HANNA
A livraria estava vazia como sempre. E sinceramente a prefiro assim, dá mais concentração e dessa maneira escolho melhores livros. Semana passada mesmo estava vasculhando uma estante e achei um livro fantástico. Era uma edição antiga da escritora Stein, uma verdadeira relíquia. Por isso gosto desse lugar. Apesar de ser um tanto sombrio e empoeirado. Não entendo como um estabelecimento onde o cliente tem que ler possa ser tão escuro. Talvez seja para combinar com a rua. Aqui também é mais frio que do lado de fora. Mas eu gosto assim mesmo. A dona da livraria é uma senhora de idade. Tem o cabelo todo branquinho, é magra, usa uns óculos engraçados e lê o tempo todo. Às vezes sento-me junto a ela para conversar ou ler. Falamos a respeito de tudo, ficamos horas e horas conversando. Ela é muito simpática e gentil.
Naquele dia eu não queria conversa. Estava chateada porque não conseguia inspiração para o meu livro. Vinha tentando escrever há meses, sem êxito algum. Estava sem vontade nem assunto para conversar. Achei melhor ir até à estante antiga, de que falei antes, onde era mais escuro que nos outros ambientes. Comecei a folhear uns livros sem muito interesse. Lia um pouco da história e parava achando o assunto totalmente sem graça. E foi em meio a esse árduo trabalho que vi um livro, na parte superior da estante, cuja capa me agradou. Apesar de não escolher por capa ou título, peguei-o ainda desanimada e então ouvi uma voz atrás de mim:
- É sem dúvida um bom livro!
Virei-me rapidamente, meio desajeitada, e vi uma mulher alta com roupas pretas que sorria brincalhona para mim. Fiquei totalmente sem graça e disse-lhe em seguida sem olhar para o livro:
- É mesmo? Tem uma história bonita?
Ela me olhou curiosa e disse:
- É uma história fantástica. Você nunca ouviu falar antes?
Esta pergunta me fez olhar para o exemplar que tinha em minhas mãos.
- Mas é um livro de matemática? - respondi, surpresa.
- E de 5ª série - disse-me rindo.
Ficamos um tempo em silêncio e quando pensei em dizer alguma coisa ela se adiantou:
- Preciso ir. Foi um prazer conhecê-la!
Saiu da mesma maneira que chegou. Não tive tempo nem de responder: "O prazer foi todo meu". Fiquei um pouco aérea com o livro na mão, depois saí para caminhar um pouco. Passei em frente de um café e resolvi entrar. O dia frio lutava contra o sol fraco que iluminava o ambiente. Eu estava tranqüila e posso até arriscar dizer que sentia-me contente. Para meu espanto peguei-me pensando na mulher da livraria. Ela era tão cheia de vida. Trazia no olhar uma lucidez que embriagava e uma intimidade mística com o próprio corpo. Tinha o cabelo preto acima do ombro, olhos azuis e pele branca. E por uma razão que não me passava pela cabeça eu gostaria de vê-la de novo. Parecia uma das visões do livro Noite Na Taverna. Era como se uma nuvem de fumaça a envolvesse deixando seu corpo cada vez mais leve até parecer flutuar.
Saí do café às 11h e fui para casa. Não pensava em ninguém, só queria terminar um trabalho para arrumar o dinheiro do aluguel. Tenho uma casa fora da cidade, mas só gosto de lá quando minha vida está de cabeça para baixo. E ela não está assim no momento. Meu apartamento é muito bom e também barato. Como o bairro é um pouco sombrio o preço tende a cair mesmo. E apesar de morar sozinha as sombras não me metem medo. É um espaço só meu, onde escrevo, faço trabalhos para algumas empresas e leio meus livros tranqüilamente. Estou com 27 anos e até me sinto uma felizarda pela vida que levo. Só que tem gente que não gosta do meu jeito de ser. Tive até um amigo que sumiu da minha vida dizendo que eu era um tédio e que não me agüentava mais. Chegamos a ter um caso, é verdade, e julguei estar apaixonada. Mas quando ele se foi me senti feliz. Pude respirar com mais liberdade sem ter medo de que meu suspiro fosse alto e viesse a acordá-lo. Não é certo você abrir seu mundo para alguém e ficar se reprimindo porque a pessoa não gostou do que viu, depois disso preferi me isolar um pouco das pessoas. É claro que tenho amigos, mas agora tomo mais cuidado com as minhas escolhas.
Um dia no cinema com uma amiga, vendo um filme de origem estrangeira, me vi diante de uma lembrança. Estava entretida olhando à tela quando minha atenção foi chamada por uma pessoa sentada duas fileiras a minha frente. Não pude ver seu rosto pois, como sabem, o cinema fica escuro mesmo não tendo tanta gente. Não sei bem o que era mas tinha algo de semelhante com a mulher de dois meses atrás na livraria. Passei o filme inteiro olhando para ela e não via a hora da sessão acabar para que as luzes acendessem. Quando finalmente terminou minha frustração foi imediata, pois não era quem eu pensava.
Saímos do cinema por volta das 22h, e minha amiga sugeriu que fôssemos tomar alguma coisa. Achei boa idéia, pois não conseguiria dormir se fosse para casa e uma vodca, com aquele frio, cairia muito bem. Chegamos ao barzinho às 22h30. Escolhemos um local mais perto de casa para poder voltar caminhando um pouco. Não conhecia aquele bar ainda, mas gostei muito do ambiente: calmo e aconchegante. E apesar de ser quarta-feira, ele mantinha-se cheio de gente alegre e bonita. A energia positiva que vinha daquelas pessoas acabou nos contagiando. Conversamos animadamente por um bom tempo. Minha amiga falava do ex-namorado, enquanto eu ria muito vendo que o mesmo havia acontecido nos meus relacionamentos antigos. Só que de repente ela parou de falar e ficou olhando para alguma coisa atrás de mim. Imediatamente parei de rir achando que ela estava chateada comigo, mas vi que este não era o motivo quando ouvi uma voz familiar. Tive medo de me virar, queria sumir naquele momento para que ninguém pudesse ver meu embaraço. Mas também sentia um desejo imenso de ver mais uma vez a nuvem que dançava em meus pensamentos com insistência. Olhei para trás e sorri-lhe constrangida e encantada.
- Que mundo pequeno, hein? - ela disse.
- Realmente muito pequeno! - respondi pensando que no lugar de "pequeno" seria melhor dizer "maravilhoso".
- Tem lido muito ultimamente?
- Tenho sim, mas agora prestando atenção ao título.
Ela ria como se fosse algo muito engraçado e depois se desculpou por não ter se apresentado a minha amiga. Disse que seu nome era Hanna mas não perguntou o meu. Entendi que não queria deixar claro o fato de não termos sido apresentadas ainda. Então ficamos conversando um pouco e quando minha amiga pronunciou meu nome ela me olhou e seus olhos procuravam na minha alma alguma ligação com o nome. Talvez ela tenha me chamado por muitos outros ou quem sabe eu estivesse fantasiando demais.
- Tem ido muito à livraria, Marie? - perguntou pronunciando meu nome com satisfação.
- Com freqüência. Gosto muito daquele lugar e mesmo não comprando livros toda semana eu sempre apareço para conversar com a dona que se tornou minha amiga. E você?
- Depois daquela vez voltei no outro dia no mesmo horário. E faz uma semana que comprei um romance novo. Conversei também com a dona e pensei em pedir seu telefone, mas não achei conveniente.
Parecia um sonho. Também eu havia pensado em ir à livraria naqueles dias. Não fui. Não sabia o que dizer se a encontrasse, tinha medo da frustração de não encontrar e me preocupava com o que ela iria pensar a meu respeito. Que os deuses um dia me concedam a coragem dos heróis!
- Bom, tenho que ir pois estou com um amigo. Ele já deve estar preocupado com minha demora. Podemos terminar a conversa depois. Você me daria novamente o número do seu telefone? - perguntou-me sem saber se eu ao menos possuía telefone.
Não hesitei em momento algum, peguei o guardanapo em cima da mesa para anotar o número e meu nome. Entreguei-lhe o papel, apertei a sua mão e ela saiu com leveza no meio das pessoas. Estava tão jovial e bem vestida. Usava uma saia azul escuro com uma blusa branca e um sobretudo no mesmo tom da saia. Tinha o cabelo preso em coque que a deixava com um ar sério contrastando com o sorriso divertido.
Saímos logo em seguida. Não consegui mais vê-la, apesar de meus olhos a procurarem o tempo inteiro. Ana, minha amiga, fez um comentário sobre Hanna dizendo que era uma mulher muito atraente. Concordei com sua opinião acenando com a cabeça e segurei-a pelo braço para que pudéssemos ir embora.
Voltamos caminhando como era nossa intenção. A lua começava a baixar e a noite parecia eterna. Não conversávamos quase nada. Eu pensava em Hanna e minha amiga devia está pensando no ex-namorado ou algo parecido. Quando cheguei, tomei um banho quente, depois preparei um chá e deitei na cama para ler um pouco. Não devo ter lido nem uma página inteira, pois quando bebo tenho muito sono. Acho que nunca sofrerei de insônia porque existe a vodca para me fazer dormir. Não, pensando bem é melhor ter insônia do que depender de algo. Sempre que estamos dependentes de alguma coisa ficamos sem o pouco de equilíbrio que temos. Conheço uma mulher, moradora aqui da rua mesmo, que fala pelos cotovelos. Não consegue ficar cinco minutos em silêncio. Sempre achei que ela melhoraria, mas parece que está bem pior. Deduzi isto depois de vê-la na janela todos os dias parando as pessoas na rua para conversar. E como já sei disso, passo bem longe da casa dela quando tenho algum compromisso: não gosto de atrasos.
No dia seguinte acordei bem cedo. Tentei por em prática meu trabalho e minha rotina, mas a aflição era maior. Não consegui sair de casa com medo de que o telefone tocasse sem que eu estivesse para atender. Quando a noite chegou, saí um pouco para caminhar. Fiquei até às 21h olhando as pessoas e depois voltei. Li até tarde e adormeci. Tive pesadelos horríveis. Eu estava num quarto todo branco e ouvia uma voz me chamar. Era como se a pessoa estivesse aflita. Tentei em vão abrir a porta mas não havia maçanetas. Então, no desespero, me jogava pela janela e via Hanna com as roupas rasgadas num lago transparente. Acordei sobressaltada.
Hanna ligou no sábado à tarde. Estava fazendo o jantar quando o telefone tocou. A voz era idêntica a de pessoalmente. Desculpou-se por não ter ligado antes e disse que esteve fora da cidade por dois dias. Contou-me que foi fazer um comercial, que era diretora de filmes e também tinha um estúdio para algumas produções. Conversamos por meia hora e combinamos de sair às 23h. Geralmente não gosto de sair tão tarde, mas dessa vez era tudo o que eu mais queria.
Estava na varanda quando o carro de Hanna parou, pontualmente, de frente ao meu prédio. Desci as escadas me sentindo uma verdadeira adolescente. Quando me viu chegando, saiu do carro e veio em minha direção. Sorriu e me beijou. Perguntou se eu me incomodava de ir a uma festa de um amigo seu. "Sem dúvida que não", respondi entrando no carro e dando uma olhada no quanto ela estava bonita. Vestia uma calça preta justa e uma blusa um pouco folgada com um decote que insinuava mostrar os seios. Por cima usava um casaco preto com pequenos detalhes brancos. Não estava maquiada, usava apenas um batom vermelho e um pouco de lápis.
A festa era num lugar que ficava um pouco afastado da cidade. A casa era de cor branca e tinha um jardim com grande variedade de plantas. Quando entramos percebi que tudo estava decorado de maneira que parecesse um estúdio. As paredes estavam cheias de quadros com cenas de filmes e alguns objetos de filmagens completavam a decoração. As pessoas eram fascinantes. Umas tinham o estilo clássico, enquanto outras eram totalmente despojadas. Vários casais dançavam despreocupados. Alguns inclusive eram nada convencionais. Mas todos estavam felizes e quando nos viram chegar deram total atenção. Cheguei até a dançar com alguns rapazes. Hanna me olhava como se soubesse que há muito tempo eu não me divertia tanto. Depois de uns momentos ela se aproximou e convidou-me para dançar. Era uma música romântica e me vi totalmente sem jeito. Ela se aproximou de minha orelha esquerda e me pediu para relaxar. Dançamos umas três músicas e ela me perguntou se eu não gostaria de ir a outro lugar. Respondi que sim. Compramos um vinho e fomos para um prédio bem alto. A sensação era maravilhosa, a cidade ficava a nossos pés. Conversávamos sobre tudo e nos divertimos muito. O vento estava frio mas o vinho e nossa felicidade nos aquecia. Nossos cabelos estavam bagunçados e Hanna dançava ao vento como um criança. Também comecei a dançar no mesmo imitando-a e depois fomos diminuindo. Nossos corpos estavam suados e próximos. Sentia a respiração dela em meu rosto e então nos beijamos. Seus lábios eram macios e o prazer inigualável. O mundo não mais existia, apenas Hanna e seus carinhos. Nunca havia vivido momento igual àquele, mas estava adorando cada minuto.
Passamos bastante tempo dançando sem música. Quando o sol começou a sair decidimos ir embora. Cheguei a minha casa por volta das 5h30 da manhã. Ficamos um tempo em silêncio, depois nos abraçamos e desci do carro. Acordei no dia seguinte com o telefone tocando. Atendi sonolenta depois de uns minutos e ouvi a voz dela do outro lado da linha. Perguntou como eu estava e convidou-lhe para almoçar.
Como aconteceu da outra vez, ela veio me pegar em casa. Disse que tinha escolhido um lugar especial. Pensei que seria num daqueles restaurantes refinados e chatos espalhados pela cidade. Um grande engano, o lugar era realmente incrível. Era um bar todo de madeira que mais parecia uma cabana e ficava à beira de um lago. A água não era tão clara, mas dava para ver alguns peixinhos. Hanna jogava-lhes migalhas de pão, o que fazia com que ficassem perto de nós. O dia estava claro e quente apesar de ser inverno. Estávamos com roupas leves, ambas de jeans e camiseta. Meu cabelo estava preso enquanto o dela voava ao vento. Atravessamos o rio por uma pequena ponte de madeira e caminhamos por entre as árvores. Não falávamos nada, apenas observávamos as pessoas. Crianças corriam para cima e para baixo enquanto seus pais conversavam. Alguns casais namoravam mais afastados das outras pessoas. Talvez as duas garotas que riam felizes fossem namoradas, mas o ambiente não era propício àquela forma de amar. Talvez esse lugar nem existisse e a noite passada tivesse sido apenas um sonho. Mas quando terminei esse triste pensamento, Hanna pôs o braço em meu ombro e acariciou-me com as pontas dos dedos. Voltamos ao bar assim, abraçadas. Não existia vergonha, nem receio nem medo. Sentia-me leve.
Quando terminamos o almoço, a metade das pessoas já se tinham ido. Sentamos então embaixo de uma grande árvore e ficamos bastante tempo em silêncio. Tive a impressão de que Hanna dormia e aproveitei a chance para olhá-la melhor. Ela era linda. Mas de repente ela abriu os olhos e perguntou se podia deitar a cabeça em minha perna. Respondi que "sim" imediatamente e senti seus cabelos por entre meus dedos. Permanecemos assim por quase uma hora e depois voltamos falando sobre nossas vidas e planos.
Convidei-a para subir assim que chegamos em frente do meu prédio. O apartamento estava todo arrumado e Hanna o adorou. Viu todos os meus livros e gostou muito de uns quadros que havia ganho de um amigo artista plástico. Pensei em dar-lhe um de presente, mas desisti porque só me desfaço de algo quando amo a pessoa a quem será destinado. E a única vez que fiz isso me arrependi amargamente. Não que eu não tenha gostado de amar alguém, não é isso, sempre que gostamos ou dividimos os momentos de nossas vidas com alguma pessoa, aprendemos grandes lições. E essas lições só podem fazer parte de nosso mundo se deixarmos de lado todo receio. Mas não conseguia ser assim. Depois dessa desilusão fiquei mais cautelosa do que antes. Não me entregava com todas as forças. Com Hanna era diferente, era algo novo mas que não se enquadrava em minha vida. Seria difícil eu me apaixonar por alguém sabendo que essa pessoa não poderia fazer parte de mim. Esse tipo de relação é espantosamente marginalizada. E talvez eu estivesse apenas vivendo uma fase que pulei na adolescência.
Preparei dois drinks e ficamos sentadas no chão da sala. Tocava uma música que adoro e isso aumentou minha felicidade. Senti a mão de Hanna tocar de leve a minha. Em vez de ficar sem graça, experimentei uma sensação de liberdade. Fiz questão de deixar claro e segurei forte a sua, beijando-lhe a ponta do dedo. Se era uma fase, pensei, então eu deveria vivê-la com intensidade já que acabaria em pouco tempo. Nos beijamos sem o auxílio do vinho, e mesmo assim o peso da emoção me fazia cair e alçar vôo ao mesmo tempo. A noite nos envolvia lentamente. Deitamos no tapete e Hanna tinha sua cabeça em meu ombro. Não conseguia pensar em nada. Algumas vezes nos beijávamos e outras ela me perguntava se eu estava dormindo. Respondia que não, sentido-a me apertar e seu calor me aquecer sutilmente.
Liguei para Hanna assim que acordei, estava preocupada por ela ter saído tarde na noite anterior. Notei que sua voz estava muito excitada. Disse-me que iria dirigir um comercial de grande importância e que teria que se ausentar por duas semanas da cidade. Não tive tempo de ficar triste, pois ela convidou-me para ir junto. Tentei recusar o convite por medo, mas disse-me que não aceitaria um "não" como resposta.
Saímos às 12h no mesmo dia. Peguei poucas roupas para não ter tanto trabalho. Levei também um livro para ler enquanto ela dirigisse, mas nem cheguei a abri-lo, pois falamos todo tempo até chegar ao hotel no qual passaríamos a noite. Pedimos um só quarto para nós duas. Não era muito grande, tinha uma cama de casal. Então tomamos um banho quente e descemos para jantar no único e pequeno restaurante. Ventava muito e fazia frio. Tomamos uma sopa bem forte para esquentar, que estava deliciosa, e voltamos ao quarto. Vimos televisão com as luzes apagadas e adormecemos abraçadas. Acordei no meio da noite com um barulho vindo do banheiro. Era Hanna que vomitava muito, tinha o rosto pálido e suas roupas estavam sujas. Nunca pensei que veria aquela pessoa com brilho tão fascinante ficar apagada e fraca de repente. E em vez da magia diminuir, senti carinho por ela. Quando parou de vomitar, dei-lhe banho e depois providenciei um chá. Tomei também um pouco, mas não consegui dormir.
- Não entendo seu estado de saúde. Será que você está grávida?
- Só de for um milagre, Marie - respondeu sorrindo - Deve ter sido a sopa e o cansaço da viagem.
- Pode ser. Você não acha melhor chamar um médio?
- Não é necessário, estou bem agora. Quero dormir um pouco abraçada a você, amanhã estarei ótima. Não se preocupe mais e me abrace.
A resposta que recebi quando perguntei-lhe sobre a gravidez me aliviou. Embora não tivesse planos para ficar com Hanna, não conseguia aceitar a idéia de vê-la com outra pessoa. E naquela noite dormi feliz por tê-la em meus braços.
Fui dirigindo o resto da viagem para que Hanna pudesse descansar. Quase não falamos nada, apesar da minha vontade de dizer-lhe o quanto me sentia bem ao seu lado. O carro era confortável e leve. Tocava uma música instrumental que nos relaxava e apreciávamos a paisagem. Permanecemos dessa maneira até nosso destino.
A cidade era um pouco maior que a nossa e as ruas eram apertadas e cheias de gente. Fomos direto ao hotel e dormimos a tarde inteira. Hanna tinha o aspecto ótimo quando acordou, o seu normal. Deu uns telefonemas e fomos jantar fora. Para minha surpresa ela conhecia bem a cidade. Comemos num ambiente agradável e depois caminhamos um pouco. Quando voltamos ao hotel o inevitável aconteceu. Não conseguia mais apenas beijá-la. Meu corpo desejava o seu com total força. Minhas mãos tremeram quando toquei-lhe os seios e fui invadida por sensações diversas. Suas mãos em mim traziam-me imensa paz e desespero. A felicidade transbordava de meu ser e sentia que o mesmo acontecia com ela. Ficamos um grande período nesse transe e depois dormi sentido a leveza da vida.
As duas semanas passaram-se lentamente. Voltei a escrever meu livro e também acompanhei de perto o trabalho de Hanna. Passávamos as tardes e as noites juntas. Reservava as manhãs para me dedicar ao livro, enquanto Hanna dormia. Nos dávamos muito bem, Hanna me dava total atenção e carinho. Às vezes me fazia surpresas lindas. Adorava vê-la trabalhar. Assumia uma expressão séria e dura, mas quando olhava para mim, fazia careta ou imitava um soldado. Depois saíamos com alguns amigos seus para dançar. Havia boates ótimas. Dançávamos até tarde depois íamos para o hotel e fazíamos amor com grande entusiasmo. Nunca nos tocamos sem que houvesse um grande desejo. Talvez por esse motivo essa experiência parecesse ser a mais completa de minha vida.
Assim que o trabalho ficou pronto voltamos para casa. As duas semanas pareciam ter sido meses. Hanna e eu nos acostumamos uma com a outra, praticamente ela estava morando em minha casa. Dormíamos juntas todas as noites. Hanna passava o dia fora, mas me ligava várias vezes e eu também . Chegava às 17h e me convidava para caminhar ou então para ir ao cinema, ou uma festa. Sempre encontrava algo excitante para fazer. Depois que a conheci, mudei muito. E sinceramente amava aquela mudança. Gostava de fazer-lhe surpresas também. Às vezes eu ficava deitada na cama, enquanto ela provava uma roupa nova e desfilava para mim. Ou então começava a cantar imitando alguma cantora famosa, depois deitava sobre mim rindo muito e me beijava. Passamos dois meses dessa maneira. Um dia Hanna ligou dizendo que me amava. Ela nunca havia falado isso antes e nem eu. Fiquei apavorada ao ouvir aquilo, tinha medo de me envolver e depois sofrer. Não queria me apaixonar e bagunçar minha cabeça novamente. Fiz então as malas e fui para minha casa de campo. Hanna não sabia de sua existência. Talvez eu não tenha comentado temendo justamente isso. Antes de sair escrevi-lhe um bilhete:
Querida Hanna,
Nosso tempo de sonho acabou. Tenho medo da realidade por ela ser dura demais. Não me sinto preparada para enfrentá-la. Peço que perdoe minha covardia e agradeço-a por me fazer tão feliz e especial. Adeus.
Com grande carinho,
Marie.
Passei um mês longe da cidade. Não conseguia ter ânimo para escrever nem ler. Quando saía para caminhar lembrava de Hanna a todo instante. Nada tinha mais tanta importância para mim. Deixei Hanna com medo de sofrer, e, no entanto, minha solidão me fazia sentir uma dor muito maior. Sentia-me vazia. Talvez Hanna me houvesse esquecido, talvez já estivesse recomposta. Não sei, eu não conseguia mais ficar ali. Precisava da minha casa, da lembrança de Hanna.
Voltei à cidade no dia seguinte. Ao entrar, encontrei um bilhete de Hanna. Dizia que estava preocupada comigo e que precisava de mim tanto quanto eu precisava dela. O bilhete tinha a data de um mês atrás. Não sei quantas vezes ela me procurou. Eu a chamei todos dias em meu pensamento. Agora já não tinha mais tempo. Peguei minhas malas na porta de entrada e comecei e desfazê-las quando o telefone tocou. Era Hanna. Disse que estava feliz com a minha volta e que precisava me ver. Anotei então o endereço do café num pedaço de papel e peguei minha bolsa. Antes de sair, peguei o quadro que ela mais gostava e desci as escadas do prédio. O dia estava claro e bonito. Tomei o táxi que passava lentamente e fui ao seu encontro.
Brasília, 1998.