CAMINHO
Ele fechou a porta com delicadeza, quase que automaticamente, e colocou as chaves de casa no bolso; escutou o barulho sólido das partes de metal. Naqueles dias, naqueles exatos tipos de momento, prestava atenção a esses detalhes; aos barulhos, às texturas das coisas e dos sons, ao mundo. Era melhor olhar para fora do que para dentro de si, embora a vontade de fazê-lo fosse pouca. E assim se distraía.
Limpou com a mão direita as gotas de água que escapavam tímidas pelas extremidades de seus olhos; respirou fundo. As ruas estavam frias, como ele gostava, e vazias, como convinha ao momento. A noite, porém, era seca, atacava-lhe a garganta; era de uma acidez terrível, um incômodo que se espalhava pelas vielas e por todo seu corpo, por mais que tentasse se desvencilhar do sentimento.
Ele andava, seguia em silêncio, atento apenas aos barulhos de seus próprios passos. Tinha comprado um tênis novo, daqueles que fazem os sons mais estranhos enquanto não ficam velhos e desgastados; diria até que gostava mais das coisas velhas, elas são confortáveis. Mas o barulho agora o entretinha, tirava-o um pouco de dentro de sua própria cabeça; era disso que precisava.
Virou a primeira esquina; respirou fundo, o ar continuava ácido: como era doloroso caminhar sozinho. Não tinha quem o acompanhasse, alguém para segurar a sua mão e dizer que tudo ficaria bem. E como poderia ter? A vida lhe tinha sido tão ingrata. Como poderia voltar a sorrir, a conversar; por que se deixar envolver por outra pessoa? Era desperdício, um erro de fato; era apostar no imprevisível, naquilo que não se pode controlar, nem confiar. Entregar-se ao mundo era mais confortável do que se entregar a outra. O mundo ele sabia que estaria sempre lá.
Fechou o zíper do casaco, o frio aumentara; ou talvez fosse por causa do ambiente. Passou pelo velho portão de ferro e se sentou no mesmo pedaço de mármore de todas as noites. Levou os dedos ao seu pingente. Por que ela não estava com ele? Por que tivera de partir tão cedo? Eles ainda eram tão jovens; recém-casados, apaixonados. Talvez a felicidade fosse coisa proibida. Ele sabia que seus pais não eram felizes; mas eles continuavam juntos, por anos, e nada ameaçava separá-los. E assim era também com os amigos de seus pais... e com seus amigos... e com os amigos dela. Todos viviam tristes, mas estavam juntos, embora para eles isso de fato não importasse.
Levantou-se. Deslizou timidamente a mão pela pedra fria da lápide. Por um momento, esperou sentir de novo o calor do corpo dela, o cheiro, o tato. Ainda podia se lembrar da pele macia, do abraço, do carinho de cada gesto... e do amor. Ah, o amor... como duvidara de Shakespeare, como zombara dele enquanto estivera com ela. Agora, arrependia-se... o velho poeta estava certo. O amor é grandioso. E trágico. Talvez também fosse proibido.
Afastou-se um pouco, puxou o braço para trás em um ato reflexo, como se tivesse medo de se machucar. Voltou de novo os olhos para o mundo, para o mato que crescia ao redor, para a vida. Era tão difícil se manter atento a ela. Afinal, de que serviam todas as coisas? De que servia o mundo senão para dar sustento às pessoas? Sem elas, ele não faria sentido. Ou talvez fizesse, e ele não passasse de um bobo. O mundo estaria sempre lá, ele repetia... o mundo estaria sempre lá.
Enquanto isso, deixava o corpo cair ao lado da lápide e se entregava ao reino dos sonhos. Só precisaria encarar a vida quando nascesse o dia seguinte.
Confiram também o blog Na Ponta dos Lápis para mais contos e poemas.
- Para mais textos, acessar o site do escritor. -
Ele fechou a porta com delicadeza, quase que automaticamente, e colocou as chaves de casa no bolso; escutou o barulho sólido das partes de metal. Naqueles dias, naqueles exatos tipos de momento, prestava atenção a esses detalhes; aos barulhos, às texturas das coisas e dos sons, ao mundo. Era melhor olhar para fora do que para dentro de si, embora a vontade de fazê-lo fosse pouca. E assim se distraía.
Limpou com a mão direita as gotas de água que escapavam tímidas pelas extremidades de seus olhos; respirou fundo. As ruas estavam frias, como ele gostava, e vazias, como convinha ao momento. A noite, porém, era seca, atacava-lhe a garganta; era de uma acidez terrível, um incômodo que se espalhava pelas vielas e por todo seu corpo, por mais que tentasse se desvencilhar do sentimento.
Ele andava, seguia em silêncio, atento apenas aos barulhos de seus próprios passos. Tinha comprado um tênis novo, daqueles que fazem os sons mais estranhos enquanto não ficam velhos e desgastados; diria até que gostava mais das coisas velhas, elas são confortáveis. Mas o barulho agora o entretinha, tirava-o um pouco de dentro de sua própria cabeça; era disso que precisava.
Virou a primeira esquina; respirou fundo, o ar continuava ácido: como era doloroso caminhar sozinho. Não tinha quem o acompanhasse, alguém para segurar a sua mão e dizer que tudo ficaria bem. E como poderia ter? A vida lhe tinha sido tão ingrata. Como poderia voltar a sorrir, a conversar; por que se deixar envolver por outra pessoa? Era desperdício, um erro de fato; era apostar no imprevisível, naquilo que não se pode controlar, nem confiar. Entregar-se ao mundo era mais confortável do que se entregar a outra. O mundo ele sabia que estaria sempre lá.
Fechou o zíper do casaco, o frio aumentara; ou talvez fosse por causa do ambiente. Passou pelo velho portão de ferro e se sentou no mesmo pedaço de mármore de todas as noites. Levou os dedos ao seu pingente. Por que ela não estava com ele? Por que tivera de partir tão cedo? Eles ainda eram tão jovens; recém-casados, apaixonados. Talvez a felicidade fosse coisa proibida. Ele sabia que seus pais não eram felizes; mas eles continuavam juntos, por anos, e nada ameaçava separá-los. E assim era também com os amigos de seus pais... e com seus amigos... e com os amigos dela. Todos viviam tristes, mas estavam juntos, embora para eles isso de fato não importasse.
Levantou-se. Deslizou timidamente a mão pela pedra fria da lápide. Por um momento, esperou sentir de novo o calor do corpo dela, o cheiro, o tato. Ainda podia se lembrar da pele macia, do abraço, do carinho de cada gesto... e do amor. Ah, o amor... como duvidara de Shakespeare, como zombara dele enquanto estivera com ela. Agora, arrependia-se... o velho poeta estava certo. O amor é grandioso. E trágico. Talvez também fosse proibido.
Afastou-se um pouco, puxou o braço para trás em um ato reflexo, como se tivesse medo de se machucar. Voltou de novo os olhos para o mundo, para o mato que crescia ao redor, para a vida. Era tão difícil se manter atento a ela. Afinal, de que serviam todas as coisas? De que servia o mundo senão para dar sustento às pessoas? Sem elas, ele não faria sentido. Ou talvez fizesse, e ele não passasse de um bobo. O mundo estaria sempre lá, ele repetia... o mundo estaria sempre lá.
Enquanto isso, deixava o corpo cair ao lado da lápide e se entregava ao reino dos sonhos. Só precisaria encarar a vida quando nascesse o dia seguinte.
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