Porque é sábado

E numa tarde de certo sábado de fevereiro de 1977, vendo aquele homem ali ao seu lado, deitado num perfeito relaxamento do corpo, entregue à exaustão do sono no fastio pós-coito ela não pode deixar de recordar um outro dia de fevereiro, há sete anos atrás. Um sábado de aparência comum a todos os sábados em que ela amanheceu com um vexame premonitório, querendo a todo custo ir á praia, como se ela fosse sair do lugar ou o mar fosse secar, na urgência das coisas quando elas precisam acontecer.

E o mais estranho é que nenhuma das suas cinco irmãs tenha querido ir com ela, muito embora em outras ocasiões, quase sempre fossem as primeiras a se candidatar.

Após insistir com todas e escutar de cada uma um sonoro não, mesmo assim não desistiu do seu intento. Alguma coisa parecia lhe dizer que ela precisava ir à praia naquele dia.

O jeito foi apelar para o irmão que por sua vez chamou o primo. Moleques ainda não perdiam oportunidades como essa de saírem do raio de alcance dos olhos perscrutadores dos pais.

E assim se foi o trio caminhando pelas ruas em busca do mar. Pela Avenida Dom Manuel desceram com o sol das dez horas batendo em seus rostos desprotegidos e alegres a caminho do mar. Até lá foi uma boa caminhada que tiraram de letra, sem reclamar. Para os dois moleques tudo era festa pelo caminho. Chutando latas, trocando piparotes, metendo os narizes curiosos em tudo que os olhos alcançavam, rindo de tudo e de nada, na inocência dos seus poucos anos.

Embora sábado e já passando das dez horas da manhã a praia ainda estava quase vazia. Deu para ela sentir um gosto de domínio sobre toda aquela extensão de areia que parecia ferver sob a ação escaldante do sol. Sem a agitação habitual dos fins de semana tinha ares de deserto, um lugar ermo de alguma terra virgem a ser conquistada.

Sentada sozinha ali, pois os garotos já haviam saído por aí a procura de aventuras, ela mal teve tempo de saborear esse gosto de dona da praia por muito tempo. Entregue aos seus devaneios, espichada na toalha procurando a direção do sol para um melhor bronzeamento que mudasse o branco original da sua pele, para desespero dos seus pais, ela viu, e mais que viu ouviu a invasão de freqüentadores que passavam conversando animadamente por trás de sua cabeça.

Ela então pensou que era muito azar seu, com tanto espaço vazio, aquele trio achar de acampar justo a poucos metros de onde estava curtindo a sua solidão!

Tão próximos ficaram que, ajudada pelo vento que soprava a favor, ela podia ouvir tudo o que conversavam eles, os invasores - uma mulher e dois homens grandes – que, aparentemente alheios a tudo que se passava ao redor, comentavam o caso de Dana de Tefé, assunto que dominava então os noticiários das TVs e as páginas dos jornais e dividiam as opiniões pelo Brasil afora.

Para os que não sabem ou não se lembram, Dana de Teffé foi uma milionária tcheca que veio para o Brasil no inicio dos anos 50, depois de passar por vários países, supostamente fugindo do nazismo.

Aqui no Brasil contratou o advogado Leopoldo Heitor, para cuidar de seus interesses financeiros, o qual veio a ser seu amante.

Durante uma viagem dos dois pela Via Dutra, desapareceu e seu corpo nunca mais foi encontrado.

Leonardo Heitor que passaria a ser o principal suspeito do desaparecimento da mulher ficou conhecido então como o “advogado do Diabo”. À polícia ele alegou que teriam sido assaltados e Dana fora seqüestrada. Sem provas foi preso, julgado e condenado, mas fugiu e somente foi recapturado anos mais tarde. O julgamento foi anulado e ele novamente julgado, sendo absolvido. O principal motivo da absolvição foi a falta de provas de sua culpabilidade, pois até a prova material do crime - o corpo, nunca fora encontrado, para se provar o homicídio.

Esse é um exemplo de mais um crime insolúvel no Brasil e desde então se pergunta onde foram parar os ossos de Dana de Tefé. Mas até hoje a pergunta continua sem resposta.

E a história virou uma prévia do que nos anos 1988/1989 passou a ser a coisa mais importante para o brasileiro: achar a resposta para a pergunta que até hoje ainda é lembrada pela maioria dos brasileiros: “Quem matou Odete Roitman?” da trama da Novela Vale Tudo que foi um dos marcos da teledramaturgia do Brasil.

Enquanto isso a loura cabecinha dona de uma bela e longa cabeleira da nossa ex-dona da praia por um instante se perturbava ao cruzar o olhar pela primeira vez com um dos dois homens que compunham o grupo. Perspicaz e arguta, embora com fama de desligada e até mesmo lunática, ela logo percebera que o grupo era formado por um casal e um avulso. E o olhar cruzado, lógico, era avulso. Mas não sabemos por qual motivo ela desconfiava que o avulso pudesse não ser tão avulso assim. Talvez pela altura do rapaz que, segundo a avaliação dela, devia passar de um metro e oitenta. Como o outro homem também. Depois ela viria saber que a semelhança entre os dois homens ia muito além da altura.

Depois daquela primeira cruzada muitos outros olhares aconteceram. Como num jogo de esconde-esconde, cada um querendo disfarçar. Observando o outro na moita, como se diz por aqui. Mudando rapidamente quando pressentia que o outro ia olhar.

E nesse jogo sempre há um momento em que alguém comete um erro de avaliação e é surpreendido. E ela foi quem surpreendeu.

Nesse instante, o adormecido ao se mexer na cama quebrou a concentração do seu pensamento, como reeditando o momento longínquo. Só que dessa vez de forma inversa. Ela não pode deixar de sorrir enquanto respondia com um carinho ao resmungo ininteligível dele ao se revirar na cama inconsciente ainda, procurando uma melhor posição para continuar o sono pesado e profundo.

E ela pode voltar aos seus devaneios...

Estranho que aquele homem ali entregue era o mesmo que ela vira chegar na praia que escolhera por acaso para se bronzear num sábado que se parecia com qualquer outro mas que teve o poder de mudar sua vida.

Como isso pode acontecer? Quem sabe dizer que conjugação de forças concorrem para esses encontros fatais? Que astros ou deuses regem os destinos dos mortais e decidem suas vidas aqui no Planeta Terra?

Porque aquele sábado de troca de olhares não se esgotara em si mesmo?

Ali naquele momento, naquela praia ela nunca poderia desconfiar que outros sábados estivessem por vir!

Tudo não passara de olhares. Olhares descuidados, olhares furtivos, intenção de olhar, fuga de olhares. Troca de olhares.

O sol escaldante e a fome deram o toque de recolher. Recolher a toalha, o bronzeador, vestir a roupa por cima do maiô. Tudo sob os olhares interrogativos e decepcionados lançados em sua direção.

Ela já estava saindo e ainda pode perceber um olhar que parecia de apelo. Mas seguiu firme o seu caminho sem olhar mais para trás.

Com uma rápida e breve referência feita à sua irmã na volta da praia ela pensara ter encerrado esse episódio como algo casual e passageiro que acontece por acaso em nossas vidas. E que não merece mais nenhuma atenção principalmente em se tratando de um homem, que ela tinha a certeza, devia ser casado. E homem casado era um tabu então. O melhor era deixar tudo cair no esquecimento. Além do mais, mesmo que quisesse ou pudesse ela nem sequer sabia como fazer para achá-lo. Tudo não passara de olhares furtivos. E olhares não dão endereços, nem marcam encontros.

Os olhares não, mas o destino sim.

Ela só não podia saber que ele, o destino ou sei lá quem possa ser, o cosmos, os deuses, os astros já estavam mexendo os pausinhos e marcando o reencontro para daqui a dois sábados.

Mais uma vez seus pensamentos foram interrompidos pelo despertar daquele que era o foco das suas recordações.

Como tudo na vida esse momento também não poderia durar para sempre e eis que chega a hora de voltar a dura realidade que havia ficado lá fora quando atravessaram as portas do quarto do motel onde estiveram a tarde toda enleados - corações e corpos unidos pelo mesmo desejo por sete anos contido, reprimido e insatisfeito. Completar um ciclo que enquanto aberto não permitia a nenhum dos dois fechar uma história que teve começo e meio, mas não conseguia ter fim, mesmo depois de ter terminado tantos e tantos sábados atrás.

E enquanto se vestiam para ir embora, ela riu e lembrou de como sem estar de maiô, mas vestindo calça jeans e de cabelos presos por um lenço, ele não a reconheceu imediatamente, quando foram apresentados na calçada da casa dela numa noite de sábado, quinze dias após aquela manhã na praia.

Mas logo em seguida ele lembrou de tudo e, principalmente do jogo de olhares. A chamou de bandida por tê-lo apanhado no flagra quando, parecendo dormir, ela o deixara á vontade para demorar no olhar sobre o seu corpo relaxado ao sol e assim não perceber quando ela, num repente, abre os olhos e se depara com o seu olhar cobiçoso que o deixou sem ação e sem graça. Só restando então desviar a vista com cara de cachorro que lambeu sabão.

Mas também, como vingança, confessou que assistira de camarote quando distraída enquanto conversava com uma conhecida ao tomar banho no mar não percebeu a onda que, quebrando em cima dela, a jogou para longe bolando em meio a espuma e areia.

E perceberam assim, de descoberta em descoberta, que mesmo antes de saberem quem eram são já tinham um passado, uma história, coisas pra contar e relembrar.

“Eu você nós dois já temos um passado meu amor”.

E cada sábado daí pra frente e por certo tempo foi de muita praia e mar até o sábado mais triste de sua vida quando ela percebeu que ele se fora na tarde para não mais voltar quando sumiu na curva da rua de onde tantas vezes ela o vira chegar para namorar.

Já na casa da amiga, onde estava hospedada e onde ele a deixara depois da tarde de amor, seu “estado de graça” a todos contagiou com a leveza e encantamento pelo momento mágico que acabara de viver. A sensação que ela estava sentindo é que um ciclo acabara de ser fechado.

E então dormiu com a sensação de paz e tranqüilidade de quem viveu o que tinha de ser vivido numa história que agora tem começo, meio e...

The End

Alena Ajira
Enviado por Alena Ajira em 30/04/2010
Reeditado em 24/06/2015
Código do texto: T2229068
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