Desistir do amor
Desistir do amor
Maju Guerra
Mabel marcou encontro com Arlete, a melhor amiga, amiga de infância. Declarou logo ao chegar:
- Preciso dividir minha decisão com você, caso contrário, vou sufocar. O divórcio foi a gota d’água, enterro da esperança. Revi todo o filme da minha vida durante dias. Depois de muita reflexão, desisti do amor. Trata-se de resolução irrevogável. Ponto final.
Apesar de conhecer a história bastante sofrida da amiga, Arlete posicionou-se contra a decisão extremamente prematura. Havia muita estrada pela frente, melhor seria pensar com calma e sem impulsividade. Mabel desconhecia grande parte das faces do amor, por que abrir mão de um sentimento ainda obscuro? Acabaria por jogar fora qualquer possibilidade de felicidade, mesmo que remota, valeria a pena?
Mabel ouviu e comentou:
- Arlete, você sempre teve sorte no amor, não entende essas coisas de sofrer. Pra mim, depois de tantas tormentas, o amor naufragou. Impensável resgatá-lo, perdeu-se para sempre em águas profundas. Mudando de assunto, que tal um pedaço de bolo de nozes?
Como o futuro a Deus pertence, meses mais tarde no parque, Mabel fazia sua caminhada de todo dia. Percebeu um homem olhando fixamente para ela, não deu importância, continuou caminhando. De repente, tropeçou e esbarrou em Cassiano. Para ele, um momento único, para ela, apenas um esbarrão. A moça pediu desculpas. O homem puxou conversa. Declarou-se apaixonado, acreditava em amor à primeira vista. Mabel pediu licença, não tinha tempo para discorrer sobre o tema. Ele devia ser louco, esse tipo de gente lhe assustava. Cassiano rebateu, afirmou ser uma pessoa absolutamente sã. Finalmente, encontrara a mulher da sua vida. Coisa raríssima de acontecer, logo não pretendia jogar fora a oportunidade de ser feliz. Pediu para saírem, conversariam mais a fundo sobre o sentimento. Mabel, apanhada de surpresa, aceitou o convite para jantar, por que não? Seu coração estava blindado e lacrado. Marcaram o encontro para dali a dois dias. Ela colocou como condição levar um casal amigo, ele concordou sem nenhum problema.
Assim que botou os pés em casa, telefonou para Arlete. Cheia de bom humor, contou-lhe o espantoso encontro, sem omitir detalhes. Ela e o marido também estavam convidados para o jantar, convite aceito. Mabel confiava demais no sexto sentido da amiga. Arlete jamais deixou de ajudá-la nos momentos importantes.
Cassiano, Mabel, Arlete e Chico chegaram praticamente juntos no lugar marcado, um ótimo restaurante por sinal, escolha dele. A moça pensou: ponto para o Cassiano. O jantar, extremamente agradável e fluido, surpreendeu Mabel. Cassiano se pôs totalmente à vontade. Na saída, combinaram o segundo encontro, apenas os dois. Ele não tocou na palavra amor.
No dia seguinte bem cedo, Arlete telefonou. De acordo com sua intuição, o homem fora aprovado em todos os testes, valia a pena investir no relacionamento. Às vezes, o acaso termina por se mostrar mais acertado do que um plano meticuloso. Mabel concordou. Seus dias andavam tão mornos e sem emoção, uma sensação de mulher abandonada a lhe rodear. Sentir-se desejada, lustrava sua vaidade quase arruinada. Ressaltou, no entanto, que arriscaria com cautela. A desconfiança, até então, continuava companheira de jornada. Arlete concordou, desde que fosse adiante. Desistir do Cassiano, até prova em contrário, estava fora de questão. Implorou a Mabel, criatura teimosa, que a escutasse, pelo menos dessa vez.
No próximo encontro, Cassiano tocou em amor, insistiu no assunto. Sua proposta era amá-la, embora Mabel não correspondesse da forma desejada. Seu sentimento infinito dava e sobrava para os dois. A mulher se assustou com a força e a certeza do homem, nunca se deparara com nada igual. Pediu para pensar, via-se confusa e perturbada, o caso evoluía com uma rapidez incrível. Paciente e gentil, Cassiano não colocou obstáculos. Mabel poderia refletir o quanto considerasse necessário, somente não demorasse muito, ele tinha pressa. Lembrou-lhe que, embora houvesse desistido do amor, o amor não desistira dela. Os beijos de despedida deixaram Mabel sem chão, mexeram com todo seu corpo. Relembrou o que escutara certa vez: sexo e amor são coisas distintas. Sensação boa, acabara de constatar a veracidade da afirmativa.
Passaram a se encontrar com frequência, só a vida sexual justificava todo o relacionamento. Ele a persistir no seu objetivo, ansioso e cuidadoso. Queria casamento e uma família. Percebia Mabel bastante machucada, sofrida, entendia seus receios. A mulher prosseguia pensando e muito. Não entendia porque Cassiano se apaixonara por ela de forma tão definitiva. Difícil compreender a razão de ser tão diferente das outras mulheres a ponto dele considerá-la única, jamais se julgou merecedora de grandes afetos. Ah! A vida e suas surpresas! Parece que lhe haviam reservado uma montanha de felicidade, só lhe cabia aceitá-la.
Mabel, convencida de que o destino estava a seu favor, agradeceu e parou de lutar. Aceitou a proposta de Cassiano. O único aviso: como ela desistira do amor, viveriam exclusivamente do amor dele. Cassiano concordou. Casaram-se na manhã de um sábado ensolarado.
Passados os anos, filhos crescidos, a relação continua sob um céu azul, sem nuvens de tempestade. Cassiano ainda olha pra a esposa com deslumbramento, como se tivesse acertado sozinho na loteria. Mabel, sabendo-se amada, vive em completa paz.
Arlete sempre comenta:
- Mabel é um exemplo. Ainda que haja desistido do amor, se ele existir de fato e persistir, mesmo via de mão única, tudo o mais flui com perfeição. Mas estou certa de que Mabel ama Cassiano profundamente, e ele sabe, como não saber? Cassiano conhece a alma do amor. Minha amiga não compreende a extensão do seu sentimento, porque insiste em ignorá-lo por completo. Não se pode entender do que não se conhece. Talvez um dia, vencidos todos os medos, todos os fantasmas expurgados, ela se permita descobri-lo...
Maria Julia Guerra.
Licença: Creative Commons.