COMPLEXO DE ELEKTRA
COMPLEXO DE ELEKTRA – Por Eustáquio Pedrotti
Lembro-me muito bem daquele dia por causa da enorme foto que estampava a capa da Gazeta. Era 28 de outubro de 1886 e a enorme e imponente Estátua da Liberdade havia sido finalmente inaugurada. Eu, no entanto, cansado da bebedeira da noite anterior, mal havia conseguido ficar de pé. E, mais uma vez, Victória havia vindo me ajudar a caminhar.
- Papai, o senhor deve parar com essas noites cheias de festas.
Eu nem ao menos estava prestando muita atenção ao que ela estava dizendo. No entanto, havia ouvido perfeitamente.
- Menina, não fale bobagens. – resmunguei, a medida em que nos aproximávamos da velha porta de madeira que parecia estar entreaberta – Imagina o que seria de nossa família sem as fabulosas festa de Eustáquio Pedrotti. – e nesse momento acho que levantei a mão esquerda, como se estivesse brindando a algo.
- O senhor tem razão. Estou ficando maluca. Desculpe-me, papai. O senhor está absolutamente certo. O senhor está sempre certo.
Quando chegamos até a porta, Victória se abaixou e recolheu as correspondências que estavam jogadas sobre o tapete molhado. Ao me entregar o jornal do dia e um pacote amassado, notei que aquele dia parecia estar mais escuro do que o normal.
- Não se preocupe, papai. Deve ser uma tempestade que está chegando. Agora, sente-se no sofá que irei fazer um chá quente para o senhor.
Minha filha levou-me até o sofá e quando sentei-me vi que ela já estava indo até a cozinha. Logo, desembrulhei o pacote amarrotado que levava o nome dela na embalagem e tirei de dentro dele o que parecia ser um exemplar de “The Strange Case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde”.
- Seu livro chegou. – tentei gritar – The strange case...
- Ah, sim! – Victória estava quase pronta com o chá – Estão comentando muito a respeito desse livro, e pedi para encomendar um para mim também.
- Não sabia que você sabia ler em inglês. – joguei o livro para o lado e encarei a foto enorme da Estátua da Liberdade no jornal.
- Foi o senhor que me ensinou, não se lembra? – ela estava carregando uma bandeja de metal enquanto vinha até mim – O senhor me ensinou basicamente tudo o que sei. – ela disse e deu um beijo em meu rosto – Eu amo tanto o senhor. – e depois sentou-se ao meu lado.
- É só impressão minha ou essa estátua se parece muito com sua mãe?
Victória olhou de trás do meu ombro a imagem.
- Realmente, ela se parece muito com Têmis. Não sei por que tinham que fazer a estátua de uma mulher. Por que não poderiam simplesmente fazer uma estátua masculina? Poderiam até mesmo ter usado o senhor, papai, como modelo. Tenho certeza que ela seria muito mais atraente do que esta coisa aí.
- Obrigado, Victória. Mas por favor, já lhe pedi várias vezes, não chame sua mãe de Têmis. Pelo menos não em frente às visitas. Sua irmã Tabatha a chama de mãe e eu queria que você fizesse o mesmo.
Notei que Victória havia parado por um momento e parecia estar pensando. Na verdade, não sei se naquele momento fui eu que acabei entrando um lapso temporal ou se ela estava realmente quieta. Apenas sei que por fim ela disse:
- Claro, papai. Vou fazer isso. Farei de tudo para deixar o senhor feliz. Tudo.
Depois daquelas palavras, minha mulher e minha outra filha desceram as escadas e juntaram-se a nós. No mesmo momento percebi que Victória havia feito uma cara de ódio ao vê-las. Normal, pensei.
Durante aquele dia escuro nada de mais aconteceu. Alguns escravos haviam sido capturados, a economia do país parecia ter estagnado. Até mesmo alguns de meus melhores amigos estavam tendo dificuldades para mandar seus filhos para Coimbra.
- Fiquei sabendo que Juca está tendo um pouco de dificuldades, se é que você me entende, meu amor. – Têmis sempre soube ser muito sutil em qualquer que fosse seu comentário. Victória, no entanto, não conseguiu disfarçar sua cara de nojo ao ouvir que sua mãe, minha mulher, havia me chamado de “meu amor”. E aproveito aqui a oportunidade para dizer o que não disse naquele momento: Têmis, você também é meu amor, e eu te amo de uma forma única e incrível.
Pois bem, tirando esse meu devaneio do caminho (eu poderia escrever horas ainda a respeito do meu amor por Têmis), acredito que ainda tenho que lhes contar o que aconteceria no dia seguinte. Aliás, no dia 28, nada mais aconteceu. Nós, em família, jogamos uma partida de cartas e logo fomos deitar.
Eu, mesmo sem saber que o dia seguinte seria agitado, parecia já pressentir. A cama estava mais fria do que o normal e Têmis mais silenciosa também.
- O que houve, querida?
Ela me olhou e notei que sua angústia transbordava das pálpebras.
- Estou preocupada, meu amor. Muito preocupada.
Parecia que eu e minha mulher estávamos prestes a ter uma conversa um tanto quanto complicada.
- Têmis, precisamos mesmo conversar sobre isso. Também estou notando...
- Pequeno Negro está cada vez mais doente...
Aquilo havia me pegado de surpresa.
- Pequeno, seu cavalo?
Ela confirmou com a cabeça enquanto uma minúscula gota escorria sobre sua magricela bochecha.
- Sim, ele mesmo. Mal consegue dar um salto e, quando consegue, percebo que ele sente muita dor ao tocar o chão. – ao ouvir o que ela falaria depois, creio que permaneci em silêncio por um considerável tempo – Amor, você está me escutando?
Ainda estava surpreso. Pensei que ela queria conversar sobre Victória.
- Amor, vamos dormir. – disse, tentando parecer menos surpreso e desapontado. Agora a bebida não estava mais me dominando – Amanhã falamos sobre isso, pode ser?
Dei-a um beijo no rosto e deitei minha cabeça sobre o travesseiro macio. O gelado novamente me fez tremer. No entanto, agora eu tremia por alguns outros motivos também.
Não lembro-me do que sonhei naquela noite, mas lembro que havia sido algo feliz. Algo do tipo ter minha família toda reunida num pátio conversando. Nessa conversa, eu e minha mulher estávamos lado a lado, e Victória, incrivelmente, conversava com Tabatha, sem nem mesmo notar que eu e Têmis estávamos trocando carinhos em frente a ela.
Contudo, como tudo o que é bom dura pouco, não tardou para que eu acordasse e me deparasse sozinho na cama. Coloquei a mão sobre o lençol amassado. Ainda está quente.
Ergui meu tronco e sentei-me na beira da cama, de forma que meu pés pudessem ser colocados dentro daquela confortável e quente pantufa. Bocejei por um instante e parei, subitamente, ao ouvir o barulho de vidro quebrando-se.
Cocei os olhos e logo pus-me de pé. Caminhei até a porta que estava completamente fechada e abri-a. Quando cheguei até o corredor, chamei por minha mulher.
- Têmis?
- Estamos aqui embaixo, papai! – Victória foi quem respondeu.
Desci o mais rápido que pude e encontrei Victória deitada no sofá, lendo o livro que havia recebido no dia anterior.
- Onde está sua mãe? – ela nem ao menos havia vindo até mim.
- Têmis estava na cozinha, preparando alguma gororoba.
Cheguei até a cozinha e dei-me de cara com uma cena grotesca. Primeiro, ao pisar próximo da cadeira, senti que algo molhado estava no chão. Era o sangue de minha amada. Ela estava um pouco mais adiante, caída, e seu rosto desfigurado.
Como se aquilo não bastasse, vi que minha outra filha, Tabatha, estava sentada numa das cadeiras, e seu rosto apoiado sobre a mesa. De sua boca saía sangue e percebi que havia um enorme rasgo em sua garganta.
Mas antes que eu pudesse ter de decidir qual das duas salvaria primeiro, percebi que Têmis havia se movido. Seus olhos também estavam piscando levemente.
Corri até ela e logo tratei de escondê-la em algum lugar fora do alcance de Victória. Para mim, era claro que minha filha era quem havia feito aquela atrocidade. Achei um armário sobre a pia e coloquei minha mulher lá dentro, ao mesmo tempo em que lhe dava algo para estancar o sangue que saía de sua testa.
Tabatha estava morta. Peguei seu corpo e o enterrei no quintal atrás de casa. Tive sorte de nenhum dos vizinhos ter visto.
Ao voltar para dentro de casa, vi que Têmis já estava melhor. O sangramento havia parado e ela estava começando a recuperar a cor.
- Minha filha, tudo bem? – não era fácil lidar com um psicopata. Ainda mais sendo sua própria filha.
- Posso dormir no seu quarto hoje, papai?
Olhei para ela e tive medo. Tive muito medo.
- Claro que pode, meu amor. Claro que pode.
Depois daquele dia, minha vida havia tornado-se estranha. Eu tinha duas casa. Numa delas vivia com minha filha, mas como se fôssemos esposo e esposa. Noutra, não muito distante dali, vivia (apenas alguns minutos por semana, que fosse) com a mulher que realmente amava.
No entanto, acostumei-me com a situação.
Hoje, enquanto Victória amamenta nosso primeiro filho, escrevo, escondido no escritório, essa carta. Quero que as pessoas saibam o quanto feliz uma pessoa pode ser, apesar de tudo.
Me considero a pessoa mais feliz do mundo.