O Cheiro Dela se Perdeu...

O cheiro dela se perdeu...

Todos os dias sempre começam com a mesma ladainha. Definitivamente não era um dia qualquer. Na verdade ele bem sabia que nenhum era. Ele lembrou-se cedo de uma cena esquisita e inútil que marcara sua vida. Ela se parecia com todas as outras. Deitado abaixo de uma árvore mais antiga talvez que o colégio onde se encontrava ele conversava com uma garota.

Óbvio que não se tratava de uma garota qualquer. Cada uma delas possui o brilho de um novo dia e nenhum dia é um qualquer. Antes de dizer uma palavra ele olhava no relógio. O horário não importava. Relógios só servem para nos limitar do que realmente interessa. Privar-nos de permanecer o tempo que queremos. Nenhum horário naquele momento importava, mas era manhã. O som escondendo-se atrás da construção velha do colégio. Ele disse:

-Nunca me esquecerei do seu rosto...

Promessas e mais promessas de um garoto infantil. Nem ela mais acreditava em todas as promessas. Ele pouco se lembrava do que ela tinha dito sobre juventude, mas com certeza era algo que incluía cerveja e um acidente de moto. Enfim, o típico do que um jovem descreveria como diversão.

Agora se lembrando da cena. Ela possui um cheiro. Não. Não é a garota que possui um cheiro. É a cena. Ela faz com que ele se lembre de uma música de uma cantora de voz fina que ele nem gostava, mas que ao ouvir lembrava-se do dia. Lembrava da promessa. Lembrava do fingimento sincero. Ele sentia tudo voltar em seu peito. Mais e mais uma vez. Aquele cheiro forte de sentimento. De juventude. De passado.

Lembrou também que sentado na cama lembrando era puro desperdício de tempo. Deu-se conta que estava mais uma vez atrasado. Coisas que importam, coisas que importam. Pensava ele enquanto engolia a seco os pães do café, sem café. Dinheiro e dinheiro. Ele tinha ouvido ou inventado que um grande amigo de alguém que ele nunca chegou a conhecer realmente, mas limitava seus pensamentos como se fossem seus disse: sempre se trata de dinheiro. Esse amigo se afastara do outro. E ele ainda tentava entender o porquê e repetia entender por que saber ele bem sabia. Embora isso não lhe trouxesse o dinheiro que importava, ele pensou nisso durante todo o caminho. Ônibus lotado e coisas comuns. Dias comuns com seus flashes especiais. Um acidente que todos se levantam correndo para olhar. Ele permanece sentado. Existiram vários outros momentos únicos no decorrer do dia que lhe serão bem mais úteis.

Não estava muito certo de seu último pensamento.

Trabalho e mais trabalho. Preenche planilha. Liga para o responsável. Responde emails. Diz a alguém que não pode ser seu amigo. Diz a outro que precisa de mais café. Diz a outro que talvez prefira chá. Liga e cancela. O sono é forte demais para um único chá. Traga café. Telefone tocando. Chefe pedindo agilidade. Agilidade. Companheiro de trabalho gritando. Segue o dia com suas particularidades especiais. Está um dia maravilhoso. Ele percebe algo no intervalo de algumas ligações. Esse dia. Têm um cheiro. Aquele cheiro diferente do que ele sentiu anteriormente, logo pela manhã ao despertar.

Só de lembrar ele percebia que não era o cheiro de lembrar. Esquisito esse ser de diferente forma. Agora ele só queria emergir naquilo. E quão melhor era o cheiro daquele momento. Quando foi que ele não percebeu a mudança que acontecia?

Aquele odor...

Quão estranho era perceber que naquele momento que um cheiro era melhor que outro... Que o cheiro do trabalho não lhe agradava tanto quanto o de antes.

Você pode conseguir tudo o que quiser...

Estava escrito em um cartaz na volta pra casa. Que atividade gratificante! Voltar para casa sentado no banco no mesmo lado da janela de um ônibus lotado. Ver como as coisas passam rápido. Ver o sofrimento estampado na cara de semelhantes esgotados pensando em voltar logo para casa. É. Realmente esse marketing furado de pensamento em conjunto funciona. Acho que todos conseguirão voltar para casa.

Ele não estava muito certo sobre o último pensamento.

Continuava lendo os anúncios de publicidade. Emagreça. Ganhe dinheiro. Jogue suas cinzas em um cartão postal. Seja um cidadão modelo. Enfim, isso não lhe parecia tão único de toda forma.

O sol já tinha se posto.

Ele ainda pensava que tinha vendido mais um pôr do sol.

Casa. Finalmente em casa e pensava. Momentos de odor. Odor de momentos. A fragrância de cada dia o atraía. Ele tentava aos poucos sentir cada um dos dias. Sentou-se no sofá de sua casa e sozinho não ligou a TV. Fechou os olhos e pôs-se a recordar. Cada dia de sua vida. Cada momento. Cada gesto irresponsável. Cada decisão que fez toda diferença. Rejeitar essa ou aquela oferta. Dormir com essa ou aquela garota. Decidir seu sexo, seu nome, seu emblema, seu clã e sua religião. Tudo que no momento exato parecia nem importar.

Tudo tinha um nítido cheiro.

Alguns momentos doces. Agridoces. Outros amargos... Outros únicos.

Lembrou-se do cheiro que mais gostava para dele relembrar um momento.

Cheiro de terra molhada. Cheiro de pós-chuva. Ou mesmo o cheiro da chuva em si. Cheiro de molhado. De um dia único e molhado. Cenas sem sentido, importantes ou não dançavam por toda a sala. Sem querer fazer sentido. Só zombavam do gesto.

Até um se fixar.

Claro e molhado.

Um beijo na chuva.

Outro tombo na chuva.

Momentos molhados e aquela alegria banhada em lágrimas e suor.

E sem por que exato cheirava ainda mais forte a traição.

Sim, aquela garota não era a primeira da árvore na escola. Era outra que partiu seu coração. Mais uma tola e estúpida história de amor que acabara mal para a parte ainda mais estúpida da história. Entenda “Ele” por essa parte.

Lembrou de um momento que ainda como o cheiro do frio que vinha logo depois do molhado. Um dia que pegou uma blusa de frio em certo dia. Ela nem se lembrava. Ele cheirava a blusa. Entre lágrimas ele dizia seu nome. E aquele cheiro ficou. Aquele cheiro era o mesmo cheiro que vinha quando se lembrava da cicatriz em seu peito. Todos os homens, meninos e garotos, nem que seja de leve, mostram as cicatrizes de suas batalhas.

Esse cheiro. Ele queria reviver esse cheiro.

Levantou-se e meio que correndo tropeçando ao caminho do guarda roupa arrancou tudo que via no caminho com certa violência juvenil. Largou fora todas suas roupas. Junto dela lembrava cada promessa fingida. Largou fora todas as suas roupas. Junto dela largava cada sonho destruído. Nada encontrou nos armários e tirou a própria do corpo. E junto dela sua defesa e suas armas. Agora nu e indefeso no chão. Ele olhava embaixo de um móvel antigo. Madeira nobre. Uma blusa de frio.

Era ela. Encontrava. Pegou e juntou próximo ao seu peito. Cheirou forte. Era o cheiro da decepção. Não tinha mais nenhum significado.

O cheiro dela... Perdeu-se...

Talvez ela nunca saiba...

Alguém batia de leve na porta da casa. Ele sabia quem era.

Atendeu e disse que já estava esperando por ela. Ela entrou e mais uma vez reclamou de toda a sua bagunça e desorganização. Ele deu os ombros. Abraçou-a e aplicou um beijo forte, para só então sentir o cheiro em seu pescoço antes de um beijo leve que no seu pensamento era acompanhado por um dizer ininterrupto:

-Esse... É esse... Esse é o cheiro de verdade! O cheiro que eu sempre quis sentir!

Transmutação... Talvez... Acontece que o cheiro dela se perdeu... Mas de outra forma eu ainda o sinto... Aquele cheiro de um novo dia... Cheiro de um brilho novo... Um cheiro que tanto pode emanar de homens quanto de mulheres... Ao seu amante só fica claro o cheiro de paixão.

Alexandre Bernardo
Enviado por Alexandre Bernardo em 22/07/2010
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