SÚPLICA

Costumava entrar na igreja, ao final das tardes, e observar aquela mulher pálida, com a face coberta por um véu de tule alvo e, às vezes, perguntava-me quais seus motivos de tristeza e introspecção tão profundas.

Ela, ao findar das orações, tolhidas em lágrimas, caminhava até o altar dos ofertórios e acendia as velas já derramadas e mortas, uma a uma. O vestido escuro, porém não modesto, deixavam-lhe escapar as curvas do colo e o formato do pescoço... Longo, excitantemente translúcido.

Acendia as velas e percorria o caminho oposto da igreja. Por voltas das sete da noite, sumia pelas enormes portas de madeira sucupira. Viria, ela, outras e outras tardes mais?

Eu adormecia a pensar num suposto semblante que teimava em se esconder além do véu... Seria linda? Seria vêsga? Como seria a mulher que vertia lágrimas constante e incessantemente, a cada pôr do sol?

As costas lisas... Os cabelos presos, fios dourados a contrastar com as paredes da Catedral, roxas e sem vida.

Era a espera de minhas tardes de garoto. Esperá-la era meu ofício segundo, ao sair da imprensa local. Diagramava páginas, lia ofícios e publicava-os, sem erros ou protestos, mas não havia consciência pela qual pudesse enxergar além do pranto agudo e silencioso DELA.

Numa tarde de verão, após ajeitar a gravata matizada de verde, entrei por uma das portas laterais e sentei-me a uns dois metros da senhorita, que bem poderia ser uma senhora, embora as mãos, quando despidas das luvas, mostrassem pouca idade. Me aproximei aos poucos. Aos poucos e sutilmente.

Seu olhar firmava-se, sempre, para baixo, como se os pedidos de súplica moral fossem tão pecaminosos para que ela pudesse encarar o esplendor dos céus, morada divina. Naquela tarde contei as primeiras lágrimas. Começavam, sempre, brandas e finas e, de repente, mornas e grossas caíam sobre o encosto do banco. Debruçada, amarguradas lágrimas...

Quais segredos escondia um coração, aparentemente, tão frágil e doce?

Mais um segundo e quase coloquei tudo a perder. Num suspiro tomei a coragem e entrelacei-a de frente:

- Vens todas as tardes?- Testada a minha; ela permaneceu muda.

Prossegui:

-Vens e chora tanto... Tuas orações de certo podem ser ouvidas. Tenha certeza!

Num milagre ela ergueu-se e olhou para mim, por baixo do bendito véu. Cessou o pranto:

- O que estás a fazer? Conheço-o?

Engoli seco e prossegui, arrepiado e frenético:

- Conheço a senhorita da igreja! Não vens todas as tardes?

Ela mudou a direção do olhar e, pela primeira vez, parecia encarar o teto da catedral...

Silêncio quase mortal e vergonha em minh'alma caminhavam juntos...

Neste silêncio absurdo e farto, surpreendentemente, ela levantou o véu com delicadeza...

Pasmado e gélido, observei, quase em surto, os lábios róseos e bem desenhados, a face corada e, para perdição dos meus dias, por fim, olhos amendoados, vivos, de cílios fartos...

Tão linda e tão triste... Pensei: "O que esconde?"

Ela me olhou uma única e última vez e levantou-se:

- Queres entender, meu senhor, a alma d'uma mulher? Seus prantos e loucuras? Não entenderá!

Enquanto caminhava em direção à porta, batendo os finos saltos sobre a madeira ôca, fui atrás, sem pensar duas vezes.

- Pelo menos sua graça... Posso saber?

Ela sorriu-me, divinamente, um sorriso de anjo:

- Não saberás, meu senhor! Nunca...

Prosseguiu, enxugando as lágrimas:

- Porque não hei de estar aqui, algum dia, por nenhum outro sequer... Já me basta esta dor tamanha, que nasceu, exatamente, desta mesma pergunta que hoje me fazes...

Segurou as pontas do véu e voltou a cobrir a face de santa...

Ainda tentei:

- O meu nome é Ulisses!

Ela sorriu... Segredo profundo como quem sorri dizendo, aos poucos, que morre para esta vida. E saiu pela porta.

As badaladas do sino deixaram-me tonto e perdido. Sem querer, deixei-na ir.

Deixando-na ir, passei a suplicar a Deus seus regressos naquelas e n'outras tardes. Não houveram. Chegava a buscá-la, vez ou outra, da janela do pasquim, com uma esperança que nunca morreria.

A dama, simplesmente, não voltou. Não voltaria.

Mais tarde, pude entender. A maturidade deixou-me ver que o medo de amar faz com que a fuga seja iminente e precisa.

Triste, mais ao tardar, do final daquele mesmo ano, ao pegar ofícios e publicações a serem diagramadas para o dia seguinte, uma delas dizia:

"É com pesar que comunicamos o falecimento da Senhora Analice Magalhães de Tôledo Serrano , 26 anos, ocorrido na tarde desta sexta-feira. Nós, da escola Ministral Pereira Souto, manteremos luto por tão nobre amiga e mulher, que deixa dois filhos e espôso. Nossas mais humildes e sinceras condolências."

Meu peito explodiu ao ver a foto: os olhos claros, amendoados. Sem véu e cabelos soltos. O anjo das minhas tardes de verão. Morrera por quê? Talvez pelo fato de haverem findado suas lágrimas e, em nenhum braço, conseguir arrêgo para tanta dor? Fui eu o culpado de não haver insistido?

Carregarei este fardo e a lembrança insistente daqueles olhos marejados de tristeza profunda. Tinha espôso e filhos? Onde estariam eles naqueles longos fins de tarde entre prantos e súplicas?

Nunca haveria de entender. Não naquele momento com meus dezessete anos, quase perdidos. Talvez, por querer entender, sem saber exatamente, que poderia ter perdido a única mulher à qual amaria com afinco, com o maior amor do mundo. Talvez porque, intimamente, soube, naquele, instante, que poderia eu ter aparado suas lágrimas e amparado-a... Simplesmente, amando-a.

Simplesmente, sendo para ela aquele que ela tanto buscou e em lugar algum chegou a encontrar...

Hoje, eu sei: é verdade que se morre de amor ou da falta dele!

Uma única rosa branca, como foram seus mais tenros sonhos e desejos, foi a única coisa que pude entregá-la naquela manhã seguinte, depositada numa lápide tão fria e solitária. Talvez, tão fria e solitária quanto Analice, enquanto fingia viver de aparências.

Anna Beatriz Figueiredo
Enviado por Anna Beatriz Figueiredo em 19/05/2010
Reeditado em 19/05/2010
Código do texto: T2266045
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