A Chuva Prometida

“Por que a chuva me escolheu...?”

Uma alma solitária a vagar pelas ruas. Era o modo como Joshua via a si mesmo. Como se definia. Não que estivesse errado, mas era uma forma cruel de ver a si mesmo, além da simples menção desse pensamento lhe dar calafrios por todo o corpo. E naquela noite ele andava sem destino. Após um dia cheio de problemas e insubordinações, ele largara seus pertences dentro do carro e saiu andando sem rumo algum. De forma alguma isso lhe era incomum. Mas na noite de hoje, ele mal sabia que tudo que ele menos esperava.

E sentia-se perdido, desamparado em meio a tantos prédios, construções, automóveis, máquinas e afins. Faltava o azul, o amarelo, o vermelho, o verde... E odiava o estático e o cinza. Eles lhe causavam repulsa pelo simples fato de existirem em seu mundo. Sabia que devia respeitar tudo, mas não conseguia. Queria voltar a amar todas as cores. As mesmas cores que ele tanto aprendera a amar durante sua vida. Aquelas que ela lhe ensinou a amar.

E quando o pensamento voltou-se para ela, ele parou. Joshua olhou o céu negro e sem estrelas, esperando por um milagre talvez. "A Hora de Ouro", como eles se divertiam a chamar assim à meia-noite, estava próxima. E todos os dias ele sentia a presença dela como se ela estivesse com ele ainda, dividindo seus medos, suas frustrações, seus sonhos... Seu amor. Por uma longa hora, ele orava e ajoelhava-se perante os anjos e todos os seres de luz, e pedia para ouvir aquela voz que o encantara há tantos anos atrás... E por uma ínfima hora, ele chorava em vão. E ele levantava-se furioso, praguejando contra os deuses, os mortos, contra a luz e contra as trevas. Parecia que nada e ninguém atenderiam suas súplicas. Jamais.

E assim vivia seus dias. Sem esperança, confiando apenas em... Bom, nem mesmo ele sabia mais no que ou em quem confiar. Ele deixara de viver a muito tempo. Ele apenas existia. E posso lhes assegurar que esse é um dos piores modos que alguém pode escolher para habitar esse planeta. Imagine não ter nada para lhe fazer acreditar que esta vida pode ser melhor, que o mundo pode ser repleto de luz, que você não é um tolo em pensar em tudo isso. Certamente capaz de induzir medo no mais poderoso dos heróis.

Dois minutos... Como ele sentia um tolo. Um ritual que ele fizera repetidas vezes e que lhe trouxe nada além do mais puro gosto da derrota e da amargura. No silêncio de sua casa, as luzes que nunca acendiam eram as mesmas luzes que davam razão ao seu viver. Não fazia idéia do por que ainda fazia isso. E então ele parou. Começou a olhar ao seu redor. Não havia prestado o mínimo de atenção para o lugar que estava, e com alguns segundos, ele foi capaz de reconhecê-lo. Como pudera ser tão estúpido?

As únicas cerejeiras de toda a cidade, o campo verde logo à frente... Estava no “Paraíso”.

O lugar que ela lhe mostrara, naquele fatídico dia. Não tinha certeza se queria voltar, mas algo maior tinha feito a escolha por ele. Ele adentrou a mata, fechando os olhos enquanto andava, deixando que suas memórias a trouxessem de volta para que ela lhe mostrasse o caminho que ele deveria seguir. E agora ele era capaz de ouvir os risos, o barulho dos ventos, as passadas rápidas e leve que ela dava enquanto ele a perseguia.

“Você não vai me pegar!”

“Não faz isso, Jéss... Volta aqui!”

“Ah! Vem me buscar então”

Joshua não suportou mais. Abriu os olhos, já carregados de lágrimas e se ajoelhou, perdendo o controle de si mesmo por alguns segundos. Começou a esmurrar o chão com toda a força que tinha, desejando com cada fibra de seu corpo que ele conseguisse fazer a dor e os desesperos se perdessem dentro daquela mansidão que o Paraíso lhe passava. E cada golpe era seguido de uma vontade escondida, de uma loucura disfarçada.

-Tanta força assim... Vai acabar conseguindo atacar as raízes, sabe? E eu gosto tanto desse lugar, não queria que você o destruísse.

Ele parou. Aquela voz. Ele conhecia aquela voz. Mas não podia ser. Simplesmente não podia!

-Meu lindo rei, ainda lembra-se de mim?

Joshua abriu os olhos. Apenas uma pessoa o chamava de “rei”. Apenas ela lhe chamara assim, durante sua vida inteira. Levantou o olhar completamente aturdido e, apenas a alguns passos de distância, lá estava ela. Os cabelos vermelhos esvoaçando com o vento, o sorriso radiante, o olhar profundo e carinhoso, a beleza que faria inveja à Afrodite, como Joshua mesmo dizia. Ela estava ali, novamente. Sua deusa estava de volta.

-Jéss... Como você...?

-Não importa o que, ou como. Estamos aqui meu amor. Não é hora de entender como o mundo funciona. – E após hesitar um pouco, ela mordeu o lábio, fazendo um “biquinho” que Joshua adorava, e falou com certa fraqueza na voz. –Eu senti muito a sua falta...

-E eu? Como eu pude te perder meu amor? Por que a vida teve que tirar você de mim? Por que...

Flashes começaram a invadir sua mente. Gritos, sangue... Ele ajoelhado ao lado dela, segurando-a com toda a sua força e implorando para que ela não o deixasse. Um carro prateado saíra da cena em alta velocidade, e o brilho de seu olhar tornava-se ainda mais distante, mais frio... Outro flash. O último dia juntos, a chuva batendo em seus rostos, os dois abraçados e deitados na grama, o anel de rubi que brilhava, a promessa de uma vida juntos.

Tudo apagado por uma falha. Tudo destruído em questão de segundos.

-Não precisa pensar nisso... Vamos viver esse momento.

Ele sequer tinha percebido que ela tinha caminhado toda a distância entre os dois e estava a menos de um palmo de seu rosto. Quando ela tocou seu rosto, o reflexo lhe fez tocar na mão de Jéss, e ele viu que ela era real. Aquilo não era um sonho. Pelos deuses, não era um sonho.

Ela parecia ser capaz de ler sua mente. No instante seguinte, colou seu corpo no dele em um abraço. Enquanto ela o abraçava, soluçando baixo, ele sussurrou “minha vida”, de modo que ele próprio teve esforço para entender. Mas o ponto das palavras já passara. E com um gesto simples, Jéssica tocou seus lábios levemente nos de Joshua, uma mania que ela mantinha desde que ele a conhecera e desde que ela conseguia se lembrar. Os dois esboçaram um sorriso com o gesto tão doce, e deixaram que os olhares revelassem o que suas almas tanto desejavam.

No segundo seguinte, estavam se beijando. Joshua se sentia vivo, como nunca antes se sentira. Parecia que ele dependia daquele beijo para viver, como se Jéss guardasse o néctar e a ambrosia dos deuses olimpianos naquela expressão de amor. Os sentimentos, o desejo, a saudade... Todos se tornavam uma só expressão, a expressão do amor que existia entre eles.

E então, o milagre veio do céu.

Durante aquele momento único, os céus verteram suas lágrimas. A chuva começou a cair sobre o Paraíso, enchendo aquele lugar de vida e de força. Caía sobre Jéssica, fazendo-a encantar e amar ainda mais seu rei. E caía sobre Joshua, fazendo daquele o momento mais lindo e inesquecível de sua vida. E por um segundo, usando de uma força sobrenatural que ele sabia que não lhe pertencia, afastou seus lábios dos dela. Olhou-a diretamente, e citou o verso que ela tanto amava.

-“And every time it rains... I feel her holding me...”

-“E quando chove, são os anjos chorando por mim”. – Ela parou por um segundo. –Você lembrou... Achei que você teria se esquecido o quanto eu amo essa música e o quanto eu amo essa chuva.

Sem aviso nenhum, ela o empurrou na grama, e jogando-se também, decidiu reviver o mesmo momento que lhe fora privado anos atrás. Recomeçou a beijá-lo, deixando que o amor que sentia por ele falasse mais alto, tomasse conta de seu ser completamente. Que, naquela “Hora de Ouro” sagrada, ela finalmente se tornasse a deusa do amor que Joshua sempre vira dentro dela. “Meu rei, sejamos um só nessa noite” fora tudo o que ela conseguiu dizer antes de perder-se em si mesma.

E os dois se entregaram de corpo e alma. A chuva batia em seus corpos, em suas almas... E nada mais importava. As roupas jaziam jogadas “displicentemente de um jeito nada cuidadoso”, como Jéss costumava justificar a bagunça de seu quarto quando conversava com Joshua. As mãos de um deslizavam pelo corpo do outro, os beijos se tornavam cada vez mais fortes, cada vez mais vorazes... O êxtase e a luxúria invadiram a mente, dominaram os corpos e eternizaram por fim a união.

Algum tempo depois, lá estavam os dois, parcialmente vestidos, abraçados como da ultima vez. Olho no olho, mãos dadas. A chuva amansara, mas os céus ainda os acompanhavam. Por mais que alguns ousem dizer que o tempo não volta, eles conseguiram esse feito. E o tempo parou para eles. Os flashes agora eram sonhos ruins, que não mais voltariam. As areias soterrariam tudo, apagariam o que aconteceu e a vida seria reescrita. Fora pensando nisso que ele tomara a decisão.

-Jéss... – Ele pegou sua mão e ajoelhou-se perante sua deusa. Parecia que agora ela estava mais linda e radiante do que nunca. Ela seria capaz de ofuscar o sol. Ele arranca do pescoço um cordão dourado, e mostra um pingente: um anel de rubi. –Eu não posso esperar mais pra te ter comigo. Eu não sei como é possível, mas estamos aqui, juntos. E nossa hora é agora. Não existe mais uma hora de ouro... Todas serão cravejadas de rubi, se você estiver comigo. Quer ser minha, para todo o sempre?

-Claro que sim, é tudo o que eu mais quero. Meu lindo rei, meu anjo, meu tudo... Eu te amo.

Ele caiu de novo, quando Jéss se jogou em cima dele de pura felicidade. O abraço mais sincero e puro do mundo era o dela, disso Joshua tinha certeza. E enquanto trocavam pensamentos, desejos e olhares, ele viu um bilhete ao seu lado. Gravado com uma letra rubra, ele pode ler claramente:

“Você nunca esteve só. Estive sempre contigo. Lembre-se da pureza da chuva, e aproveite o presente”

Ele deu uma gargalhada silenciosa. Então, alguém sempre olhara por ele. Observou o céu e a chuva que continuava a cair. Lembrou dos versos de uma música: “A chuva não sabe quando parar de cair... Por mim, que ela nunca acabe”. E dizendo isso, entregou-se para sempre .aos braços de sua amada deusa

Draiken Vanhite
Enviado por Draiken Vanhite em 23/07/2010
Reeditado em 27/07/2010
Código do texto: T2395266
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