Eu e o Nestor

Brincávamos.

E, no dia-a-dia de nosso cotidiano, sua companhia era um alento para esquecer, ou pelo menos abdicar por alguns instantes, das agruras e os percalços da vida.

Meu companheiro, mudo, não falava. Somente ouvia. E que belo espectador também o era.

Companheiro fiel, seu ciúmes e ciosidade para comigo eram notáveis, a ponto de quem quer que de mim se aproximasse com suspeitas atitudes seria de pronto instado a manter cuidadosa distancia.

Juntos fazíamos nossas refeições. Café da manhã, almoço e jantar. Vez por outra, uma pequena ceia quando a noite fosse convidativa e as programações da tevê oferecem melhores opções.

Bastava-me apenas um simples gemido seu para adivinhar sua necessidades, ou mesmo um simples olhar para entendê-lo em suas vontades.

Tinha seus lugares cativos em nossa casa. Podia-se encontrá-lo ao pé de minha cama, na sala de visitas, embaixo da mesinha de centro, junto à minha mesa do computador e, nos dias mais frios, no pequeno nicho de minha estante em meu quarto de dormir.

Não era exigente e o pouco de que se servia, bastava-lhe.

Memoráveis e inesquecíveis passeios fizemos. Praias, interiores, fomos até na róça, distante bons quilômetros de nossa casa e lá, pude ver a sua alegria em desbravar as imensidões dos horizontes que só a vida do campo pode nos oferecer. Até sua refeição balanceada e caseira a qual era habituado foi substituída, temporariamente, por alguns torrões de farinha grossa, misturada a bons nacos de carne de galinha ou do gado fresco, recém talhado nos açougues campestres.

Bebeu água de cacimba, dormiu no frescor da brisa interiorana e despertou com uma novidade nunca ouvida: o cantar de uma galo madrugador.

Assim era o meu companheiro Nestor.

Criatura de sensibilidade aflorada que, como já havia dito, nada falava mas, apenas um seu olhar era o indicativo para que eu entendesse qual seria a sua vontade de momento.

Certa feita, eu, sentindo-me indisposto e com algumas poucas dores no dorso, em função de uma cirurgia da coluna, deixei escapar um pequeno gemido que foi por ele de pronto notado. Aproximou-se de minha cama e, galgando sua lateral, veio conferir a minha agonia.

A cena foi inusitada quando, caminhou para a cozinha de nossa casa e, com um abafada e quase inaudível expressão , tentou alertar minha esposa que não entendeu a mensagem.

Retornou ao meu leito e, com os seus pequenos olhos em quase desespero, buscou a minha atenção, ao que disse-lhe:

- Vá busca a mãe, vá.

Retornou à cozinha e, desta feita, um alarido mais forte foi percebido por minha esposa que, surpresa me perguntou:

- O que é que o Nestor tem?

Respondi-lhe que estava chamando por sua atenção de que algo não ia bem em casa e que me trouxesse um remédio para as dores.

A aflição de Nestor somente amainou-se quando minha esposa adentrou em nosso quarto com a medicação.

- Nestor estava lhe chamando à atenção para me atender pois, estou sentindo algumas dores na minha operação.

- Olha para isso! - exclamou minha esposa, admirada.

- Como pode! Uma criatura deste tamanho adivinhar essas coisas? - perguntou-se incrédula.

Respondi-lhe que essa criaturas são muito mais sensitivas do que nós, pobres humanos.

Minha recuperação foi rápida e, enquanto estive prostrado em meu leito de convalescença, Nestor não arredou o corpo do pé da cama.

De volta à normalidade, nossos dias resumiam-se às mais diversas atividades. Passeios pelas manhãs, banhos refrescantes nos dias de muito calor. No centro de nossa pequena cidade, amigos, conhecidos, comerciantes e até políticos conheciam o Nestor.

Por ser um pouco distante de nossa casa, por vezes fazíamos nossas caminhadas a pé mas, o retorno, invariavelmente se dava através do ônibus circular.

- O Nestor paga a passagem? - perguntava sempre eu ao cobrador.

- Se ele se sentar, paga. - respondeu-me taxativamente e caíamos na gargalhada.

Muito folgado e exclusivista, Nestor adorava passear de automóvel e, seu lugar preferido era o banco ao lado do motorista e no colo de quem quer que fosse. Cabeça para fora da janela, sugestivamente olhava para o motorista como a pedir para que corresse um pouco mais, para receber boas lufadas de vento pela cara.

Para ele, isso era a glória. Vai entender.

Seus momentos de repouso eram mais que sagrados e, se alguém menos avisado viesse a incomodar este imperturbável momento, um

sutil esboçar de dentes afloravam juntamente com um rosnar quase que ameaçador, indicando o iminente perigo de uma abocanhada imediata.

Faltando algumas poucas semanas para que se completassem quatro anos de vida, Nestor, vitimado de uma infecção generalizada e mesmo depois de assistido por médico veterinário que lhe ministrou os medicamentos que não surtiram efeito, foi vencido pela morte.

O que mais me doeu não foi propriamente a sua morte mas, sim, aquilo que ficou, e ficará por muito tempo em minha lembrança.

Depois de agonizar por dois dias seguidos e pela falta de veterinário na cidade (era um final de semana) e, mesmo depois de medicado, o mal já havia se instalado.

Eu havia saído por instantes e quando retornei, acreditava que a medicação que havia lhe administrado estivesse fazendo efeito positivo mas, quando o procurei por todos os lugares da casa, onde costumeiramente ele gostava de ficar, e sem encontrá-lo, fui acha-lo no pequeno nicho de minha estante, em meu quarto, em meio à uma poça de vômito e sangue e, ele em pé, com um olhar que, de tão expressivo, a querer me dizer: - me desculpe pelo mal que passei.

Foi um dos cenários mais tristes de toda a minha vida e piorou mais ainda quando tomei-lhe em meus braços para limpa-lo de toda aquela involuntária sujeira, com a esperança de reanimá-lo.

Infelizmente, a morte foi mais forte e pude contemplar os pequenos olhos do Nestor perderem o seu brilho e um leve arfar de sua boca, como numa tentativa de balbuciar algo, no que eu já havia compreendido. Eram seus últimos momentos e ele estava se despedindo de mim e de minha esposa que, naquele momento e junto comigo, chorávamos a sua derradeira partida.

Morreu Nestor, serenamente, aos 25 de janeiro de 2010, precisamente às 19:30 horas. Eu me fechava em profundo sentimento e São Paulo comemorava mais um ano de sua fundação.

Nestor era um pequeno e felpudo cãozinho. Não sei definir a sua raça. Uns diziam que era 'poodle'. Outros diziam que era 'terrier'. Pelo sim ou pelo não, Nestor era um pequeno cachorrinho que nos deu muitas alegrias e distrações e, como criatura de Deus, somente consegui acalmar o meu coração pela citação de Salomão em Eclesiastes 3:19-21 - Porque o que sucede aos filhos dos homens, isso mesmo também sucede aos animais... Todos vão para um lugar; todos são pó e todos ao pó tornarão. Quem adverte que o fôlego dos filhos dos homens sobe para cima, e que o fôlego dos animais desce para baixo da terra?

Algumas pessoas podem considerar este tipo de sentimento um pouco descabido para os padrões humanitários mas, é um pensamento errado e, só quem tem amor por animais é que pode sentir a dor de uma separação, principalmente quando se trata de um ser que nada fala, nada pede, nada exige e que, mesmo vivendo uma vida de 'cachorro', ainda assim demonstra fidelidade absoluta.

Animais - não os escolhemos. Somos escolhidos por eles.

Cachorro, é tudo de bom!