Momentos de penumbra e de luz
“....acidente com o avião bimotor Navajo prefixo PP-FFF, mata o piloto único tripulante em seu interior, testemunhas alegaram que o mesmo sobrevoava a cidade de Guaxupé/RO, quando após grande explosão o avião veio a se chocar contra o solo... relatos dão conta que o impacto se deu no meio da floresta próxima a pista de pouso e que não sobrou quase nada além de cinzas e mais cinzas, -- informou o repórter alvorada 105 megahertz a única que traz ate você tudo o que ocorre nas selvas no chão e no ar.... “
Lembranças de uma vida nas selvas
Do lado de fora nada se manifestava o silêncio absoluto, escuridão na floresta. O céu abarrotado de estrelas parecia uma peneira de luz . Uma casa de modelo colonial, janelas grandes, uma luz violeta proveniente de seu interior se destacava. Construção pobre e antiga. Parecia estar mergulhada em si mesma.
No centro daquele bar o ambiente era escuro. Alguns filamentos de luz violeta faziam a iluminação do ambiente, ficavam no alto e atrás do balcão, de onde eram servidos todos os tipos de bebidas. O ambiente, porém, mantinha-se em uma semi-escuridão. A música lenta, antiga, americana dominava o local, e, o que se via eram vultos conversando em pequenas mesas localizadas nas margens da pistas de dança, e os solitários em frente ao balcão sempre a procura de mais uma dose de uma bebida qualquer que lhes desse distração até o momento de sentir vontade de pedir o próximo.
Os solitários noturnos recorriam àquele local mesmo que não se interessassem por ele, sabiam que ali era mais fácil vencer a noite sem ver o tempo passar. Ali, floresta da reserva Xapuri, norte do Brasil, selva amazônica; local em que a cada dia parecia estarem mais distantes do mundo.
Era o que pensava o piloto de aviões monomotores, responsável pela manutenção do garimpo Vila Velha, Aiva, enquanto tocava uma música dos anos oitenta que há muito não ouvira e que o fazia se lembrar do tempo em que vivia em sua cidade natal e que descobrira o amor, momentos que lhe traziam frescor e tranqüilidade em relação a vida, em anos em que tivera a oportunidade de viver as belezas do litoral e de paraísos do planeta, enquanto com sua comunidade de pesca.
Xapuri era um local onde o respeito era essencial e qualquer excesso além da conta ou alguma coisa que parecesse inofensiva poderia imprevisivelmente iniciar uma verdadeira confusão, por parte de algum dos fregueses daquele local que servia como um templo de lembranças, reflexões e pensamentos de pessoas aprofundadas em si mesmas. No entanto, não eram raras às vezes em que se davam os acontecimentos mais inesperados provenientes daqueles homens guerreiros, solitários, duros e orgulhosos, que levavam uma vida de colonizadores em uma terra remota, em busca de fortuna, de ouro, coisas que podem levar o homem à glória ou a ruína em segundos, e que - na fraqueza da noite, perdiam-se em realidades de suas mentes que combinadas com o álcool se tornavam maiores do que suas capacidades de discernimento, criando verdadeiros viagens alucinadas.
Havia ali homens que buscavam aventuras e assim alimentavam os seus espíritos - a vida de pilotos era assim; o chão se tornara inaceitável e muitas vezes o mundo se fazia distante, á parte, algo que não entendiam, - “O que era buscado ali no chão?” – “Para que perseguir tudo aquilo? Fortuna, fama, prestígio social ?”. Não . Não ali. Nada era mais importante ali, ou mais significativo do que a vida em duas asas e acima do chão.
Mas já se fora aquele tempo; o que Aiva, piloto de aeronaves, há mais de 15 anos naquelas regiões, percebia era que ia se esvaindo o tempo em que os homens corajosos buscavam aventuras e se revestiam de ideais nobres e uma série de virtudes para continuarem se aventurando naqueles céus. Aqueles homens sabiam que aquilo era o sal da vida, eram pessoas humildes, justas, fiéis, de boa-vontade e bom coração, que viviam como pássaros sem ter onde dormir ou o que vestir a não ser uma pequena mala que era renovada a todo momento, roupas que eram divididas, emprestadas. Hoje em dia foram-se as virtudes o companheirismo, a fraternidade e chegara a competição e o individualismo. Cada um por si.
Aiva recebera este apelido desde o dia em que chegara naquelas terras como piloto iniciante, pois tinha um walk-man (radiofone) que sempre ouvia durante os vôos da marca americana Aiwa. Os pilotos e pessoas do local o chamavam assim, ninguém realmente sabia o seu nome e nem perguntara; durante todo este tempo era conhecido assim e pronto.
Perdera muitos amigos durante sua carreira, e agora, naquele bar ou birosca – como era conhecido, enquanto observa um casal de mestiços dançarem um música lenta antiga, via passar diante dos seus olhos os antigos companheiros que morreram naquela busca pelo ouro.
Costumava dizer aos mais antigos - quando reunidos nos vários aeroportos da região, que o ouro subira a cabeça, e que, a partir de então o que se via era a degradação humana se iniciar.
Ah, nada era como antes, "antes piloto era piloto e só. Mas quando começaram a querer ganhar mais do que era justo e ir além das possibilidades próprias, a fatalidade era iminente, fora assim com Rai, Teco, Ronane e outros (...) Pilotos que iniciaram a carreira e que depois iludidos pela busca do ouro começaram tomar o espaço dos mais antigos, pilotar pelos locais proibidos, nos horários proibidos em condições perigosas porque queriam ser os melhores. Eram a nova geração e queriam monopolizar os vôos e ganhar mais dinheiro e fazer fama e fortuna. Queriam estar no paraíso do ouro, naquela época em que os garimpos produziam ouro como se fosse água e o avião mais do que essencial para fazer a ligação da produção com mundo dos negócios, em um local em que tudo era apenas florestas, e quando não, rios , nenhum tipo de estrada, apenas os rios podiam substituir os aviões, porém, devido a longa duração das viagens eram dispensados.
Mas a natureza fora a mestra maior; naquelas terras de desbravadores aéreos, que faziam dos céus grande palco de demonstração de qualidades e defeitos conforme as leis da aerodinâmica e da natureza.
A natureza, ai daquele que não a respeita, pensava Aiva.
“(...) E foi assim: um decolou durante forte precipitação perdeu a visibilidade e se chocou contra uma serra, matando todos os cinco ocupantes da aeronave PP-ZZZ, Cessna 172, ; logo após , mais ou menos um ano, o outro decolou com a aeronave do aeroclube de Roraima, Sêneca III, PP-GGG, com gasolina insuficiente para chegar ao destino. Mesmo ciente deste fato insistiu, assim mesmo, em prosseguir, sabendo que se precisasse de um outro local para pouso não o teria, confiando em sua perícia e técnica, e se esquecendo de sua prudência, tamanha era a ânsia em receber um certo volumoso pagamento. Graças a sua competência reconhecida e seus conhecimentos, Teco pilotando muito bem conseguiu chegar ao destino com a gasolina que tinha no tanque da aeronave, mas, assim que iniciou o procedimento de pouso, o motor teve pane seca (por falta de combustível) o avião perdeu a velocidade e se chocou com a cabeceira da pista,. Morreu carbonizado, a vinte metros do destino ! ”
Era assim, na hora em que o ouro subia a cabeça, iam – se as pessoas. O humilde se tornava arrogante, o fiel se tornava companheiro de meretrizes, o companheiro, traidor; o de boa vontade, desconfiado, e assim se alastrava a doença
A corrida pelo ouro gerara uma destruição de valores e de virtudes entre as pessoas naquelas terras, semelhantemente ao que foi feito pelos europeus quando colonizaram o Brasil trazendo para as tribos indígenas - como doações: roupas e cobertores contaminados por doenças terríveis - varíola, pneumonia, tuberculose, tífano,... e toda sorte de bactérias para as quais o sangue indígena não possuía resistência dizimando populações de inúmeras tribos da selva amazônica. Assim ocorrera com o ouro quando atingira aqueles homens simples e vulneráveis, em suas humildes buscas..
O importante no entanto naquele momento para aquele homem de experiência e vivência estava, agora, no centro da pequena pista de dança daquele pequeno bar-boate , situado em um distante ponto no meio da selva a três quilômetros da pista de pouso mais próxima, afastado de qualquer contato humano, era a figura humana feminina esguia que se destacavam em seu contorno violeta da luz que vinha de trás, e que em um momento de puro voluntarismo se dirigiu a ele e o chamou para dançar.
Como se conheciam há anos Aiva achava que cada vez que se encontravam naquele local de tempos em tempos apesar de tantas ocupações ficava mais agradável estar ali, pois ali se harmonizavam cada vez mais, porém de forma diferente e nova assim como as estações do ano.
A pessoa em questão era Catarina, não porque tivesse este nome, mas porque era natural de Santa Catarina, e ali logo que chegara como médica para realizar trabalhos sociais na população indígena se apaixonara e ficou conhecida por este nome, vindo a não querer mais sair dali, esquecera-se da família e do futuro promissor que tinha em sua cidade, com um casamento quase marcado com um dos melhores cirurgiões cardíacos do estado de São Paulo, e uma vida que seria cheia de bens materiais, permanecendo ali - onde dormia em palhoças de índios em postos de saúde mal cuidados, sempre com grande quantidade de insetos e toda sorte de doenças epidêmicas, as quais tratava sem nada receber, está era a conhecida Catarina, há quase dez anos trabalhando na região amazônica no garimpo e em suas imediações.
De volta ao “Bar 09” - número da cabeceira da pista nas proximidades, o que se tinha era o surgimento do amor no ar. No escuro a musica tomava conta fazendo com que o mundo ficasse distante e os problemas se reduzissem até quase desaparecerem, e a vida fluía em seu sentido único enquanto aqueles amantes Aiva e Catarina, em uma dança fraterna de compreensão e respeito, uniam-se e se deixavam levar, no meio daquele local precário, sem estrutura, nem mesmo boa aparência. A musica tocava como se fosse sozinha por algum milagre e iluminava os sentimentos daqueles pequenos seres, envolvidos um com o outro. Em meio a este grande planeta azul em meio ao universo escuro, poder-se-ia ir se aproximando e ouvindo enquanto a musica aumentava o calor daquele ambiente, os envolvia e este conjunto de fatores os conduzia até a grandeza plena do amor correspondido e compreendido; eles se deixavam embalar sem nem mesmo fazer esforço, fazendo prevalecer um sentimento de grandeza e de vida, como se esta estivesse correndo através deles e que partilhavam unicamente, como se fossem apenas um.
Era uma comunhão com todo o universo que fluía através deles, fazendo com que se sentissem cada vez maiores, do tamanho do universo.
Não pensavam em nada apenas sentiam. Conscientes de que aquele momento era o momento da existência infinita, sem razão, sem motivo, sem pensar, apenas envolvidos na natureza humana do amor natural, que era aquilo que lhes fizera renascer, aquilo que lhes fazia viver; descobrindo o que era a verdadeira vida, situada. naquele sentimento de cura e restauração que só se sabe como é, depois de vivido; que dá vida, que conduz a plenitude, e traz ao mundo corrompido e limitado o eterno, infinito e pleno, simples e natural como a vida é.
E a música prosseguia embalando os corações.