O MENINO SOFREDOR QUE TRAZ ALEGRIAS



Ali, naquele trecho da BR 316 entre a "Princesa do Sertão maranhense – Caxias" - "Terra dos Cocais" e o município da cidade de Codó (MA), precisamente na localidade Baixa Grande, bem ali nasceu nas proximidades da beira da pista, um menino num casebre de paredes de taipa coberta com palhas de babaçu. A folhinha marcava na minha mente o dia 8 de julho de 1987, recém-chegado do Rio de Janeiro, e cumprindo o mister da profissão de advogado, fui à cidade de Codó, defender os interesses da empresa Fazenda Arado de propriedade de um dos mais renomados homens de negócios da região – Antônio Nonato Duailibe Salem, de família libanesa. Ao passar nas adjacências da Baixa Grande, conversei com o amigo Pedro que me acompanhava no trajeto. E de prontidão indaguei:

- Que lugar é esse Pedro?

-Aqui é a famosa Baixa Grande. Disse ele.

-Caracas! Que lugar bonito! Vou parar pra registrar esses fatos, inclusive quero tirar fotos daquela casinha onde não vende fiado. Ôpa! Fiado só amanhã! Caramba!

-Doutor! Se continuar desse jeito nunca chegaremos a Codó, deixe isso para um outro dia.

-Espere! Preciso pelo menos tirar uma única foto daquela casa de palha. Diga-me o que funciona naquele local?

-Ali é o Bar Piripiri melhor dizer o cabaré da Mariazinha com serviço de comida caseira, bar e cerveja gelada. Se você não sabe, a Mariazinha é uma mulher vistosa e bem aplumada. Uma porreta de mulher!

Sem demora, paramos naquele minguado restaurante na beira da pista negra, bebemos um refrigerante de marca “Jesus” e comecei a correr a visão em todos os detalhes da pequena choupana, oportunidade em que fomos atendidos por um menino de apenas doze anos de idade. Em seguida, partimos com destino à cidade de Codó, e no transcurso inquiri o amigo:

-E aí Pedro? Você viu que o guri daquela idade já sabe matematicamente o resultado do troco num piscar de olho?

-Ah! Você não sabe de nada. Aquela criança tem uma história triste, além de não estudar é maltratado pela mãe e pelos caminhoneiros.

-É mesmo assim? Conte-me tudo, eu preciso saber. E caso haja meu interesse, vou escrever um conto sobre estes fatos.

-Doutor, se eu for contar a novela daquele garoto não termina hoje. Eu só sei que a Josefa que mora lá perto de casa trabalhou na cozinha da mãe dele. E tudo o que ela via por lá, contava pra gente em casa. Essa mulher é demais doutor, muito perversa com aquele garotinho.

-Conte-me agora. Vai...

Com relevância, Pedro foi descrevendo os ricos detalhes onde funcionava o ponto comercial na BR 316. E naquele recinto Mariazinha fornecia as refeições caseiras aos fregueses e também amores com a venda de cerveja. Na verdade, Mariazinha é uma mulher bonita, forte e decisiva, e com o filho recém-nascido, este permanecia nos braços de cada viajante que por lá passava. Alguns com anseios e com dinheiro dormiam e por lá pernoitava com a bela dama.

Ao que tudo indica Mariazinha nunca soube quem é o pai do seu filho, já que a sua vida agitada na rotina diária não permitia o futuro. Como se sabe, era ali um tipo de um inferninho na caatinga atravessada por uma BR onde os caminhoneiros que a conheciam iam ao encontro das buscas nos seios daquela mulher. Ela ganhava dinheiro com a venda das refeições, bebidas e com o corpo dourado de desejos.

O moleque crescia, e vivia naquele tormento com as desesperanças, apesar de que não suportava ver a mãe fazendo sexo com diversos indivíduos sem ao menos entender, porém, o grito de Mariazinha incomodava e chamava atenção da criança que se levantava do berço e olhava a mãe despida com um homem.

Os anos se passaram e vários caminhoneiros faziam parada naquele local pobre, servindo-se da bebida alcoólica, alguns abusavam ofertando cerveja ao menino que absorvia sem imaginar os resultados se embriagando e caindo pelos cantos da casa.

Ocasião em que um motorista dizia:

-Pronto amor! Minha Mariazinha! Podemos matar o que tu pedes e gostas. O teu diabinho atentado dorme que nem um veado.

-Vamos amor! Venha logo pro piripiri! Deixa ele de mão. Também só vai acordar amanhã. Tá dormindo que nem uma pedra.

Passaram-se vários anos, e o guri com cinco anos, já era um beberrão com os fregueses, dançando pelo meio da casa e num cair e se levantar. As gozações eram o retrato mais frequente daquele mísero ambiente. Numa oportunidade, o garoto recusou a bebida oferecida pelo caminhoneiro, insatisfeito, desferiu uma grande tapa no rosto do menor que caiu desmaiado. A mãe apenas olhou e sorriu, abraçando e beijando a boca do estranho.

O menino convivia mergulhado num enorme e desventurado meio de vida, e numa certa manhã, surgiu um antigo freguês da Mariazinha, por capricho pediu para que a mesma amarrar o prego do menino no fundo do quintal, para não perturbar o seu relacionamento. Sem demora, Mariazinha levou o menino para o mato, e ali, amarrou suas pernas e mãos num pé de pau pombo.
Sem entender, indagou o pequenote:

-Mãe! A senhora tá me amarrando? Tá doendo mãe! Me solte!

-Vou amarrar pra não fazer mais zoeira no meu pé de ouvido. E fica calado senão eu te dou umas porradas.

O miúdo de pé e abraçado ao pau pombo, choramingava sem apagar a dor do silêncio com o sol que rebatia em sua cabeça. Vestindo num calção listrado, urinava molhando o solo no conjunto das lágrimas que escorriam entre a face e o caule da árvore. Sem se falar que o meninote não gostava dos homens que abraçavam e beijavam a sua mãe. E quando presenciava, derramava a cerveja do cliente, oportunidade em que era espancado pelos fregueses. Repetidos atos eram contumazes nas noitadas de Mariazinha. Sem se falar que muitas das vezes o menor era amarrado junto a uma árvore no fundo do quintal às escuras. A dita criança mesmo lacrimejando e sem poder fazer nada, calava-se no meio da escuridão profunda do sertão.

Certo dia, este mesmo freguês incomodado com os gritos, levantou-se da cama e foi até o quintal esbofetear o guri no escuro. Sentindo a presença de alguém, o garoto foi espancado com severos golpes na boca e cabeça. A respiração do miúdo esvaziou o capoeirão enquanto a mãe nada dizia. E nas margens dessa aflição, silenciando os gemidos, ali pendia para o lado esquerdo o corpo do menino já desmaiado seguro apenas pelas cordas que prendia o seu corpo ao pau pombo. Uma lagoa de sangue se filtrava na areia daquele pequeno anjo irreconhecível.

Já eram seis horas da manhã quando o caminhoneiro partiu acionando a carreta, momento em que a mulher vai olhar o guri levando um balde com água, e acorda o moleque com o derramamento de água fria sobre o corpo ensanguentado. Podia se ver o olho direito da criança com uma gigante mancha roxa e um vermelhão que cobria toda a íris, a boca desmedida com um corte em sua lateral, vazando da cabeça ainda um pouco de sangue. E naquele instante, a mulher desamarrou e levou nos braços colocando na rede. Ali, deitado, apenas um olho percorria a tristeza marcada em cada pedaço de vida, e com o corpo magrinho estendido na rede azul o menino não entendia as razões do mundo imaginário, apenas olhava o rosto de mãe.

Os anos se passaram no decorrer de tantas tempestades, e o garoto já contando com 08 (oito) anos de idade, percebia facilmente as sucessões dos fatos. Ao chegar um freguês, o pequeno jovem se dirigia ao riacho com um balde trazendo água para o caminhoneiro se banhar após o sexo, antes, o guri deixando o balde de água no quarto e rumava em direção às matas da Baixa Grande, retornando após a saída do homem. E assim passou vários anos nesta vida desvairada e melancólica contra a sua vontade, ajudando nos trabalhos domésticos, não tinha sequer um amigo ou alguém para narrar às tristezas e as lágrimas que corriam da meiga face.

Contando com doze anos, o jovem discute com a mãe, instantes em que a flor do ódio se abre ordenando a expulsão do guri, e argumentando frases e expressões injuriosas. De repente, o menino falou algo que jamais havia dito.

-O dia em que eu ver o meu pai, vou falar tudo isso. A senhora vai ver!

E ela sorrindo, dizia:

-E quem é o teu pai que não conheço. Olha! São tantos e acho que tu foi gerado pelo vento.

Sem mais ouvir, o jovem entra nas matas da Baixa Grande se enfurnando por lá. Não demora muito quando um automóvel para, e desce um senhor, indagando:

-É a Mariazinha? A dona do Bar Piripiri?

-Sou eu mesma a sua criada dos sonhos e fantasias.

Sorrindo, o homem disse:

-Legal! Você me deixa sem palavras olhando as tuas curvas.

-Se abanque e venha degustar uma cerveja comigo.

Argumentou o homem, dizendo:

-Eu não quero cerveja. Eu quero é você pra me levar na lua e depois pra marte.

-Pois é gostosão, tô aqui é só me querer. Você é casado? E o que faz da vida?

Indagou a Mariazinha passando os olhos no veículo estacionado.

-Eu sou casado e delegado de polícia no Estado do Piauí. Você conhece o Vavá? Sou amigo dele, afinal de contas foi ele que me deu o seu endereço. Eu parei aqui só pra lhe conhecer. Sabe... Esse meu amigo me disse que você é quase virgem, e tem um carneirinho que fuça bastante. É por isso que estou aqui. Adoro mulher assim.

-Não conheço nenhum Vavá. Adoro satisfazer os homens mal casados e mal-amados. Se você quer algo comigo então vamos lá. É só quarenta pilas.

-Minha nega! Vamos fazer um negócio? Eu só posso pagar dez.

Surpreendeu-se a mulher dizendo:

-Quanto?

-Dez reais.

Só isso? Ah mais você não quer não! Assim você não vai ter carneirinho. Não trabalho com dez reais e só fale comigo com quarenta mangos. Eu tô querendo quarenta pilas. Será que você não ouviu?

-Não entendi qual é a tua. Quarenta reais? É demais.

-Nada feito. Tu acha mesmo que vou deitar contigo de graça cara.

-Acho bom você me respeitar.

Advertiu o policial.

-Uau! Que onda é essa meu chefe? Aqui é minha casa e nada te devo. Você é que tem que se dá respeito. Você não se diz que é  o tal delegado? Procure o seu lugar que eu já tenho o meu. Você não disse que é casado? Procura tua mulher, talvez ela te dê de graça. Talvez sai mais em conta, boçal.

Irritado, o delegado afirmou:

-Olha, tu vai dá essa porra é de graça. Quer ver?

-Me mostre. Eu ainda não vi até hoje um sujeito homem me obrigar a fazer sexo. Tá querendo me obrigar pelo cargo de delegado. É?
Sem solução, o delegado diz:

-Tu és muita é bandida porra! Eu vou te amar e de graça, e ainda vou te levar presa por vender sexo na estrada. Tu sabe sua escrota que é crime.

-Não tô nem aí. Tu me parece um daqueles delegado chefe de quadrilha de cargas roubadas.

-Tá me chamando de corrupto? É sua porra?

-Tô falando e daí? O corpo é meu e eu faço dele o que eu quero e ninguém me obriga a ficar contigo. Eu me chamo Mariazinha com M maiúsculo. E a Justiça tá aí mesmo para ser aplicada.

-Sai fora sua vadia. Justiça não existe pra quem é pobre, porra vagabunda! Tu tem dinheiro? Se tu tens dinheiro, eu vou embora. Como tu não tem dinheiro nem pra comer quanto mais pra movimentar a justiça. Eu fico.

-Mais essa é boa. Você vem lá do inferno e ainda quer mandar no meu corpo. Tá vendo que eu não caio nessa. Não sou obrigada a satisfazer os teus desejos.

Sem demora, o delegado sacou da arma e disse:

-Tá vendo isso? É um ferro. Tá vendo isso? É a minha carteira de delegado. Então, você dá essa porra agora ou vai dar umas voltinhas no meio do mato?

Ao observar o revólver encima da mesa, a mulher se lastimou, dizendo:

-Não moço! Não faça isso comigo! Por favor! Eu faço tudo o que você quiser mais não me mate.

Naquele exato momento, o menino apareceu e pegou a arma de cima da mesa, logo em seguida, segurando firme e ameaçando o delegado, diz bastante nervoso:

-Larga a minha mãe senão eu te mato! Larga! Larga a minha mãe!
O delegado olhou para o menino e disse:

-Se tu sabe atirar, então aperta o gatilho cabra frouxo. Vai! Atira na tua mãe! Manda fogo vagabundo!

O menino olhou pra a sua mãe, enquanto o delegado agarrava à força pelo braço, e mulher implorava dizendo:

-Não atire Robson! Eu não te quero assassino. Deixe ele me matar, mais morro como uma mulher. Saia daqui pelo amor de Deus! Não faça isso meu filho. Não, não faça isso.

Com a arma apontada na direção da cabeça do delegado, ele disse:

-Mãe! Nem que seja a última coisa da minha vida. Eu não vou deixar mais lhe baterem. Eles abusam da senhora e de mim todos os dias.
Eu não aguento mais. Por causa deles a senhora é obrigada a me prejudicar. Eu vou acabar com ele agora!

O delegado agarrado com a mãe, disse:

- Largue a arma garoto! Tua mãe tá mandado baixar a arma. Larga isso, e coloque na mesa.

Sem expectativa e experiência, o menino olhou de banda, momento em que o delegado avançou e tomou a arma, dando-lhe chutes e pontapés. A mulher agarrou pelo meio o delegado e caíram no solo numa desvairada briga. Já desmaiado no chão e mais uma vez com a boca quebrada. O homem arranca com violência a mulher e joga no veículo e sai em disparada.

Já era tarde, aproximadamente às 22 horas daquela noite, o menino com dois dentes quebrados se levanta, chama por sua mãe que não responde. Em seguida adentra no meio da pista silenciosa e negra, olhando o vazio das esperanças em milhões de pedaços, saindo pela BR grita o nome de sua mãe. Os alaridos do menor podiam ser ouvidos há mais de um quilômetro ou talvez à longa distância.

Todavia, nenhum vestígio poderia indicar a localização correta, cambaleando de uma perna e com um pedaço de pau feito bengala, ali vagueia nas melancólicas estradas da vida o pequeno anjo.
Com ferimentos na face e feridas pelo corpo leva apenas uma camisa inundada de sangue de cor branca, descalço e mancando da perna, segue sem destino ao rumo do além. As horas ultrapassam a escuridão que não cerra, e o pobre menino do capoeirão do nordeste, não desiste das últimas esperanças.

Naquela pavimentação totalmente desprovida de qualquer ajuda, somente uma grande estrela no céu seguia os passos do menino naquele estradão sem fim. Mesmo assim, já era tarde, as últimas forças da vontade não se curvavam ao mero destino, e tão pouco o tempo oferecia conforto sem rastros. O pequeno grande homem, apenas atravessava na paralização das eras os passos leves guiados às escuras.

Ali batia calmamente um coração ainda cheio de expectativas desolado pelas dores espalhados numa visão turva.
Após percorrer mais de vinte quilômetros pelo acostamento da BR 316, algo estranho se enfileirava entre os dedos do pé esquerdo. Ao tentar se livrar do empecilho, o pequeno percebeu que se tratava de um pedaço de fita vermelha utilizado para amarrar os cabelos. Ao tatear o pedaço de fita, sentiu que pertencia a sua mãe. Cheirando a fita, percebeu o odor do sangue na extremidade, e gritou.

-Mãe! Mãe! Onde tu tá?

-Mãe - ê-ê-ê-ê, ei ti queroo mãe!

-Mãe...

A voz bradou num eco profundo fazendo as corujas levantarem voo, e o vento assoprou forte o corpo minguado daquele infantil, instantes em que a estrela Dalva abria na BR 316 uma vastidão de luminosidade jamais vista na face da terra. Era uma lua. Não era uma lua, ali estava um astro incandescente pastoreando a vida do menino pobre em busca de uma única pessoa que conhecia – Sua mãe. Com tanto fulgor, a estrela Dalva parecia que vinha em socorro do pequeno clareando as laterais da BR 316 e abrindo todas as veredas naquelas adjacências. Com o raio luminoso, instante em que guri olha à sua direita e segue uma estradinha de areia e desce em disparada. Ali se revestia no lençol abatido das abalizas dos pneus, e seguindo a trilha deixada pelos pneus no matagal assombroso, novamente ele gritou:

-Mãe! Mãe! Onde tu tá?

-Mãe - ê-ê-ê-ê, ei ti queroo mãe!

-Mãe...

Em determinada circunstância, o meninote nota que o veículo fizera manobra à direita e retornou à pista de rolagem. Naquele brilho da estrela sob sua cabeça, o garoto pediu a Deus que lhe entregasse a sua mãe querida e que nada pudesse tirar a sua vida. Sem demora, viu o menino as marcas nas areias brancas iluminadas pela irradiante estrela Dalva com marcas de sapatos e pés descalços como se estivesse correndo um atrás do outro.

Não se conteve e gritou novamente, sem respostas, partiu pelas matas descendo o serrado negro e espinhento. Não muito distante dali, ele ouviu um gemido baixinho, e foi conferir. Era sua mãe com a boca cheia de papel higiênico e um lenço amarado contra a boca, além das mãos e pés. Com o rosto recoberto de manchas de sangue, os olhos arrebentados de pancadas, estavam completamente inchados. Marcas cruéis de coronhadas de revólver na cabeça, e assim permanecia dormindo.

A boca que era tão bela e o corpo de uma princesa tornavam-se irreconhecíveis. Ali não era a Mariazinha, a mulher bonita da BR 316. O menino ao olhar a sua mãe. Chorou abraçando o seu pobre corpo nu, decaído na areia do minguado sertão da Baixa Grande. Com as lágrimas caindo sobre o rosto da mãe. O garotinho dizia:

-Mãe, eu tô aqui! Eu procurei a senhora por todas as bandas. Mais Deus mandou eu te levar pra casa. Não morra mãe! Mãe! Por que ele fez isso com a senhora?

Retirando as amarras da boca e os papéis, libertando as mãos e os pés, ela respirou segurando a mão do menino, numa tentativa, abraçou mais uma vez a sua mãe e disse:

-Mãe tenha força! Vamos pra casa. Eu tô aqui. Eu vim lhe buscar. Vamos! Se levante.

Sem respostas, o garoto percebeu que a agonia era gigante, e o coração pulsava lentamente com a perda de tanto sangue. Sem tempo, o garotinho quebrou três pedaços de paus secos amarrando nas extremidades com pedaços de sua camisa ensanguentada e vários cipós vegetais. Preparado o arranjo empurrou com sacrifício o corpo indolente da mulher e arrastou pelas areias o corpo da mãe lentamente. O cansaço e a completa fatiga não se afastavam do menor, sem forças, os seus pés se atolavam nas areis frouxas e brancas, bem como a perna machucada e a pouca visão eram empecilhos para o salvamento.

Podia ser ver a briga desvairada do menino sertanejo contra as areias do tempo, empurrando metro por metro, centímetro por centímetro. O guri desejava chegar à beira da pista, por vezes, as cordas de cipó improvisadas arrebentavam, e de imediato o miúdo construía outras. Com apoio numa única perna as areias iam se afastando como um carrossel, abrindo passagem para aquele garoto iluminado e guiado pela luz divina. Sem qualquer conforto e já cansado, ele viu a pista negra à sua frente. Olhou para o céu e não viu mais a estrela Dalva. Somente uma bola avermelhada que nascia no horizonte, e ali já estava o belo alvorecer do sertão, já sentando na beira do acostamento, descansa alguns minutos e geme por sua mãe. Soluça com o corpo cheio de areia que permanecem em seu corpo.

Posicionados, ali estavam duas almas, dois seres humanos e duas expectativas nas chamas da comiseração. Sem roupas, amanhã era fluorescente com os raios solares, os pássaros já cantavam e voavam de um lugar para outro. Agonizante, o miúdo observar na curva da Baixa Grande um ônibus que corta o silêncio da manhã com o barulho do motor.

Sem forças para se levantar, o guri se apoia no bastão e vai de encontro ao meio da pista de rolamento, abrindo os braços com o bastão o ônibus desvia pela contra mão atordoando os ouvidos com uma buzinada. Um outro veículo cruza aquele espaço, sem medir esforços, o bravo herói se ajoelha no meio da pista pedindo socorro com o bastão na mão. Outro automóvel surge, apenas desvia do menino. O motorista comenta com a esposa:

-O que esse garoto faz nu no meio da pista com uma vara na mão essas horas? Nunca vi tal coisa. Deve ser um louco, só pode!

A mulher diz:

-Talvez ele queira dizer alguma coisa. Vamos voltar?

-Você está doida?

O menino sertanejo queria entregar a sua vida ao espaço, ambicionava mostrar o único pedaço de carne para salvar a sua mãe. Num ato desigual e inusitado, ali esperava o menino num gesto que somente o tempo é capaz de medir o amor. Já que os empenhos para alguém prestar socorro seria mais difícil principalmente o calor humano.

Mais uma vez, aparecia um ônibus da viação Itapemirim, desviando do menino no meio da pista buzina e desacelera.

Uma senhora dentro do ônibus gritou ao motorista:

-Hei motorista! Pare esse ônibus! Tem duas pessoas machucadas na pista e esse menino nu quer salvar. Pare! Senão eu grito!

-Vejam! É um menino ferido! E tem uma pessoa na lateral da estrada sem roupas! Para essa joça motora.

-Não posso parar senhora. São normas da empresa. Inclusive pode ser até uma maneira de realizar um assalto disfarçado.

-Não moço! Eu vi um menino nu e todo ferido. Para essa porra logo!

-Não posso! Não posso colocar os passageiros em perigo. É incrível a senhora ver tudo isso. Afinal de contas já estou acostumado com tudo o que acontece na estrada. A vida é assim mesmo. Não podemos parar. O tempo não espera, tenho que chegar ao destino no cumprimento do meu dever.

-Que miserável. Tá vendo Dona Rita? O meu coração dói por dentro em ver aquela cena. Que motorista ruim! Eu vi com meus olhos o rosto daquela criança pobre toda ensanguentada.

Os minutos passam, e a força derradeira encolhe o menino no meu da pista, perdendo as esperanças de salvar a sua mãe, entregando-se ao esmo que turva nos horizontes da Baixa Grande. Bem ali, recolhido num pequenino pedaço de carne no meio da pavimentação. Apenas um marco divisório separava as duas pistas. E o bastão na posição vertical enfiado nos seus braços, faiscava um singelo pedaço de camisa em tiras no auge.

Sem qualquer esperança humana, a natureza resolve a questão, enviando uma brisa forte naquele local, e balançando as tiras de tecidos que salvou a mãe do menino, elas permanecem dependuradas como uma bandeira na ponta do bastão seguras pelos braços frágeis. Uma carreta carregada de cimento surge na curva sem vento, o motorista numa distância de quinhentos metros, observa e diz:

-Meu Deus! O que será aquilo! Me salva Senhor! Um pedaço de madeira com três tiras brancas. Parece um acidente! Ó Deus!
Ao se aproximar, o caminhoneiro breca pisando com força no freio e das rodas saem fumaças. A carreta com mais de 20 metros de comprimento para ao lado do pequenino corpo, e o homem pega pelos braços e coloca na cabine.

Ao sentar no banco, ele se surpreende com o outro corpo ao lado.

-Essa não! Meu Deus! Outro corpo! O que deveria ter acontecido por aqui? Parece uma chacina ou estupro. Uma loucura tudo isso! Muito sangue! Meu deus!

O homem coloca a mão no coração da mulher, e sente os levíssimos batimentos, cobrindo o corpo com uma toalha e agrega na cabine. Numa velocidade impressionante, o homem arrisca as curvas fechadas abrindo passagem com fortes buzinadas. Com tanta rapidez, o caminhão parecia voar na mansidão negra do asfalto com destino à Caxias. Embora desconhecer as causas o homem penetra na cidade com as buzinas abertas, pedindo passagem com direção ao Hospital Mirom Pedreiras no centro da cidade. Atendido no Pronto-Socorro, e encaminhados para exames de rotina os dois passaram uma semana em leito. E recebendo alta, volta pra casa na localidade Baixa Grande, momento em que o garoto diz:

-Mãe! Nós vamos embora para Codó. O que a senhora acha?

-Meu filho! Eu só tenho você e se o seu coração disser sim, eu vou com você;

-Sim, mãe. O perdido foi achado que é a senhora e a partir de hoje eu quero cuidar da senhora. Apesar de que a senhora não cuidou de mim quando pequeno. Eu agora quero cuidar da senhora. Eu só tenho a senhora no mundo. Eu não tenho ninguém além da senhora.

-Eu agradeço meu filho. Você me perdoa por tudo que fiz de errado com você?

-Sim mãe. A senhora já está perdoada desde o momento que a senhora me falou que me amava. Olha mãe, lá em Codó agente pode trabalhar numa boa. Eu vou trabalhar e estudar.

Os dias passam, e o menino cola uma placa na porta da casa. “Mudou-se”.

-Vamos mãe, podemos vender tudo isso rapidinho por lá. Podemos pedir uma ajuda na estrada e algum filho de Deus terá compaixão de nós. E quem fizer o frete, vamos dar a geladeira como pagamento. O que a senhora acha?

-Tá bom meu filho.

- Mãe lá em Codó vou estudar e a senhora pode pegar um emprego numa loja, Quem sabe um dia vamos morar numa casa bem bonita.
E quero trabalhar pra ajudar a senhora.

-Filho, nunca mais você verá a sua mãe como você via antes. A minha vida está em teus olhos e vejo como você é bonito e um bom filho.

-Mãe parou um carro na pista, vou olhar.

O menino retorna, e avisa;

-Mãe é um homem perguntando se tem água pra beber.

-Eu posso dá?

-Pode filho, só não abra a porta.

O menino levou um litro com água ao caminhoneiro, e logo indaga:

-Hei moço o senhor vai pra onde?

-Eu vou para Timbiras. Qual o seu nome guri.

-Meu nome é Robson. E o seu? Olha, nós vamos pra Codó?

-Sim. Eu também me chamo Robson, e você tem o mesmo nome.
Engraçado né? Então você é o meu xará.

-Certo. E dá pro senhor levar uma muda até lá pra gente? Não podemos pagar em dinheiro, trocamos o frete pela nossa geladeira.

-Não é preciso isso garoto. O caminhão está vazio. Arrume as coisas que levo vocês pra lá. Onde está a muda?

-Aqui dentro.

-Que lugar bom! Faz mais de doze anos que andei por aqui. Tudo por aqui continua do mesmo jeito. Eita sertão danado!

Curioso, o menino indaga.

-Moço, o senhor vem de onde?

-Do Rio Grande do Norte.

-O senhor tem o mesmo sinal da minha mão. Tá vendo?

-Sim. Parece uma coincidência. Um milagre, né?

De imediato, o menino vai ao encontro da mãe, e diz:

-Mãe. O homem que está lá fora tem o mesmo sinal da minha mão e o mesmo nome. E os olhos deles são azuis da cor dos meus olhos. Quem é ele mãe?

-Não sei filho. Como posso adivinhar?

O menino volta ao encontro do homem e ajuda a fazer a muda. Instantes em que diz ao garoto.

-Aqui antigamente tinha uma comida muito boa. Eu só almoçava aqui, e a Dona se chamava Mariazinha. Ela deve ter ido embora, gente muita fina. Não tinha uma vez que eu não parasse por aqui.

-É o nome da minha mãe moço. O restaurante se acabou há muito dias. Não vendemos mais nada. Estamos de partida pra Codó.

-É... Que legal.

Naquele momento, Mariazinha surge pela janela, e observa que o pai do seu filho é o homem do sinal na mão direita, porém se mantem calada.

Sem tardança, o caminhoneiro, indaga à senhora:

-Diga-me uma coisa. Quando eu passei a última vez aqui você me disse que estava grávida. Esse menino tem o mesmo sinal da minha mão. É o meu filho?

-É verdade. E os olhos deles são os mesmos brilhos dos seus.

-Então, eu sou o pai dele?

-Sim.

-E porque você nunca me escreveu ou me telefonou?

-Eu jamais faria isso. Eu não gostaria de quebrar a sua paz com essa notícia. Afinal de contas, os homens nunca assumem a responsabilidade, e mesmo na situação em que eu me encontrava não era boa. Hoje, vejo o outro lado da moeda.

-Você sabe que nunca tivemos qualquer problema.

-Sim. É verdade.

Imediatamente, a mulher chamou o menino e disse. Robson este é o seu pai.

- Meu pai? É mesmo?

O moço olhou o menino e abraçou, beijando o seu rosto. Disse o menino:

-Pai! Você pode morar comigo?

-Sim. Depende de sua mãe. Eu sempre gostei dela. Se ela me aceitar, eu deixo até de rodar as estradas pra gente viver juntos e nunca mais se separar.

-Verdade pai? Olha a minha mãezinha sofreu muito. Ame ela tanto quanto a mim. Eu preciso de um pai pra me colocar no colo e passear comigo. É só isso.

-Filho! Eu nunca soube da sua existência. Para mim é uma alegria sem tamanho. Doze anos que se passaram. Eu cheguei e vi tudo mudado. Mas a coisa melhor do mundo é saber que você leva tudo de mim.

E aí, o amor nasceu germinando na vida daquela criança com novos rumos que a existência é capaz de compreender, entrelaçando a felicidades por imensos sacrifícios e que perfazem os alicerces desse sentimento.




ERASMO SHALLKYTTON
Enviado por ERASMO SHALLKYTTON em 04/07/2010
Reeditado em 30/09/2011
Código do texto: T2358362
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