O QUARTO COR DE ROSA

Todos admiravam era o Danilo. Danilo toca muito bem guitarra, abrindo assim as pernas, a guitarra quase lá no chão; uns cabelos na venta, óculos escuros, um ar de playboy.

Ducha não o olhava com despeito. Era seu irmão, e entendia por que tinha tantas amigas. Queriam-lhe o irmão. Cínicas! Nem estava ai para elas, tendo seu quartinho cor de rosa. Todo cor de rosa. Desde a mobília, as cortinas, os lençóis da cama, o menor ou maior bibelô, tudo cor de rosa, no mesmo tom bebe. Claríssimo. As roupas que usava.

Vivia num pequeno mundinho cor de rosa.

Tentava o balé, nas aulas com a velha bailarina dona Ana. Botafogo? Sempre perguntavam com uma velha risadinha casquilha, e ela tossia, ria, sacudia o pescoço de peru, não, não sem o Botafogo. Não existe só uma Maria no mundo, pois não.

Fumava Dona Ana, mas não na frente das crianças, mas era fácil saber, quando ela as deixava lá no “um, e dois, e três” e a fumacinha parecia chegar de lá até ali, com o cheirinho inconfundível.

Ducha entendia o desvelo exagerado da mãe pelo irmão, alem dele ser filho homem, ele era mesmo bonito. Ela era gordinha, sem pescoço, como diziam moleques atrevidos na escola, e aquela cara de passarinho, alguém disse cambaxirra ou foi mafagafo? Sempre era tudo maldade, maldade daqueles meninos da escola, dos amigos de Danilo, cabeludos, com camisa preta de caveira. Ela tinha nojo daquela barulheira, e a mãe dizia na cozinha, fazendo empadinhas que era rock, heavy metal, ela já fora fã dos Beatles. Respondia, sim, a dona Ana disse que eu ouvisse e tocasse Chopin. No quarto cor de rosa, Chopin parecia mesmo desafinado, e a menina na ponta dos pés, rodopiando com as mãos para cima até conseguia, mas Chopin parecia ainda, ou cada vez mais desafinado, e ela pensava num piano, que chique, e na sala, as amigas – quem? – Meida, Andréia e Olga, que eram bem mais pobres. Pobretonas mesmo. Meida então, tinha um pai carpinteiro e trabalhava numa padaria. Adorava convida-la para sua casa “Vamos, Meida, vamos escutar Chopin. Você já ouviu Chopin?” Sabia que não. Sabia que Meida adorava o quartinho cor de rosa. Olhava tudo embebida, com queixo caído, evitando olhar para o espelho do toucador de moldura cor de rosa, é lógico.

Ele parece desafinado, dizia Meida. Quem Chopin? Imagine, Meida, Chopin desafinado. Mas não arriscava dizer “ Você nunca ouviu som de piano, nem sabe o que é”.

Ducha ouvia muita musica pop. Da ultima hora era Jonas Brothers, e fingia ler os livros de Stephenie Meyer, pedia ingressos para o cinema para o pai, assistia “ O crepúsculo”, e contava para Olga – que dizia adorar ler, mas só romance barato e erótico – e essa chegava a se impressionar, acreditando que ela havia lido mesmo aquele livro tão grosso.

Seu nome é Ducha, mesmo, perguntava um amigo de Danilo, um de olhos rasgados como de oriental, muito debochado, pensava ela enojada. Meu nome é alemão, Dasha, mas mamãe e papai me chamam de Ducha.

Ela adorava o Vinicius. Moreno de cabelos encaracolados, muito risonho, mas era ele que a chamava de “biquinho de mafagafo”, deitado no chão do quarto de Danilo, sem camisa, o peito achatado, os braços cruzados sob a cabeça. Ela ria, ria por não ter coragem de ficar zangada com ele. E ele pegava o violão, esquecido pela guitarra, e tentava mal, mal “Um ninho de mafagafos, cheio de mafagafinhos...”. Ela sabia a continuação... Debochado como todos, zangava-se, magoada, o biquinho contraindo-se e descontraindo-se. Vou contar para Danilo que ele ouve funk, mas contava nada, sabia que Danilo iria desfazer a amizade, e era a ultima coisa que ela queria... Aquele peito achatado, aqueles cabelos encaracolados...Sim, o quartinho cor de rosa, ela adolescia, ouvindo Jonas Brothers e sonhando com Chopin. O pai vai comprar o piano, dizia para Danilo à mesa do café, já com o conjuntinho cor de rosa para aula de balé. Danilo mastigava pão com manteiga de boca aberta, cara debochada. Cara de playboy, foi Pader que disse. Pader, ah aquele lourinho, meio serio, cabeludo. Evasivo. Bonito, bonito, mas só conseguia pensar fixamente no mais debochado, o Vinicius, tocando no violão olvidado “ Um ninho de mafagafo, cheio de mafagafinhos...”

O pai vai comprar piano, dizia olhando o seu prato com farinha Láctea. Só comia isso de manhã. A mãe dizia alto, Não é bom Ducha você tem prisão de ventre. Enrubescia, a risada de Danilo. Será que ele contava para o Vinicius, A Duchinha tem prisão de ventre, isso pelo MSN, já pensou, aqueles kkkkkk com os smiles pulando e dançando.

Danilo saiu de jaqueta, com a guitarra pendurada ao ombro, botas, óculos escuros, cabelos pretos na venta, a camisa do Motorhead. O pai deu a ele uma moto, e cadê meu piano? Cismou tristonha, olhando a capa do livro Crepúsculo pela edição do filme, em seu mundinho cor de rosa.

Piano é difícil, disse a avó, mais útil e mais barato a moto, roncando, fazendo barulho, a vizinhança olhando com inveja. A avó que fazia luzes nos cabelos, era professora aposentada, em cuja estante da casa só tinha enciclopédias. Tantas enciclopédias. Duchinha perguntava, E Monteiro Lobato? O que tem? Devolvia a avó segurando um copo de vodca ( tinha paixão).

O quartinho cor de rosa. Só faltava o piano. Tudo rosa bebe. Pader, lourinho bonitinho, cabeludo, quando aparecia nem fazia estardalhaço, deixava o som rolar na área de serviço. Era lá que ensaiavam, o pai não usava. O de olhos rasgados tipo oriental tentava a bateria. Legal, mas Ducha adoraria se Pader, como vocalista, fosse tentar um som do Jonas Brothers. Eles nem sabiam o que era isso... Mas Vinicius, eles nem sabiam, ouvia funk, freqüentava mesmo “ O Caldeirão”. Se eles soubessem, Vinicius nunca mais entraria ali. Danilo não deixaria. Embusteiro, gritaria, fora, as portas fechadas para sempre para Vinicius. Tinha horror. Podia gostar de Pader, porque este não a chamava de sem-pescoço, de mafagafo ou cambaxirra, mas a tentação, Vinicius, o peito achatado, a cara de moleque babaca, como ouviu...Pader dizer. Ainda não tinha ouvido a voz direito de Pader, mas aquele “moleque babaca” que ele disse se referindo a Vinicius, ali na sala, quando ela olhava era para o canto onde imaginava ficar o piano, aquilo lhe doera por saber que ele desprezava Vinicius. Qualquer pessoa, qualquer garoto daquele, mas logo Pader desprezar Vinicius. E se Vinicius pouco se importasse, ganhou as escadas apressadamente, trancou-se no seu quarto cor de rosa, e a mente foi teimando, Vinicius podia desprezar, xingar ainda mais Pader. Aqueles nomes feios que os garotos escolhem para ofender o outro mais gravemente, pensou conflituosa, olhos arregalando-se, miúdos como continhas pretas no rosto rechonchudo.

Vinicius disse mesmo, Andréia confirmou, cruzando as pernas, olhando a atmosfera cor de rosa daquele “mundinho” de Ducha.Ele falou isso mesmo Andréia, não acredito, chamou o Pader disso. Andréia ria maliciosa, lambendo os lábios secos de um batom túrgido, Hmmm, mas o Pader é virgem, isso é, menino puro. Um garoto puro, virgem, ficou cismando Ducha, Puro como o Jonas Brothers, mas um Jonas Brothers lourinho, de olhos verdes, rockeiro. Mas se Danilo sabe que Vinicius fala isso do seu amigo de banda... Vinicius vai para “ O Caldeirão”, que Andréia mesmo falou, Foi lá que ele me pegou de jeito. Ela bem queria saber que jeito era esse.

O piano, hem pai, quando? O pai desconversava, sorrindo, afagando-a como se fosse ainda aquela meninota de cinco anos, a outra mão ocupada com as contas, o cenho semi franzido, Tantas contas, ser adulto não é fácil. Sou adolescente, respondia ela, olhando para o canto da sala onde imaginava o piano. Chopin ainda desafinado no radio portátil cor de rosa em seu mundinho cor de rosa.

Pader nem sabe... Vinicius pega de jeito, dança e rebola o funk, a vovó não sabe mais quem é Monteiro Lobato, bebendo vodca, divorciada de vovô que continua dando aula.

Qualquer dia desses, Alessandra, vamos ao Caldeirão, disse vovó para a sua mãe a cozinha, ambas remexendo em travessas, e vovó buscando a garrafa. Risadas, Quero rebolar o esqueleto, Alessandra, ainda dou um bom caldo, não dou, e beliscando a cintura na calça de strecht, saiu para sala ensaiando um passo desconsertado, enquanto o som da guitarra ainda não começava, e Danilo e Pader entravam, com rostos entusiasmados para começar os ensaios , Um que menino mais lindo, disse para o neto, e o obrigando a apresentar o amiguinho.

O piano deveria já estar ali, e Ducha subiu as escadas atropeladamente, envergonhada, roxa nem vermelha, a avó segurando Pader pelo queixo, ela cheirando a vodca. Ela quer ser pega de jeito, foi atropelando aquele pensamento, Um menino puro, virgem, confirmou Andréia cheia de malicia, a língua sebosa passeando nos lábios secos, ou túrgidos?, não, túrgidos é o batom.

Refugiada na sua atmosfera cor de rosa, deitou, após ligar no radio o Chopin. Desafinado, desafinado dentro do quarto cor de rosa. Ficou de bruços, biquinho contraindo-se, pescoço atolado, toda tolhida, Não, vovó, velha, as enciclopédias as traças na estante envernizada, rebolando, dizendo, Vinicius pega de jeito, é Andréia que disse, Andréia!, mas, mas a voz de vovó um pouco antiquada, pisada pelo recalque do tempo...

Chopin desafinado, desafinado, ofegou a menina, o rosto naufragado no travesseiro cor de rosa.

O piano lá na sala, naquele canto, o tamborete. Piano tem que ser negro.

Quando o piano?

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Rodney Aragão