Uma história que não quer ser “a de sempre”
- Mãe, você sabe quando a senhora vai ser adulta?
- Sei que a senhorita um dia vai perceber a história que nos meteu nesse despropósito.
- Qual história?
- A de sempre.
- Não quero que exista uma história chamada "A de sempre". Você precisa ser adulta, mamãe!
- Mas minha filha, o que você não entende é que eu quero... hum... eu quero coisas também. Coisas que estão além da sua compreensão, coisas que são meramente coisas flutuando entre meus compromissos e meus sonhos.
- Mãe, compreender é uma questão de tempo. Seja adulta, senão serei criança!
- Nem pense numa coisa dessas!
- Numa que flutua ou que voa? Você quis contar uma mera anedota, não foi? Mamãe, meus compromissos são meus sonhos! Sonhei ontem, por volta das três e trinta e sete, que jurei você... hum, droga... que pedi pra você; que queria... sabe? dar as mãos... ah, odeio quando isso acontece... Eu pedi que você ficasse comigo até o fim, mãe. O sonho... lembra, mãe?
- Não. E nem poderia... Ontem eu não lembro de ter alcançado a cama. Desmaiei logo que tomei os remédios.
- ...
- Era o único jeito! Não tem como! Você não sabe o que é lidar com as coisas todos os dias. Elas, quando querem e fazem com gosto, são monstruosas.
- Mãe, você tem que tentar! Você sempre some antes do fim.
- Filha, o que é isso? Não vai chorar agora, né? Eu já te falei que isso é coisa de criancinha boba que não sabe lidar com os sentimentos. Eles são bem simples, eu já te expliquei: ...
- Sim, mãe. Eu tenho o controle.
(A filha evapora e a mãe sente um cheiro de chá. Vai até a cozinha e colhe um resto de ervas espalhadas pelo chão. No rádio, notícias no meio das músicas. Ela volta pra sala com uma xícara quente; suas mãos estão verdes e seus olhos, vermelhos)
- Filha, volta aqui! É hora do chá.
(no quarto uma criança metade criança, metade boneca dorme)
- Filha, volta aqui! É hora do chá.
(no quarto, a mesma criança força um sonho)
- Não, não, não! - a mãe põe-se a chorar e desmaiar e re-acordar, recordar...
Ela vaga pelos campos da memória onde uma velha chamada SuaVó lhe dava uns conselhos cheios de fumaça. Uma época em que suas saias eram quentes e o temor de uma resposta abrupta ou de um sentimento forte demais a recolhia dentro das folhas do jardim. Num quarto dentro da casa, havia uma mãe que dormia sempre. Desde toda lembrança de todo tempo, ela lembrava de SuaMãe deitada na cama de olhos fechados, mas viva. SuaVó dizia que sentia dor, muita dor, mas que vivia por amor, muito amor.
Chegava no quarto devagar, deixando seus desesperos hormonais do lado de fora. Sentava da beirada do forro estampado de bonecos de neve e observava a respiração da mãe. Conforme ia e voltava, voltava e ia de novo, as palavras logo surgiam do instante de cômodo interesse:
- Menina, o que faz aí calada? Não tem nada que te assuste no mundo atrás da porta?
Ela olhava pra porta e contava. Contava tudo pra mãe, que nem sequer abria os olhos.
- Menina, por que não se deita aqui comigo?
Ela esquecia a porta e se via deitada entre o sono e a dor da mãe. Ela questionava seu papel no meio daquela cama de conversas. Respirava em companhia a mãe, gostava de sentir o calor de seu ar, vibrava com a intensidade de suas carícias vagarosas - a mãe só mexia os dedos, mas mexia-os com vontade e benfeitoria.
- Mamãe, qual o meu papel aqui?
- Fora me permitir sonhar, você está entre meu sono e minha dor.
(no quarto presente a mesma criança encontra o sonho)
No dia seguinte, ainda na recordação desmaiada da mãe, a mãe morreu.
Morreu no quarto que estava sempre fechado, protegido do mundo atribulado e cheio de ideias e soluções para os problemas desse mesmo mundo de fora. A dor que a mãe sentia se foi e ficou na filha, e ela perguntou pra SuaVó quando deixaram o velório:
- Vó, o que fica entre o sono e a dor?
SuaVó não tinha rosto, só fumaça, mas mesmo assim falou com um hálito de chá:
- O amor, minha filha.
SuaVó da lembrança sempre tinha uma xícara na mão para contrapor o cigarro, seu cheiro era incomum e suas respostas seguras. Uma velha como aquela valia mais que um casaco numa praia gelada. SuaVó nunca sorria ou olhava nos olhos, nem se sabia que olhos tinha e se usava óculos de sol ou de piscina, mas quando se via frente a um estado de total desespero, aquela mulher urrava mais alto que montanhas nebulosas e as águias no ataque, e constantemente esmagava a aflição com um resmungar de vida germinativa à espera de corações férteis.
(no quarto uma menina acordava após dois minutos de sonho)
- Mãe, mãe! Acorda, mãe!
- ... Que foi, filha? O que houve?
- Obrigado, mãe!
- Eu sei. Desculpe ter demorado tanto. Achei que precisava do chá.
- Não. Você esteve livre e ficou até o fim.
- O que você acha que vai acontecer amanhã, filha?
(mãe e filha se olharam por um longo momento até esquecerem de estar ali por uma pergunta)
- Acho que amanhã eu vou ser um pouquinho mais sua filha, e vou continuar por aí até você me pedir pra parar.
- Quando eu for adulta?
(a mãe parou para recolher os botões que deram lugar aos olhos da filha)
- Quando eu for adulta...
- ... nosso compromisso vai ser sonhar, mãe.