Chá das Letras

Ela estava viva. Por mais que as coisas não se encaixassem, existia o desejo. Não o desejo de estar viva porque isto não se deseja. É involuntário. Talvez se Deus a tivesse consultado antes, sua resposta teria sido “não”. Nunca soube exatamente qual a finalidade de estar viva. Dormir, acordar, comer, trabalhar e dormir, acordar... Não, ela não entendia. Sabia apenas que tinha boa memória. Era detalhista. Isto sim ela sabia. Na escola em que lecionava era respeitadíssima. Fazia da aula de literatura um verdadeiro espetáculo, do qual ela era a protagonista. Uma atriz representando seu papel, pois bastava a aula acabar para novamente parecer um bicho acuado morrendo de medo. De quê? Ela não sabia. Seu medo parecia vir da certeza de que se desistisse da vida, esta não desistiria dela. Era obrigada a viver, não adiantava chorar ou espernear. Além do mais, se espantava só de pensar no grande perigo: o suicídio. Sabia de pessoas que cometeram tal crime. Arrepiava-se toda. Por isso vendeu o televisor em cores. Não agüentava saber do sofrimento das pessoas e nem da maneira como a violência em si era noticiada.

Vestia-se com total recato. Vinha de uma família do interior, da qual recebera uma educação rigorosa. Apesar de ser jovem, tinha 27 anos, as roupas a envelheciam e jamais usava calças compridas. Embora aos 18 anos tivesse sido capaz de um ato revolucionário: soltou os cabelos que até então eram usados sempre presos em coque ou rabo-de-cavalo. Mas acabou sendo uma revolução solitária porque para as pessoas em geral um penteado qualquer não fazia a menor diferença. Por isso foi necessário na época abordar algumas amigas, ou melhor, abordar algumas colegas para perguntar se elas tinham notado o novo visual. “Não”, era sempre a resposta. Daquele dia em diante desenvolveu uma de suas manias: bastava ouvir a resposta negativa para começar a dizer ditados populares em voz baixa. “Água mole em pedra dura tanto bate até que fura.” Anos depois, após mudar-se para uma cidade grande, sentiu necessidade de melhorar a mania, passando então a recitar poesias e textos literários de autores que admirava. “Não posso fazer feio numa cidade grande!”, pensava. A cidade grande era o sonho de Arlete. Este, no entanto, só foi possível após a morte dos pais num acidente de carro. Filha única que era, herdou uma pequena casa e um sítio. Ainda tentou ficar por lá, mas as lembranças a sufocavam. Então vendeu os bens. Foi embora e com o dinheiro adquiriu um apartamento de dois quartos na tão almejada cidade grande. A vista não era das melhores, dava para um outro prédio, mas pela janela entravam bons ventos. E a claridade era suficiente para fazer florescer suas queridas violetas.

As violetas eram incompreensíveis para Arlete. Tudo tinha que ser na dose exata, nada de exageros. Cabiam dentro da vida com total cuidado. Da água queriam pouco e do sol menos ainda. Pareciam elas próprias suficientes para suas vidas. E Arlete ficava intrigada com a indiferença delas e necessidade de cuidados. Sim, pois sem Arlete elas não seriam nada. Ou seria o contrário? Ali estaria apenas a casca da planta, enquanto sua alma de flor reinava na misteriosa e assustadora liberdade? Então deixava-se ficar horas e horas absorta na existência daquele ser tão primitivo e tão perfeito. E compreendia intimamente, enxergando com seu terceiro olho que acreditava ser cego, sentia intimamente que aquele ser conversava com Deus. Enquanto ela de Deus sabia pouco. E nunca tinham sido apresentados, apenas Ele sabia seu nome e ela o Dele. Por isso tomava cuidado, todo cuidado do mundo com as violetas. Um passo em falso e elas a delatariam a Ele.

“Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra.” Recitava o poema nervosamente enquanto andava de um lado para o outro. Tinha a intenção de comprar uma blusa vermelha que estava exposta na vitrine, mas estava à porta reunindo toda espécie de coragem para entrar. Não era fácil lidar com emoções e Arlete sabia disto. Assim como não gostava de multidões, o contato olho a olho com uma só pessoa a horrorizava. E dentro da loja virava e mexia ela repetia: “Ela seria fluida durante toda vida”. A vendedora bem que achou estranho mas seu profissionalismo a impediu de fazer qualquer tipo de comentário. O que foi um alívio para Arlete, caso contrário seria capaz de recitar “Senhor Deus dos desgraçados!”. Mas foi um alívio. Consultou então o relógio e sobressaltou-se.

Saiu da loja apressadamente em direção a seu apartamento. Tinha no rosto a grande decepção, “Como pude, como pude? Quase dezessete horas e eu fora de casa, que displicência!”, zangou-se fechando a cara num amuo. Entrou correndo no prédio e como o elevador não estava embaixo, preferiu ir pelas escadas. Morava no quarto andar. Quando chegou ao corredor estava sem fôlego e despenteada. A chave parecia brincar de esconde-esconde dentro da bolsa. Sensação esta que durou uma fração de segundo, tão rápido abriu e fechou a porta. Ainda assim ela fracassou: quando entrou, consultou o relógio mais uma vez e estava cinco minutos atrasada.

No dia seguinte levantou-se cedo. Precisaria estar na escola apenas às oito, mas desde as cinco horas perdera o sono. Sentia-se cansada e triste. Talvez o sonho fosse o culpado. Sonhara com um amor do passado, o único. Embora não se recordasse ao certo, sabia que o sonho tinha sido infeliz porque o vazio no peito trazia-lhe incômodo. Assim como ficou em sua memória o dia em que este amor a deixou. Ela, em sua dor aguda, ainda teve forças para perguntar o que faria com todo amor que tinha no peito. “Guarde-o”, ele respondeu. Mas guardar para quê? No seu desapontamento ela não queria guardar, mas não sabendo como jogá-lo fora, ele acabou ficando e ficando. Um dia apodreceu. Embora às vezes, como nesta, insistia em florescer. Então Arlete acordava e não mais conseguia dormir que era para não correr riscos. Por isso pensou em telefonar para alguém, mas lembrou-se de que não existia este alguém. Era uma pessoa sozinha, esqueceu-se por um momento. E mesmo que tivesse para quem telefonar não ligaria, pois às cinco da manhã as pessoas dormem. Esta reflexão a deixou feliz porque neste exato momento ter ou não alguém era inútil, não precisava de ninguém. Então se levantou do sofá e, ainda feliz, preparou o café e deu uma rápida olhada na roupa que vestiria e que já estava pronta desde à noite. Depois de alguns minutos voltou ao sofá com sua xícara de café. Já não havia o que fazer a não ser esperar. E pensar. Lembrou-se com graça de quando tinha 15 anos e andava com uma maleta para qualquer lugar que fosse. Todos, inclusive seus pais, ficavam curiosos em saber o que tinha lá dentro e a interrogavam sempre. Era seu segredo. Ninguém nunca descobriu. Hoje não precisava mais de maleta nenhuma porque adquirira boa memória, podendo assim guardar seus textos preferidos para quando fosse necessário. Às vezes esquecia alguns trechos. “Mas ninguém é perfeito, muito menos eu que nem sei de minha missão na vida”, pensava sorridente e satisfeita.

A sala estava em completo silêncio. Era aula de literatura e a professora Arlete dava as últimas explicações sobre o conto “A Cartomante”, de Machado de Assis. Parecia outra pessoa, cheia de vida e tranqüila. Mas ao toque do sinal para término da aula, começou a voltar ao normal. Já se podia notar a habitual pressa; fechava os livros e recolhia canetas urgentemente. Depois pegou sua bolsa e saiu. Embora não tivesse compromisso algum, irritou-se quando soube que solicitavam sua presença na diretoria. E foi lá que o pior aconteceu. Sentia-se tão satisfeita com a aula que dera há pouco, e aí estava aquele homem de barba rala e óculos para complicar tudo. Que vexame! Odiava apresentações.

- Como vai? Eu sou o novo professor de gramática e chamo-me Anselmo.

“- - - - - - - - - - estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender.”

- Ah, que coincidência! Eu também adoro Clarice Lispector. – disse o professor com um sorriso largo no rosto.

Arlete saiu ventando da sala. Estava perturbada e não se lembrava de ter respondido ao prof. Anselmo. “Eu faço versos como quem chora de desalento... de desencanto... Fecha o meu livro, se por agora não tens motivo nenhum de pranto.” Caminhando na rua embaixo de sol ela precisava ser salva, precisa de casa. Andava, andava. E quanto mais perto chegava, mais se sentia longe; longe da cidade, longe das pessoas, longe do próprio corpo. Perdia aos poucos a consciência. “Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo; E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse. Por isso, se morrer agora, morro contente, porque tudo é real e tudo está certo. Podem rezar latim sobre meu caixão, se quiserem. Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele. Não tenho preferência para quando já não puder ter preferências. O que for, quando for, é que será o que é.”

Quando finalmente chegou ao apartamento, tinha a roupa molhada de suor. Seus olhos pareciam duas jabuticabas murchas. Era tristeza. Doía o desejo de mudar e doía a impotência diante do desejo. Desistiu. Deitou-se no tapete da sala escura e ficou olhando o teto onde permaneceria até perto das cinco horas, quando se prepararia para o compromisso de todo dia. Até lá, passaram-se horas, minutos, segundos, instantes, respirações, respiração...

Acordou refeita. A tristeza, às vezes, dava-lhe sono. Ficou sentada ainda por uns momentos e depois apressou-se. Já era quase hora. Tomou banho e perfumou o corpo com grande delicadeza. Na sala, acendeu incensos e duas velas que ajudavam o pequeno abajur a iluminar o ambiente; em cima da mesa estavam dispostas quatro xícaras brancas de porcelana com três pequenas flores azuis desenhadas. E dançou. Ao som de música clássica rodopiou pela casa como se estivesse nas nuvens. Flutuava. Flutuaaaava. Estava envolvida em pura energia que tinha cheiro de sândalo. Amava o mundo e a si mesma. A felicidade que saía de seus poros era um grande êxtase. Centelhas pela casa e pelo corpo, enquanto ela dançava. No relógio da sala, os ponteiros marcavam cinco horas. Ela então parou para receber seus ilustres convidados.

Sentada a um canto da sala estava Clarice Lispector. Tinha no rosto a expressão séria e um olhar de deslumbramento. Parecia encantar os objetos a sua frente. Não trazia sua habitual vaidade, pelo contrário, estava como sempre disse que escrevia: simples. E bela. Bem próxima a ela estava Cecília Meireles. Esta era só sorrisos e tinha olhos doces. Cumprimentaram Arlete, enquanto o chá era servido. Mas sobrava uma xícara e as três examinaram as horas. Clarice já mostrava sinais de impaciência quando ele, com pressa, proferiu.

- “Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?” – perguntou Machado de Assis sentando-se na poltrona contígua a Arlete. Então Clarice, saindo do profundo silêncio, deu início ao assunto do encontro:

- “Até cortar os defeitos pode ser perigoso – nunca se sabe qual defeito que sustenta nosso edifício inteiro...”

- “O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não agüenta tinta.” – sentenciou Machado.

- “É preciso coragem. Uma coragem danada.” – desabafou Clarice, que agora estava de pé encostada à parede.

- “É tão triste, mas tão perfeito...” – comentou Cecília com expressão triste.

- “... uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente.” – explicou Clarice enquanto Arlete secava os olhos com um lenço. Então Clarice, percebendo, segurou suas mãos.

- “A liberdade das almas, frágil, frágil como o vidro.” – disse Cecília enquanto olhava nos olhos de cada um.

- “... a vida não é de se brincar porque em pleno dia se morre.” – falou Clarice.

Mas Machado, percebendo que a dose de verdade era grande demais para ser dada de uma só vez a Arlete, disse com sua implacável objetividade:

- “Cada dia traz a sua ocupação, quanto mais as semanas e os meses. Pensemos em outra coisa...”

Acordou mais uma vez às cinco horas da manhã. Mágoas a incomodavam. Velhas e recentes. Pensava no quanto havia sido ferida pelas pessoas, mas também sabia que ela própria fizera o mesmo com outras. As pessoas não agiram como ela queria nem fizeram como ela queria. Ninguém nunca adivinhara seus pensamentos e desejos. Isto doía. Mas enquanto tomava uma xícara de café na janela vendo o prédio a sua frente, refletia: será que ela agiu ou fez ou adivinhou pensamentos e desejos de alguém? e por que ela ficou parada esperando algo em vez de ir à luta? Com estas perguntas se repetindo em sua mente, deixou o café pela metade e foi para a rua. Desceu de roupão, já que ainda era cedo e talvez a rua estivesse dormindo. Foi em direção à árvore que ficava ao lado do prédio. O vento frio abria o roupão e mostrava a camisola amarela e bem comportada. Ah, o vento fazia questão de revelar a mulher sensual que Arlete se mostrava naquele momento. Apesar de não ter consciência. E de pés descalços abraçou-se à velha árvore e chorou perdoando a si mesma, sobretudo perdoando a todos. Talvez o perdão não durasse muito, pois sempre era acometida por certos pensamentos e depois desistia voltando ao seu normal, à dureza do cotidiano. Talvez.

No entanto não foi assim. Durante três semanas Arlete esteve bem. Deu aulas de maneira nunca vista e nas tardes passeava pela cidade ou lia muito e, é claro, tomava o chá das cinco diariamente. Mas no final da terceira semana, num sábado, a rotina foi quebrada. Era de tarde, em torno das quatro horas, e acabara de sair do banho. Planejava terminar de ler um livro, quando o telefone tocou. De início pensou que fosse no apartamento ao lado. Mas não era. E ao ter esta convicção assustou-se como um gato se assusta ao ver um cão. Então, de segundo início, deixou-se ficar imóvel perto do aparelho. E ele insistindo enquanto ela resolvendo se precisaria mesmo atender, afinal de contas, ela poderia muito bem estar fora de casa num sábado à tarde. Mas não estava. Por isso reuniu todas as forças e deu movimento ao braço, fazendo acordar os dedos que agora se mexiam desesperados. Tarde demais. O toque parara há muito sem que percebesse. Então ela soltou a respiração e tinha o rosto suado pelo tamanho esforço. Deu as costas ao aparelho e já começava a andar quando este recomeçou a tocar. E Arlete, num instinto cego de sobrevivência, atirou-se sobre seu agressor. Atendeu enfim:

- Quem é? – perguntou rispidamente.

Silêncio. Parecia estar dentro da eternidade. Tique-taque, tique-taque, tique-taque, tique-taque, tique-taque, tique-taque, fazia o relógio de parede no silêncio. Um silêncio de antes da criação do mundo. E finalmente veio a resposta: “Professor Anselmo”. Após identificar-se, começou a despejar dezenas de palavras sobre Arlete que, pasmada, tinha a boca aberta. Falou, falou, falou e no meio da falação tremenda convidou-a para um passeio na praia. A lua estava cheia e o espetáculo seria de extrema beleza. “Não”, foi a resposta. Mas ele não desistiu, alegou que o encontro seria para planejar algumas aulas, o que parecia ser mentira levando-se em conta o nervosismo em sua voz. Então ela disse “sim”. Ou por acreditar ou porque ainda se perdoava por inteiro e por isso perdoaria a suposta mentira do professor. Anotou o local em que se encontrariam e o horário. “Cinco horas?” Pediu um momento e começou a andar pela sala, cozinha, banheiro, quarto e via móveis que a tanto tempo estavam imóveis. Via as paredes, livros, cortinas e mais livros, pouca luz, cama... mas não via gente nem lua. Então voltou ao telefone e disse o segundo “sim”, com o coração doendo de medo e de alegria.

Às quatro e cinqüenta já estava pronta. Não tinha a sensualidade de quando desceu para encontrar-se com a árvore, mas estava viva e a alma brilhava nos olhos. Ao chegar na sala, deparou-se com os ilustres visitantes que olharam-na com espanto. Arlete, sem vacilar, desculpou-se porque não poderia ficar para o chá e agradeceu cheia de respeito e admiração. De Cecília recebeu um largo sorriso, enquanto Clarice acenava com a cabeça e esboçava alegria no olhar. Machado estava irritado e ainda disse: “Maldita hora em que aceitei semelhante cousa!”. Mas de nada adiantou, pois ela já havia saído. E a lua estava realmente cheia.

Adriana de Castro, Brasília 1999.

Adriana de Castro
Enviado por Adriana de Castro em 26/07/2010
Código do texto: T2400208
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