preta lá da vitrine?

- Veremos. - e foi lá buscá-lo.

- Ei. - cutucou meu braço de leve. - Será que eles têm algum livro de contos? - perguntou-me entusiasmada, quando percebi que não sabia seu nome.

- Ei. - devolvi a interjeição em tom brincalhão. - Qual é o seu nome?

- Ah, verdade. Olha só o que fomos esquecer. É Aline. E o seu?

- Jack.

- Sério?

- Yep.

- Sério?

- Não, é só um apelido. - sorri. - É Diego.

- Ah, bom. - sorriu também. - Isso é engraçado.

- O quê é engraçado? - sabia que se referia à meu apelido.

- Isso. O aqui e agora, o fato de que realmente estou me divertindo.

Demorei um segundo a mais que o necessário para responder.

- Também vejo graça. - comecei. - Mês passado eu não teria ideia de como seria ter um encontro com uma garota, de como convidar para sair, tudo mais... também não sabia o quão pior seria um encontro às cegas. Como agir, o que falar. E cá estou. Não sei se posso chamar de encontro, nem mesmo às cegas, mas a parte de ser engraçado é inegável.

A moça que nos atendeu na entrada voltou com o livro na mão.

- Custa 28 reais. - ela não hesitou, o que me levou a crer que estava barato mesmo.

- Vou levar. - disse-lhe entregando trinta reais que já estavam no gatilho.

- Já coloco numa sacola para você.

- Obrigado. - em seguida, voltei-me à Aline. - O que você tinha perguntado? Antes de eu perguntar seu nome?

- Esqueci.

- Pronto. - a moça voltou com o livro na sacola e o troco. - A sua namorada não quer ver algo?

Trocamos um olhar constrangido.

- Não estamos... juntos. - falei calmamente.

- Depende de como interpreta "juntos". - ela brincou.

- Ah, perdão. - a moça sorriu com sinceridade. - Ainda assim, quer olhar algo?

Ela pensou por um momento.

- Não, obrigado. Vamos dar mais uma volta.

- O que a faz pensar que quero dar mais uma volta? - questionei brincando.

- Intuição diz tudo. Afinal, você quer?

- Quero. Mas não seja tão convencida.

A moça sorriu.

- Não estão juntos agora, mas logo estarão. - disse-nos.

- Como sabe? - perguntei.

- Intuição. - e trocou um olhar com Aline. Fico surpreso com a habilidade feminina de conversar por telepatia.

- Como não sou mentalista, prefiro retirar-me. - direcionei-me até a porta, como uma criança manhosa. Em seguida deixei o teatro de lado. - Obrigado, moça.

- Não tem de quê. - sorriu cordialmente.

- Até mais. - Aline despediu-se juntando as duas mãos à altura do peito.

Ao meu lado novamente, de volta ao corredor, rimos ao mesmo tempo. Caminhamos pelo resto do corredor em silêncio, até chegar no Hall de entrada, um pouco mais cheio do que quando cheguei. Uma criança brincava na porta automática, correndo na frente do sensor cada vez que ela ameaçava fechar.

- Que pentelho. - ela quebrou o silêncio, referindo-se à criança. - Você vai para onde agora?

- Casa. Provavelmente. Você?

- Também.

- Vai para a minha casa?

- Não, credo. - riu descontraídamente. - Você é engraçado.

- Não sou bom com elogios, vai me deixar com vergonha. - disse, talvez transparecendo demais que noventa por cento da piada era verdade.

- Não se importa se eu acompanhar você até uma parte do caminho?

- Não, não me importo.

Jack Lopes
Enviado por Jack Lopes em 01/08/2010
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