As palavras não servem para nada:
As palavras não servem para nada.
Gênero: Literatura & Ficção
Autor: Léa Ferro:
Capitulo 1: - Metades.
- Estranha esta forma de amar, sem se doar.
Também ama este que trai? Quem mente? Quem nem se sustenta? Estranha esta forma de amar sem ser inteiro, podendo ser verdadeiro. Amar só por amar? Ou por lazer? Ou por prazer? Falar de amor nas facilidades insustentáveis, na promessa dúbia, falar de amor apenas, sendo metade, sendo obscuro.
Também ama quem não se entrega? Ama quem te renega? Ama quem nem te vê? Ama quem te abandona? Ama quem te culpa, por algo que você nem fez? Ama quem não sabe amar? Estranha esta forma de amar, de quem ama Maria e Cecília e Joana e Cristina e Laís... Ama tantas mulheres, ama hoje, dês-ama amanhã, entrega-se hoje, maltrata amanhã. Ama quem ri da sua dor? Ama que não respeita?
- Ama? Amar, amor.
Ama em segredo e por segredo constrói o submundo. A pilastra do amor não é feita de metal, é vil cristal, que desaba nas fragilidades arrogantes e imperfeitas. Ama o segredo, mente em segredo. Segredados versos que se desfazem ao primeiro vento, que nem suportam a fina brisa das novas estações.
Estranha esta forma de amar, de falar de amor, após matar o amor, confidenciar amor. Amor? Estranha esta forma de amar pela metade, em tantas faces, tantas mulheres, são tantas cores, em tantos ventos, as tempestades.
Estranha esta forma de amar, tão leviana e tão insana forma de amar o próprio amor.
Léa Ferro. SP. 14-10-2008.
Capítulo 2: - O livro espesso.
- Tornou-se insustentável esta estranha forma de amar.
Os olhos percorrem as folhas das memórias escritas em frágil papel e notam que a ponta fina da caneta que desenhou palavras, rasgou tantas folhas que mal se pode ler de todo, a história. Tantas páginas ficaram em branco e outras se perderam com o passar dos anos. As poucas folhas que restaram estão agora amareladas.
- As velhas folhas empoeiradas não sustentam saudades, nem amores.
Assopro a poeira envelhecida do livro espesso e as bactérias do teu amor afetam minhas narinas. Uma luz entra pela janela da sala e é possível ver no reflexo o pó que foge pela fresta, desesperado.
Há muito tempo troquei o negro do café pelo claro dos chás que plantei junto às rosas em meu quintal. É verdade que também plantei jasmim, não apenas pela beleza como pelo perfume que invade meus poros. Toda manhã colho um chá diferente enquanto aqueço a água que o prepare. Gosto dos aromas e sabores em suas variações, da pureza e calmaria destas ervas. Também gosto das misturas ousadas, como nesta caneca de agora, onde absorvo o sabor da camomila com anis enquanto meu olhar circula atentamente as palavras marcadas em tinta borrada no livro velho.
Não tomo chás porque preciso me acalmar, mas porque tudo mudou desde que você partiu e um dia acordei tão rebelde com a tristeza que fez morada na casa dos meus sonhos, que decidi modificar tudo. Por isso agora tomo chá e de fato o sabor é muito mais agradável, sem contar que é mais saudável que aquelas garrafas de café que me acompanham na poesia. Os chás me permitem adormecer à noite e meus sonhos se tornaram tranqüilos. Logo eu que passei tanto tempo sem sonhar, mas desde que você se foi eu nunca mais tive pesadelos, também.
Folheio as páginas e tento me lembrar do que foi vivido nestas folhas em branco, mas não é possível. A dor se perdeu no horizonte junto às lembranças. Relendo a história, é como se eu lesse a vida de alguém que nem conheci. Não me reconheço, nem te identifico. Por isso agora não entendo que me venhas confidenciar amor em segredo.
Amor? Não meu bem, você não me amou. Eu te amei, mas o meu amor agora é pretérito imperfeito. Ficou no passado e se afogou na travessia do oceano salgado.
Não entendo que me venha falar de amor e eternidade e use de lirismo para declarar que estaremos juntos após a morte. Após a morte é muito tempo e amor para sobreviver é preciso de alimento. Igual aos chás que cultivo em meio ao jardim. É preciso regar todas as manhãs antes que o sol fortaleça e todo mês adubar a terra que os sustenta, ou os chás morrem como o amor morreu.
- O lirismo já não me ilude, nem você.
Na verdade eu nem sei se o amor morreu desta forma, às vezes, tenho a impressão que ele foi devastado nas tempestades que se seguiram sem piedade. E pensar que eu não acreditava quando me dizia que era um tornado. Sim, você estava certa, você era um tornado. Você devastou o que havia de mais bonito nos meus dias por você. Você destruiu sonhos, mundos, pontes. Agora grita do outro lado do abismo palavras vãs de amor, como quem tenta dizer nas entrelinhas que se arrependeu, como quem quer que eu resgate o passado, como quem deseja que eu ouça e me torne devota outra vez.
Está certo que fui muito mais que devota do seu amor, eu fui beata. Uma religiosa fanática dos seus negros e malditos olhos que não me viam e segui todas as regras, como um crente. Daqueles que usam o paletó bem passado e apertam o nó da gravata e suportam o calor de 40º em pleno mês de Janeiro, sem reclamar e continuava firme pregando a minha religião diante seus passos.
- Sim eu te amei, mas repito que meu amor por você é pretérito.
Não me fale de amor, quando nem ao menos você sabe o real significado desta emoção. Não procure no dicionário, porque está para além das explicações humanas este sentimento. Não me fale de amor após ter me abandonado e me trocados por tantas mulheres que eu já nem me recordo os nomes. Não me fale de amor quando vives com outro amor e, também, o trai. Não me fale de amor se você não foi capaz de ser inteira e suas metades se tornaram mundanas. Não me fale de amor quando a mentira continua pregada em sua face.
É verdade que eu me afastei de você, que eu te reneguei, mas quando você se re-aproximou pela última vez, após tantas tentativas, eu te dei alguma chance de me dizer a verdade. Eu sempre soube que era você por detrás daquela máscara repleta de novas cores, mas eu tentei, disso não pode me acusar. Você pode voltar em tantas outras faces que eu sempre saberei que é você, acontece que eu já não me engano facilmente como antes. Muita coisa aconteceu ao longo dos anos, muita coisa mudou, tudo mudou, como ás águas mudam seu curso, eu mudei.
- Somente um dia no paraíso.
Eu não queria apenas um dia, nem uma vida vivida em vinte e quatro horas. Quem ama não se contenta em estar somente um dia no paraíso, mas eu também nada te pedi. Eu te amava e silenciava o meu amor. Eu te amava e me fazia feliz cada verso seu. Eu te amava e sorria com o seu beijo de bom dia. Eu nada pedi, porque eu amava, mas sabia respeitar as suas escolhas e esta sua forma de viver e ser.
- Estranha esta forma de amar de quem nada tece.
Eu ultrapassei fronteiras, mas você não soube pesar na balança o que realmente tem valor e se torna gratificante. Você não soube discernir a realidade das loucuras. Eu não sou e nunca serei perfeita, mas nada tenho haver com os traumas do seu passado, nem com a tragédia da sua infância. Não fui eu quem causou tamanhas feridas na sua alma, quando eu cheguei você já se encontrava assim. Você não deveria ter me culpado pelas suas desgraças particulares, mas você me culpou, porque a culpa se tornou algo tão necessário para justificar atos e ações, que acabou fazendo parte dos seus dias como um todo.
Eu não deixei de te amar, não me culpe por isso, também. Na verdade foi você quem matou o meu amor com aquela machadinha afiada e o fez em mil pedaços. Você ria tanto naquele momento, que acredito, que nem se deu conta do que fazia. O seu sarcasmo era notável e eu não resisti. Como poderia te amar, agora?
- Eu não deixei te amar, o amor adoeceu com seu escárnio e foi morrendo aos poucos.
Eu não deixei de amar quando você me traiu, mas quando você riu da minha dor. Eu não deixei de amar quando você mentiu, mas quando satirizou da minha tristeza, eu não deixei de amar quando me abandonou, mas quando me jogou pedras nas feridas, eu não deixei de amar quando me pediu para sermos amigos, mas quando não respeitou o meu silêncio e deixou aberta a porta em pleno inverno.
- Foi impossível sobreviver a tantas mutilações.
Agora, é impossível acreditar em suas palavras de amor. Perdoe-me se for capaz, mas eu andei tanto tempo em desertos que os cactos feriram a minha ilusão e a minha inocência. Quando me você confidencia sentimentos eu nada consigo sentir, é como se todo um vazio se transportasse diante o que você me traz. Eu não sou indiferente, eu não sou fria, eu não sou insensível... Eu apenas não acredito mais naquilo que vem de você.
Eu errei com você? É claro que eu errei com você, mas eu já assumi as minhas falhas e pedi perdão, você me perdoou, eu te perdoei, depois eu te perdoei da segunda vez, e mais uma terceira vez, eu te perdoei tantas vezes, mas eu não poderia passar a minha vida perdoando e doendo e perdoando e doendo, porque houve um momento que a dor se tornou maior que o perdão, houve um momento que eu percebi que você jamais iria mudar, de fato, houve um momento que eu descobri que a sua presença me fazia triste.
Eu estava tão habituada com a minha vida na sua que não me dei conta do quanto eu era triste. Agora relendo este livro espesso e envelhecido eu me dou conta do quanto o sofrimento me fez companhia. Quando você me deixou eu achava que estava sofrendo, eu só não sabia que o sofrimento antes era bem maior e a minha angustia era exatamente por não notar estas coisas.
E pensar que a única atitude de amor que você teve comigo de fato foi ter me abandonado, pois eu era infeliz, mas não iria notar isso de modo algum, eu estava tão acostumada a sua presença-ausente que não sabia que estava mais infeliz antes de você me deixar, do que depois que estive sozinha caminhando por ai. Quando você me deixou pela última vez, este sim foi o dia em que você soube ser amor de verdade.
Eu não entendo porque você continua seguindo meus passos, se aproximando usando máscaras, nem insistindo em algo que já não tem valor. Eu desconfio que você vai me perseguir enquanto eu viver, mas faz tempo que eu parei de fugir, parei de me importar e também parei de me incomodar com a sua perseguição. Houve um momento em que eu me preocupava, porque eu queria apenas que você encontrasse o seu caminho e sentisse alguma paz, mas agora eu já não me preocupo mais, se você prefere este caminho, não há mais nada que eu possa fazer.
- Não há mais nada que eu queira fazer!
Capítulo 3: - A lareira.
As paginas do livro espesso vão de desfolhando conforme leio, a história vai se apagando e se perdendo em suas in-sustentações ilusões, as mãos que folheiam o livro estão manchadas da tinta que o tempo borrou, as palavras se misturam e se confundem... As palavras não servem para nada.
Anoitece, na lentidão dos meus pensamentos, uma fina brisa invade a paisagem verdejante, o frio se aconchega nos braços da noite, a lareira aquece a sala dos sonhos ousados e ilumina o ambiente sereno, ao som de Jazz composto no ano em que nasci.
Vejo as folhas velhas amareladas crepitarem no fogo árduo, o fogo parece não ter pressa, nem dó. Queima com a calma ardente cada palavra empoeirada. O fogo que é tão belo e ao mesmo tempo perigoso me fascina, meus olhos se movem ao som dos chinelos que percorrem o assoalho de madeira.
Uma manta ajuda a aquecer e um par de olhos manhosos emoldurados na face morena que me abraça em silêncio, oferece-me uma caneca de chocolate quente e sorri, como quem lê a minha mente e sabe que nada é preciso dizer, como quem sabe que as realidades em gestação falam muito mais e o silêncio é o grande mestre, como quem sabe que as palavras são servem para nada.
- E as palavras já não servem para nada!
Léa Ferro. SP. 17-10-2008.
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