A História de Alice
Vitória de Santo Antão, Pernambuco, 23 de junho de 1945, véspera de São João. As ruas enlameadas da chuva, não deixam de ter em frente às suas casas simples de porta e janela, uma fogueirinha para saudar o Santo do dia. Mesmo que estas fogueirinhas sejam feitas com restos de portas e janelas velhas, as chamas não vão deixar de arder e esquentar esta noite chuvosa e fria, porém envolta no manto da alegria que todos os anos desponta nesta época, embalada pelo forró. E no ar, aquele cheirinho de comida de milho.
Mas apesar de tudo parecer estar em festa, encontramos neste cenário festivo, a figura abatida e deprimida de Alice, andando de um lado a outro naquelas ruas pouco movimentadas de Vitória. Ela está a divagar como poderá ser sua vida longe dali; e como conseguirá ir embora, afinal, não tem recursos, mal tem o que vestir, não conhece ninguém em Recife pra onde pretende ir. Quem irá lhe dar algum abrigo? Apesar de muito jovem ainda, pouco mais de 17 anos, Alice aparentava mais idade. Era uma negra alta, de belas ancas. Seus cabelos crespos eram bem tratados, e o seu rosto tinha uma expressão forte, com lábios grossos que emolduravam um sorriso franco.
Seus olhos grandes e amendoados demonstravam uma curiosidade latente por aquele mundo além de Vitória. Mas, algo dentro de si a alertava quanto a esse mundo que tanto ansiava. E foi assim mesmo, em meio à curiosidade e ansiedade para viver o novo, que Alice decidiu partir dali a dois dias num caminhão carregado de farinha para Recife.
Ela tinha prometido a si mesma, que era o que faria caso sua mãe morresse, e foi o que aconteceu no dia vinte daquele mês. Também ali em Vitória, ela não tinha mais ninguém na vida. Em Recife poderia trabalhar em qualquer coisa. Muito tinha aprendido com a mãe. Poderia cozinhar, passar, lavar e até cuidar de crianças. Mas tinha prometido a si mesma, que tudo faria, menos roubar e se prostituir.
Alice não era apenas bonita, tinha também um bom coração, ótimo caráter e era muito religiosa.
Não foi difícil conseguir a permissão do Severino para viajar num cantinho da carroceria do seu caminhão, junto com a farinha que estava sendo levada para a CEASA. Ela levava consigo duas mudas de roupa e uma única toalha. Apesar dos seus receios quanto ao futuro, tinha esperanças de uma melhora de vida.
Alice era analfabeta, mas ao mesmo tempo, dotada de uma sabedoria que falta a muitos que estudaram toda a vida. Seu pensamento e sua preocupação eram só uma: para onde ir quando chegasse em Recife? Onde iria dormir sua primeira noite, naquela cidade que todos lhe diziam ser uma cidade grande e perigosa?
Durante a viagem, Alice ficava imaginando que iria de casa em casa oferecendo seus serviços. Mas, será que conseguiria? Confiariam numa pessoa como ela? Era negra e muito jovem. As pessoas poderiam pensar que ela não tinha a experiência necessária por causa de sua pouca idade; e para piorar, ela nunca havia trabalhado numa casa de família antes, ou seja, não tinha referências.
Estes pensamentos faziam seu coração bater mais rápido e o medo do futuro aumentar. E foi em meio a estes pensamentos, que Alice percebeu estar diminuindo a velocidade do caminhão em que viajava, até ele parar e estacionar num daqueles postos de combustível de estrada.
Severino aproximou-se da carroceria do caminhão e dirigiu-se a ela, explicando-lhe que havia parado por não estar passando muito bem de saúde. Alice ficou apreensiva, mas procurou logo saber o que aquele homem estava sentindo. Ela se mostrou muito solidária, solicitando ajuda das pessoas do posto, providenciando chá e remédio para dor. Algumas horas depois, Severino já se sentia bem melhor e agradecido a Alice por seus cuidados.
Como forma de reconhecimento por tudo que aquela menina lhe proporcionara quando estava mal, Severino a convidou para continuar a viagem junto com ele na boleia do caminhão; ela o aceitou bastante emocionada, pois nem achou que havia feito nada de especial, já que ajudar as pessoas que precisavam dela, era uma rotina em sua vida. De qualquer forma, ficou feliz, já que ali, ela não sentiria tanto frio.
Agora que ela relaxava um pouco mais, os pensamentos anteriores aos últimos acontecimentos voltavam a atormentá-la.
A certa altura da viagem, Severino puxou conversa com Alice, perguntando-lhe para onde exatamente ela estava indo, ou seja, onde iria morar em Recife, e se estava indo para trabalhar em algum lugar. Ela ficou muito silenciosa logo que Severino fez estas perguntas. Quando quis começar a lhes responder, gaguejou mais que falou.
Nesse momento, aquele homem percebeu de imediato que aquela menina, tão jovem e inexperiente, não tinha nenhum lugar certo para morar, e muito menos para trabalhar. Ele temeu estar diante de mais uma pobre órfã que estava prestes a se tornar outra, dentre tantas prostitutas naquela cidade grande.
Comovido, Severino começou a pensar numa forma de ajudar àquela menina naquela sua empreitada.
À medida que o caminhão se aproximava mais de seu destino, Alice ficava ainda mais introvertida e com um semblante de preocupação que era facilmente percebido por aquele que a acompanhava naquela viagem.
Severino era um bom homem, com setenta e poucos anos, sabia o bastante da vida pra sentir-se receoso como estava naquele momento; mas estava decidido a ajudar aquela menina de todo jeito.
O caminhão chegou em Recife perto da primeira hora da tarde. O tempo estava nublado e quente. Alice perscrutava todo seu entorno com olhos curiosos e ansiosos. Percebendo que a menina pegava sua pequena mochila, e se preparava para descer do caminhão, antes mesmo que ela abrisse a boca para lhe agradecer pela viagem, Severino se antecipou à mesma e a convidou para um lanche. Faminta como estava, ela não tardou em aceitar o convite.
Caminharam até uma pequena barraca onde se serviam refeições simples para o pessoal que trabalhava na CEASA, e para aqueles que ali se encontravam para negociar, como era o caso de Severino. Durante a refeição, aquele homem se animava a conversar com Alice. Ele àquelas alturas, já havia matutado uma ideia para ajudá-la nesse seu início de vida nesta nova cidade.
Após a refeição, Severino a levou até o comerciante que havia feito o pedido da carga. Chegando no galpão de farinha, ele procurou o responsável, passando em seguida a adentrar o galpão em busca de Bila, um negro alto, sujeito bonachão, de sorriso largo e bastante simpático. Alice ao lado de Severino, se perguntava por que ainda estava ali, afinal de contas, as horas estavam a passar, e ela nem sequer imaginava onde passaria aquela noite. Foi quando Bila a percebeu e de forma bastante amável, aproximou-se daquela mulher, olhando-a de cima a baixo. Seus olhos brilharam tanto ao fitar Alice, que ela se sentiu constrangida. Nesse mesmo instante aproximou-se deles Arthur José, o filho mais velho de Bila, que assim como ele, também observou a presença daquela moça, e tal qual seu pai, sentiu-se muito atraído pela beleza daquela estranha que ali chegava pelas mãos do velho Severino.
O velho caminhoneiro não tardou em explicar o verdadeiro motivo de estar a procurar Bila. Sabia ele, que este poderia vir a ajudar Alice. Pensava que Bila tinha todas as chances para encontrar uma casa onde ela pudesse trabalhar como empregada doméstica, e assim, ter onde morar e ter uma vida digna, quem sabe até poderia vir a estudar.
Depois de explicar a Bila a situação de Alice, este prontificou-se de imediato a colaborar. Pediu algumas horas pra vir com uma solução. Severino confiava naquele negro. Alice por sua vez, começava a vislumbrar uma luz no fim do túnel, e tudo o que tinha a fazer naquele momento, era rezar e esperar.
Bila pediu ao seu patrão para dar uma saída, prometendo não se demorar. Este então se dirigiu para a casa do prefeito de Olinda. Chegando lá, pediu pra falar com a dona da casa que o conhecia, e por quem tinha grande consideração. Ao pedir o emprego pra Alice, Bila o fez explicando àquela mulher, que ela não estaria empregando qualquer uma, mas sim, àquela que seria sua esposa, pois estava convicto de que iria casar com Alice.
Enquanto isso, Alice estava quieta num canto, pensativa, imaginando que a qualquer momento Bila chegaria. Então ela imaginava e se perguntava: chegaria aquele homem sério e ao mesmo tempo amável, com alguma boa notícia para ela? No momento em que passava por sua mente reflexões como esta, foi interpelada por Arthur José, filho de Bila, que com um sorriso no rosto, tentava se aproximar mais uma vez dela, querendo quebrar um gelo que até ali, existia apenas pela apreensão de Alice quanto ao seu futuro.
Apesar de sua pouca idade, aquela menina pôde perceber o interesse daqueles dois homens por ela. Mesmo não estando concentrada em assuntos desse tipo naquele momento, pensava que estar sendo alvo do interesse masculino, por dois homens que eram pai e filho, era uma situação onde poderia vir a existir algum conflito, e para ela, que estava tentando começar uma nova vida numa cidade grande e estranha, não era exatamente disso que estava precisando.
No entanto, ela sentiu seu coração acelerar ao encontrar os olhos de Arthur José. Percebendo aquela situação, Severino diz a Alice que é melhor eles esperarem Bila voltar no local onde está estacionado o caminhão.
Alice aguardava ansiosa ao lado de Severino. Já começava a escurecer quando Bila retornou e os procurou com a boa nova. Havia conseguido um trabalho para Alice na casa do prefeito de Olinda. Trabalharia como ajudante da empregada doméstica de lá.
A menina pôde sentir um compromisso atrelado aquele trabalho, e estava certa. Apesar de muito agradecida, sentiu-se um pouco desconfortável naquela situação. Sabia que o coração não pensa, apenas sente, e naquele momento sentia seu coração bater por Arthur, mas percebia que o coração de Bila, era por ela que batia. Alice temia ter que se comprometer por gratidão.
Naquele momento estava selado o destino de Alice. E longe de ser um final feliz de contos de fadas, o que a esperava era uma vida de sacrifícios enquanto trabalhou na casa do prefeito. Depois que saiu de lá, não foi menos difícil, viveu a lavar roupa pra fora, fazer faxinas, acompanhando idosos doentes e abandonados por seus parentes; vendeu balas e até houve momentos em que precisou mendigar pelas ruas daquela cidade, que um dia sonhou ter uma vida melhor.
O negro Bila, longe de ser um príncipe encantado, amou Alice como pôde. Era um homem vinte anos mais velho que ela, e já com alguns vícios como o da bebida. Não conseguiu de Alice o amor que tanto desejou. Ela o amou mais como se ama a um protetor, e escondeu dele por toda sua vida, o que sentia por Arthur José. E este, vendo que a tinha perdido para o seu próprio pai, seguiu sua vida como caminhoneiro, sem pouso certo. Teve vários amores, mas nenhum como o que sentiu por Alice, o único amor que fazia seu coração palpitar mais forte e ver a vida com um colorido todo especial.
Alice teve com Bila um menino e uma menina, esta morreu ainda bebê, de uma queda dada pelo pai quando chegou em casa bêbado.
Hoje Alice aos oitenta e dois anos, continua analfabeta, é viúva e mora na companhia de seu filho José Pretinho, que a trata com carinho, respeito e o cuidado que ela tanto merece. Alice apesar da vida dura que teve, de hoje não ser menos pobre do que foi, cumpriu sua promessa a si mesma, não tendo nunca se prostituído e nem roubado. Com a idade avançada que tem, e sofrido como sofreu, é um milagre não ter se tornado amarga, pelo contrário, é de um bom humor contagiante. Quem a conhece não a esquece devido a alegria que carrega dentro de si, mesmo tendo tido uma vida tão limitada. É um exemplo de vida para qualquer um.