= Trajetória 6 =

Parte 10

“Minha alma amanheceu em paz.

Sem dúvida,

iniciava ali o meu despertar

espiritual”

Naquela manhã, tudo parecia lindo. Na árvore, perto da janela de meu quarto, ouvi um joão-de-barro, que cantava alegremente. Há muito me havia esquecido da existência dos pássaros, até mesmo da natureza. Como é que podemos esquecermos de olhar em nossa volta, e ouvir as mensagens divinas? As enfermeiras que me atendiam, eu as considerava verdadeiras samaritanas; faziam-me ver que as pessoas, não são más. O bom velhinho certamente me diria, neste momento: “Conhecendo o seu semelhante, conhecerá o universo, conhecendo a se mesmo, conhecerá a Deus.’’ Naquela mesma manhã o médico em sua visita costumeira, disse-me:_ Rapaz, você teve muita sorte. Vou lhe dar alta. Tudo que a medicina podia fazer foi feito. O problema agora é seu e do AA. Lembre-se disso, ao sair daqui. Agradeci ao médico, às enfermeiras. Troquei minha roupa, eu não tinha bagagem mesmo! Peguei o telefone liguei para o Nilton. Queria me despedir dele, este porém, pediu que eu o esperasse no saguão do hospital. Minutos depois, ele e sua esposa Nádia chegavam. O casal, com toda a bondade que lhe era peculiar, abraçou-me com força. Pude ver que as lágrimas rolavam em seus rosto. Senti, mais do que nunca, que aquele casal era minha família Nilton ajudou-me a subir em seu carro e, sem explicar nada, levou-me para sua casa e foi logo dizendo, com autoridade:_ Você vai ficar aqui. Está decidido. Quando você estiver em condições de enfrentar a vida arrumarei uma casa para você, perto da minha empresa. Ainda vai trabalhar pra mim, certo, amigo?

Meus olhos fizeram maré cheia, isso só podia ser obra de Deus. Depois de aprontar tanto pela vida, ainda assim, eu teria mais uma chance. Nilton não media sacrifícios. Levava-me todos os dias ao AA Ali aprendi mais do que aprendera em toda minha a vida. Aprendi que a humildade é o mais auto grau de sabedoria. Ouvi vários depoimentos. Na verdade, não me assustaram, mas fizeram com que me identificasse com a irmandade.

A companheira Maria Olívia contou uma história, comovente, a respeito de uma família, cujo pai era alcoólatra e tinha uma menina que sonhava todos os anos com um presente de Natal. Por mais que o pai tentasse realizar esse sonho, quando chegava o Natal, ele bebia, perdendo o controle e acabava gastando todo o seu pouco dinheiro. Mais um Natal, mais uma frustração. Depois de vários percalços, o pai resolveu lutar; por mais difícil que fosse, ele iria lutar, achando que o mais importante para a sua filha era o presente. Guardou o dinheiro com cuidado, e lá se foi, feliz, à procura do sonho da menina. O dinheiro não era muito, mas dava para comprar, pelo menos, uma boneca. Chegando à loja, sentia-se o pai mais feliz do mundo, pois estava prestes a realizar o sonho da pessoa mais importante do mundo: sua filha. Comprou uma pequena boneca, mandou que fizessem o embrulho mais bonito que pudessem. Pegou aquele presente e saiu contente pela rua. Estava tão feliz que cumprimentou a todos os que por ele passavam.

Chegando à casa com a boneca, apertando-a ao peito, procurou a filha, mas ela já havia dormido. Com a boneca junto ao peito, sentou-se no sofá à espera do amanhecer. Queria ver e sentir o sorriso de felicidade, de quem sonhara por tanto tempo. A emoção do pai, entretanto foi mais forte que seu coração enfraquecido pela vida irregular que levava. Um ataque cardíaco tirou lhe o prazer da entrega. Morreu sentado com a boneca colada ao peito. Sua filhinha acordou cedo, veio correndo para procurar seu presente viu seu pai sentado, com um embrulho. Gritou de alegria: _Papai, papai, você comprou meu presente! Quando chegou mais perto, compreendeu toda a situação. Começou a chorar e disse:_ Papai Noel, agora eu entendo, você não me deu um presente, você trocou o presente pela vida de meu papai, e este preço, Papai Noel, eu não quero.

Senti que a mensagem era clara, pois por maiores que sejam os sonhos dos que amam, nunca são tão importante que valham as nossas vidas. A vida continuava. Eu estava morando em uma casa muito boa, perto da empresa de Nilton. Eu trabalhava com toda a dedicação. Pouco tempo depois, me tornei chefe de transporte Tinha um gordo salário, mesmo assim exista um grande vazio dentro de mim. Fui á reunião de Alcoólicos Anônimos. Prestei atenção em tudo que acontecia. Um companheiro se levantou e começou a falar sobre o oitavo passo sugerido pela Irmandade. Ele era muito claro, quando dizia: Deveríamos fazer uma relação de todas as pessoas que prejudicamos; consequentemente deveríamos procurá-las e pedir perdão. Ao término da reunião, procurei o companheiro Ari, um velho mentor. Contei-lhe todo o meu drama; falei sobre minha família, e o dilema que me afligia. Na verdade, eu era orgulhoso para procurar Suélen. Ari nosso velho mentor ouviu-me com atenção, e finalmente disse:_ O orgulho é o mais cruel carrasco, capaz de matar o mais puro dos sentimentos. Filho, vou lhe contar uma história: Em uma pequena cidade, duas famílias de tradição e princípios, uniram os seus filhos pelo santo matrimônio. Ainda recém-casados se desentenderam. Ele disse:_ Nunca mais entrarei em nosso quarto!_ Ela, por sua vez, retrucou:_ Se você aparecer lá, eu juro que abandono o quarto! Movidos pelo calor da desavença, juraram nunca mais perdoarem um ao outro.

Passaram cinqüenta anos e não se ouvia conversa nem sorriso. O orgulho era mudo e surdo. O marido com a saúde precária, morreu. Sua esposa tomada pela mais completa solidão, deprimiu-se, até que encontraram-na morta. Ao lado de sua cama, encontraram dois diários. Em seus registros haviam os mesmos sonhos. No diário dele, havia o seguinte relato: “Esta noite, ouvi quando você se levantou. Meu coração bateu forte, senti como um colegial à espera de sua primeira namorada. Ficou mesmo no sonho. A frustração continuava, minha companheira.”

No outro diário, mais uma narrativa surpreendente: _”Levantei-me esta noite, porque queria procurá-lo. Meu coração não podia mais suportar a solidão. Sonhava com seus carinhos, queria apenas ser amada. O medo de ser rejeitada, me impediu. Voltei para cama e chorei a noite inteira. Meu Deus! Como é difícil suportar sozinha tanto amor.” Morreram com seu orgulho, deixando de escrever os melhores sonhos em seus diários. Ari o velho mentor, após a narrativa, olhou para mim com carinho. Ele me disse: _Não desperdice a felicidade nem mesmo por um segundo. Pense nisso!

Aí estava a resposta para o meu vazio. Era hora de pedir o perdão e assim resgatar a minha dívida. Fui buscar minha família. Um receio enorme atormentava minha alma. O desejo de encontrar meus familiares era tão forte, que chegava a doer. Chegando à casa de meu sogro, fui tratado com hostilidade, mas, quando as crianças, já crescidas, me viram, correram ao meu encontro, e entre beijos, choro e abraços, senti e vivi a maior felicidade que um homem poderia viver. Eu não acreditava que aquilo tudo fosse verdade; depois de submetê-los a tanta dor, sentia que o amor sobrepujava os sofrimentos. Perguntei às crianças por Suélen. Maria Clara respondeu:_ Desde que você partiu, mamãe veio morar com a gente, entrou em depressão. Foi ficando triste, sempre com os olhos fixos no nada. Como não tínhamos dinheiro para pagar o tratamento, fomos obrigados a interná-la numa clínica de repouso. Se tivéssemos dinheiro, mamãe estaria curada, mas o vovô é tão pobre! _Será que o senhor pode fazer alguma coisa por ela?

_Vamos todos visitar sua mãe. Se houver jeito, vamos levá-la conosco. Nesse momento as crianças choraram, como um choro de esperança, não de tristeza. Chegamos ao hospital. Meu coração acelerava como se eu não acreditasse que ali estava a minha Suélen, meu único e primeiro amor. Ao chegar ao quarto, eu via, mas não queria acreditar: era ela, sim, era Suélen sentada de frente a uma janela com os olhos perdidos no vazio. Meu primeiro impulso foi pegá-la em meus braços, beijá-la, pedir perdão, porque eu estava consciente de que eu era o único culpado por todo o mal que aconteceu em nossa família. Coloquei-a no carro e levei-a para um hospital especializado, na capital. Ela permaneceu durante muito tempo, recebendo o melhor tratamento, que podíamos proporcionar-lhe.

Algum tempo depois, chegou o grande dia, em que iríamos buscá-la na clínica. As crianças não continham sua alegria. Pegamos Suélen, e fomos para casa. Ela estava bem melhor, embora ainda longe de seu estado normal. Com a ajuda das crianças, estávamos dispostos a despertar nela a vontade de viver.

Assim, começamos a reconstruir nossos pedaços de vida.

Hoje, dia dezessete de março, um ano depois, Suélen acordou cedo, bem disposta; muito feliz, beijou e abençoou as crianças, depois me abraçou, beijou minha boca pedindo-me perdão. Nesta hora, chorei, chorei de remorso, pois aquele pedido de desculpa foi para mim o maior sinal de humildade. Meu Deus, de todos nós, Suélen foi a que mais perdeu, e tudo, por minha culpa, minha máxima culpa! Então Suélen, carinhosamente disse-me:_ Hoje, estou vivendo os melhores dias de minha vida. Graças a Deus, conseguimos resgatar a nossa família. Lembrem-se que só o amor é capaz de libertar. Para que eu sinta plenamente realizada, continuou Suélen, vamos juntos à lagoa, lá onde mora o coelhinho. Subiremos juntos a serra e lá de cima, abraçados, assistiremos ao pôr do sol. Tenho certeza que, naquele momento, Deus estará presente e junto a nós. Abracei-a em silêncio, e a beije com ternura. Senti que estávamos vivendo o primeiro dia do resto de nossas vidas. Subi aqui no monte, talvez para ficar perto de Deus. Ali, sozinho poderia ser honesto comigo mesmo. No A.A, aprendi uma frase que o bom velhinho sempre recitava e só agora conheço o verdadeiro significado. “Viva e deixe viver” Ao voltar para casa, embora estivesse com o coração em conflito com o meu passado, estava feliz pelo últimos acontecimentos e, antes que o dito cujo me maltratasse, meditei como nunca a oração que eu aprendera em Alcoólicos Anônimo:

Concedei-nos, Senhor, a serenidade necessária, para aceitar as coisas que não podemos modificar, coragem para modificar aquelas que podemos e sabedoria para distinguir uma das outras.

Serenidade, coragem e sabedoria, são metas que alcançadas, nos conduzem à vida plena.

Lembrem-se que mesmo que o mundo esteja desabando em nossas cabeças, deveremos sempre acreditar que “Dias melhores virão.”

FELICIDADE

Felicidade é o reencontro.

É voltar para si mesmo.

É chegar e sorrir gostoso.

Despir-se do orgulho

Envolvido.

Descobrir ainda

Escondido,

No cantinho da alma

Esquecido,

Um infinito lá num

Canto,

De magia, de encanto

Felicidade é amor...

CONFLITO DE VALORES

A vaidade permanente

No egoísmo doentio

Só resta a dor da gente

E um coração vazio.

O tudo parece distante,

O que tem, vira migalhas

A busca alucinada do ter

Jogando o ser ao acaso.

É como transpor o horizonte,

Ao chegar ao topo do monte

Eleva os olhos à imensidão.

Descobre que a solidão é constante.

Consegue-se muito ao dia

E o egoísmo que diria?

Certamente nos cobraria

Mais isso, mais aquilo

E tudo que temos de nada valeria.

De repente, um pesadelo

Daquele que apavora a gente

E a vida bate de frente,

Cortando o caminho abruptamente.

Só assim desperta a alma,

O ser se faz importante.

Sorrateiramente, Deus se faz presente

Mostrando a toda gente,

Que o amor oxigena a alma;

É o lenitivo da vida.

Da cor, perfume e gosto

É a essência da vida

Sem humildade o homem

Em seu orgulho consome

Restando apenas a escuridão.

TONHO TAVARES

ANTÔNIO TAVARES
Enviado por ANTÔNIO TAVARES em 31/07/2010
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