UM AMOR IGUAL
Seria mais um dia apressado. Como sempre, a correria de passar batom dentro do táxi, de se olhar às pressas pelo reflexo dos vidros do carro, de até esquecer seu próprio itinerário.
- “Qual é o seu destino?” perguntou o taxista.
Aquela pergunta, assim, de inopinado lhe tocou fundo, qual era o seu destino. De rua, de avenida, qual o endereço? Sim, perguntava-se, de relance qual seria mesmo o seu destino, o que vinha sendo a sua vida.
Respondeu, então para o taxista, desembrulhando um minúsculo papel de recados, colocando o seu par de óculos importados, nos sustentáculos de seu lindo nariz:
-“Moço, não sei bem onde fica esse endereço, pois, é a primeira vez que estou indo, acredito que o senhor deva conhecer a rua de nome.”
- “Bem, então vamos lá!”
Edelta Bianca seguiu mais uma de suas viagens curtas e matinais que faziam parte de seu trabalho, como repórter investigativa. Revirava sua imensa bolsa cheia de apetrechos femininos, certificando-se de que tinha tudo às suas mãos: gravador, agenda, vários celulares, mais o seu imprescindível e inseparável batom vermelho.
Jamais poderia esquecê-lo, seu objeto de desejo principal. Certa vez saíra de casa, viu que tinha esquecido, não tendo tempo para voltar, quando chegou ao trabalho, ligou para uma perfumaria e pediu seu batom. Sentia-se nua sem cor, pouco feminina.
Edelta Bianca, uma mulher muito clara, realmente ficava muito pálida, quase que uma moça-fantasma, aquela da Balada de Belo Horizonte como no poema de Carlos Drummond de Andrade, um de seus preferidos. Edelta era chamada por seus amigos, carinhosamente de Edi. Aquele dia estava um calor insuportável, o taxista não parava de falar o tempo todo, e Edi não estava disposta a nenhuma confabulação.
O trânsito engarrafado, um sol escaldante que aquecia tanto o carro, que nem o ar refrigerado estava funcionando a contento. Edi puxou seu leque de bambu chinês, perfumado de sândalo que impregnou o ar do carro, a ponto do taxista ter adorado aquele aroma feminino e misterioso.
- “Que cheirinho agradável!” Exclamou o taxista.
- “O senhor me desculpe, mas o ar não está bom, não está funcionando direito, estou pingando de suor!”
- “Só não abro a janela do carro porque esse lugar é perigoso, certos trechos nem estão asfaltados, é poeira e terra para tudo que é lado!”
Edi faria uma palestra numa escola do subúrbio de Casa Amarela.
- “Já estamos quase chegando, senhora. Se não fosse este congestionamento todo...”
Edi novamente revira sua máxi-bolsa, revisa o tema da palestra que irá proferir, fica ansiosa com o tempo passando. Olhando fixamente os ponteiros do relógio, pede um pouco mais de pressa ao motorista. Imagina, no percurso como será a escola, como serão os professores, a pauta dos assuntos, o desenrolar daquele dia. No caminho muito solar, olha-se através dos vidros do carro, transparece sua imagem de mulher, a fisionomia louçã, a boca vermelha desenhada, que se destaca como um bordado em relevo, aqueles lábios sem beijos.
Edi era uma mulher estranhamente só. Nenhum rabo de calça em sua vida, depois de um casamento desfeito, sem filhos. Costumava dizer para seus amigos que se paixão não tinha, inventava, como na música de Caetano Veloso. E assim vivia uma vida de só trabalho, mergulhada em sua solidão, esquecia-se de existir.
Chegaram ao destino de Edi. O taxista perguntou-lhe se gostaria que a esperasse, pois, a traria de volta para a cidade. Edi dispensou o taxista não sabia se demoraria naquela palestra, como iriam as coisas acontecer. Adentrando o corredor da escola, foi recebida carinhosamente pela diretora que a levou até o auditório.
Seu coração batia acelerado, apesar de estar tão acostumada a falar em público. Sentia um friozinho na barriga que vinha de baixo para cima.
- “A senhora, aceita um cafezinho ou uma água?”
- “Sim, aceito um cafezinho!”
Edi entrou naquele recinto cheio de professores, um colorido aconchegante de pessoas, se sentiu bem ao olhar de longe a platéia repleta, não havia nenhum espaço vazio.
Como sempre, apresentou-se a todos, mas desceu do palco, preferindo olhar mais de perto, estar mais junto a todos, queria como ninguém compartilhar aquele momento. Apreciava aqueles rostos como pétalas de encantamento, havia uma empatia e receptividade muito grande no ambiente com sua presença ali.
Dispensou o microfone, sua voz ressoava intensa, forte.
Atendia uma por uma das solicitações dos seus ouvintes, eram professores e professoras a lhe indagar. Anotava tudo em sua agenda, não se perdia nos mais variados assuntos explanados, brilhava como palestrante mas, era neutra em sua vida de mulher. Até que um rosto se destacava naquela multidão, aquele par de olhos supremamente verdes, a deixavam angustiadamente feliz. Era uma mulher, que parecia ao mesmo tempo ser um homem, um misto de um tudo, híbrida. Ela parecia masculinizada, os cabelos curtos, negros, mas os olhos...
Edi ficou sem ação, perplexa consigo mesma, como poderia estar tão hipnotizada por uma mulher? Esgueirava-se naquele olhar tão avassalador, profundo, que a descobria dos seus mais íntimos segredos, ela parecia conhecê-la sem mesmo lhe tocar.
Dali em diante, Edi fazia caras e bocas, fazia poses, queria mostrar seu lado mais bonito, o seu perfil mais encantador. Era, como se tivesse ganhado uma vida nova, ao mesmo tempo se sentia culpada e horrorizada. Como podia estar tão e repentinamente envolvida com apenas um olhar e de mulher! O que estava acontecendo de errado? Edi tremia da cabeça aos pés toda vez que dirigia seu olhar aquela moça, um misto de homem-mulher. Seus olhos verdes a torturavam, mexiam fundo de sua alma inquieta, sentia desejos, sentia atração. Edi começava a viver compulsivamente, uma aventura, uma messe de loucura. No caderninho de anotações, sublinhou o nome da moça que parecia ter levado Edi de volta à vida, Maíta era seu nome.
Edi, aflita, dobrava, fincava a folha para se certificar que o nome dela estava ali inscrito para sua felicidade, ainda que fosse fugidia, provisória. No intervalo da palestra, Edi suava naquele doce subúrbio de Casa Amarela. As pessoas se aglutinavam à sua volta para mais lhe conhecer, fazer perguntas, tirar suas dúvidas, trocar idéias sobre projetos. Edi estava cercada por aquelas pessoas, mas seu pensamento não estava ali. Esforçava-se, sorria, o coração bombástico, o cabelo liso colado ao pescoço branco como uma torre de marfim, pelo calor da ânsia. Procurava Maíta que tinha se afastado para ir à cantina da escola comprar refrigerante. No segundo tempo da palestra, Edi estava mais calma. Maíta estava sentada estelarmente distante, mas se entreolhavam entre uma fala e outra. Ambas olhavam os ponteiros luminosos do relógio que marcavam um fim que chegava próximo. Parecia que daquele momento em diante, Edi fugiria do roteiro do seu tédio, que Maíta a carregaria consigo em uma descontrolada fantasia.
Tinha um longo périplo de volta à cidade, a palestra findara. Abraços, beijos de despedida, uma pequena homenagem traduzida em lírios brancos ofertados pelos professores, que a deixaram no táxi.
Edi não mais viu Maíta no meio daquela pequena multidão. Verteu seu corpo até o fim da rua onde o táxi virou à esquerda, na tentativa em vão de ver aquele belo rosto. Baldadas as suas investidas, o belo par de olhos que faiscavam, não assomaram naquele átimo.
Lembrou da pergunta do taxista: -“Qual é o seu destino?”
De volta para a realidade. Mal chegou ao trabalho, apressada, tirou o caderninho da bolsa e viu o nome de Maíta escrito a lápis. Despistou, não queria que ninguém a visse telefonando. Seu coração mais uma vez disparava, dilatava, sentia perder o juízo, a face corava, um calor emanava de seu corpo. Alguém atendeu do outro lado, informando que o número estava errado, que não tinha ninguém com o nome de Maíta. Edi não se conformou com a notícia, era como tivesse perdido um sonho. Não era possível, pensava. Como poderia ter anotado um número erroneamente, de alguém que tanto lhe encantara? Na floração daquele desejo, Edi ia às últimas conseqüências para achar aquele rosto novamente. Saiu como uma louca, perguntando à secretária o telefone de todas as escolas que participaram da palestra.
Pegou a listagem e tentou. Estranhamente ninguém conhecia Maíta. Como pode ser, pensava. Era uma linda mulher de carne e osso, que a fitara por momentos. Olhos, que pareciam dois pedacinhos de cristais verdes, translúcidos. Edi caiu em tristeza. Passados dias, retornara à mesma escola, cumprindo o silêncio de seu destino. Arrumara uma desculpa qualquer, um disfarce para encontrar aquela mulher. Olhava cada canto da escola, cada sala esmaltada, uma caverna, um amor que não começou e se acabara. Não queria admitir para si, como poderia ter se apaixonado por uma mulher. Não contara para ninguém o seu segredo. O que estava de errado em sua vida.
O que pensariam os outros se soubessem? Seria normal?
O fato é que um simples olhar esverdeado tornava uma paixão de desejos em escarlate. A vida de Edi empoeirada, esquecida de viver, aturdida em devaneios, numa alegria que não veio.
Passaram-se semanas, meses. Edi tentou de várias maneiras encontrar Maíta. Refletiu tantas vezes, será que teria sido impressão sua? Porém a moça não saia de sua cabeça, a sua imagem cada vez mais nítida em sua lembrança. Sentia remorsos, ao mesmo tempo, nunca pensou estar apaixonada por uma mulher em sua vida. De certa maneira passou a refletir sobre os sentimentos das pessoas. Tanto fazia agora, o importante era encontrar a moça dos olhos esverdeados, no amor que se eriçava nos poros.
Edi desejava aquela mulher, não tinha idéia do que seria esse amor igual.
Num domingo de lua nova, já quase desvanecida, esquecida daquele olhar, Edi num bar noturno, num esbarrão de ombros, encontra Maíta. Cumprimentam-se. Edi sente a deliciosa fragrância masculina, fica desconcertada, ao mesmo tempo, um medo lhe invade. O toque de seus lábios num rápido beijo, a maciez incontestável de sua pele, o verde martirizante de seus olhos que lhe aguçam os mais recônditos desejos. Conversam. Edi repara como Maíta esmaga o cigarro no cinzeiro, voraz como um homem, intensa. Semeiam um novo encontro, um jantar em seu apartamento. Edi aceita prontamente o convite, não hesita em nenhum momento.
O dia seguinte chega, é o dia do encontro das duas mulheres. Edi, tão feminina, de vestido vermelho. Maíta lhe abre a porta, tão lindamente trajada num terninho escuro.
Edi se choca ao vê-la, fica confusa, um receio imenso toma conta de seu corpo, que esfria, que a deixa atordoada naquele instante. Maíta lhe toma pelas mãos, apresenta seu belo apartamento, juntas admiram a paisagem da janela com vista para o horizonte azul do mar. Edi olha silenciosamente para aquela mulher, travestida de um belo homem. E o amor começa pelo pequeno toque dos dedos das mãos que se procuram, do vestido de seda vermelha, que cai na lucidez do chão. Da língua devassa que irrompe como serpente em aturdidas delicadezas, que se entranha nas promessas da pele imprudente. Tocam-se como duas flores, como dois amores, banham-se num drinque de gim, nuas, livres, como a libido dos cisnes.
Descartaram as horas exatas, no toque sublimado do afeto. Um contingente de procelosos beijos, o desejo se apoderando, Edi sem resistir, obediente, prestes ao desenfreado êxtase. Daí em diante, sem se esquivar dos estreitos abraços, sem defesas, sem trincheiras, sem escapar dos afagos, deixa-se ser amada, ao abandono do momento.
Edi queimando em paixão, sem barrar sentimentos, foge para Maíta como quem foge para o mar.
A língua de sol de Maíta, atrevida, envereda profana até o avesso de sua alma, sublinhando seus detalhes, seus contornos em solicitude de seus gestos, em verdadeira obsessão, indecente, lasciva, selvagem, espasmódica, no frêmito da orgia que se espalhava em cada minúcia do seu corpo. Em sua sede corpórea, Maíta a pespegava como a corola das pétalas, em delicadezas, num poderio intenso, as mãos latentes fincando as marcas dos delírios, deixando vestígios, visos da sua sedução. O gim umedecia a pele, na sacralidade do colosso do rito, os corpos ensamblados, no cúmulo do gozo, como no íntimo de uma pérola, guardada na concha em seu refúgio e segredo.
Das mais probantes certezas, Edi sentia uma profecia a lhe trazer um amor jamais imaginável em sua vida, a lhe mudar o rumo de sua história. Pressentia também um mundo a desabar sobre sua cabeça, um caos se instalaria, estaria tanto por vir, surpresas adventícias, começando tudo ali, naquele apartamento, naquele lugar secreto.
E agora sem que a voz do coração a ouvisse direito, no prelúdio da manhã, as cortinas de voal esparsas, beijadas por um vento raso, tocavam languidamente aqueles corpos adormecidos, entrelaçados, cansados, fingia-se de tudo que acabara de acontecer naquele chão de idílio. Como poderia ter encontrado alguém naquela altura da vida, que a fizesse sentir tantos desejos desenfreados, que a transformava na mais feliz de todas as mulheres? Maíta, ainda sonolenta abraçada à cintura de Edi, que a olhava silenciosamente, reparando sua silhueta esculpida, delineada, que lhe enternecia de admiração, e mais do que tudo fosse permitido ver em seu semblante adormecido. Enquanto Maíta continuava a dormir, Edi fazia uma projeção de sua vida, sentindo ainda o fulgor daquelas delícias que as deixaram exaustas. Era como se fosse um sentimento que viesse à contramão do destino, algo pouco improvável de acontecer, mas que tinha acontecido. Restava seguir o caminho, transpondo barreiras, viver aquela intimidade sem qualquer mediania. Queria o todo da relação, por inteiro, mas não queria se admitir ao mesmo tempo apaixonada por Maíta. Sabia viver confinada em uma rotina sem gala, sozinha em seu apartamento, cercada por gatos que a esperavam voltar do trabalho todos os dias. Vivia assim, reclusa em si mesma, arrepiando-se com o roçar da plumagem daqueles felinos, o toque, como um único carinho que a socorria do viés de uma solidão tenaz. Sim, aquilo tudo para ela significava o festim de sua existência, nunca tivera usufruído de tanta felicidade com alguém, nem em seu desfeito casamento com Pedro Ivo que durara nove anos. Tentava recordar, as nuances do corpo de seu homem, mas rompia com aquela relação submissa. Ele jamais conseguiu atingi-la em seu clímax de mulher, ele não a conhecia no leito, não pactuavam o mesmo itinerário dos lençóis. Edi tinha que admitir sim, confessar a si mesma, sem constrição o chamamento daquele amor igual, que a devassava à feição de uma paixão que transcendia a sua própria verdade. Já não sabia mais, o que ditava as regras da dita normalidade social, o que ditava o amor, o que seria o indicativo correto do verbo amar, quais seriam as pessoas cordatas desse tal verbo, a regência do querer. Não, não tinha explicação plausível. Ali olhando reverenciando aqueles cílios negros, aquela beleza que não precisava ser realçada por cosméticos, que sob o olhar cinzelado de qualquer espelho, ciumentamente, refletia a sua doce imagem feminina. Tinha corpo e alma de mulher, mas um espírito e força de um homem. Edi estava agora com o coração na mão!
Assim, se passaram as horas que se fizeram inexatas. Maíta acorda inopinadamente e cai nos braços de Edi, selam um beijo carinhoso, dão-se em abraços de quebrar ossos, sob a pressa dos compromissos que as esperam lá fora.
- Olhe Edi, vou mandar preparar nosso café, sei que já está tarde! Estamos super-atrasadas, queria que hoje especificamente, tivéssemos um momento especial para este primeiro dia juntas.
Percorrem o apartamento a buscar as roupas como bandeiras expostas, riem dos encontrões, dos esbarrões, se tocam, se mordiscam levemente, correm para o chuveiro, o sabonete exala um perfume de sândalo, que entranha naqueles corpos ávidos de um novo prazer, à luz do dia. Maíta rende o corpo de Edi por sobre os ladrilhos quentes do vapor do banho, suga sua boca aflante, os dedos nervosos percorrem a superfície de sua pele ensaboada, invade sua fenda, onanizam-se viciosas, em gemidos pungentes, em delírios, a língua escaldante intromete-se, sofregamente, e vem o espasmo, se procuram voluptuosas, deslizam, escorregam em vassalagem, num querer infinito.
- Dona Maíta, o café está na mesa, não demore se não vai esfriar, a senhora está ouvindo?
Maíta e Edi se surpreendem com aquele chamamento, se dão conta da rotina que as esperam, voltam a si daquele duelo de prazer.
- Pode deixar que já estou indo, me traga os jornais do dia e deixe-os na sala, por favor!
Enxugam-se às pressas, Maíta não usa pintura em seu rosto que parece uma moldura. Edi revira sua bolsa feminina, sua nécessaire cheia de apetrechos para pintar seu rosto, principalmente busca com avidez o batom vermelho que não encontra em sua bolsa. Maíta sorri daquela busca desenfreada por causa de um batom.
- Olhe, não se preocupe meu amor, em usar batom, preciso de teus lábios nus aos meus, sempre me esperando aberta para meus desejos!
Maíta puxa Edi e a enlaça, enroscada em seu corpo antes de irem para a mesa tomar o café. O telefone não para de tocar, são as pessoas perguntando por Maíta a todo instante. Edi sente uma pontinha de ciúme.
- Que mulher mais procurada!
- Hmm, vamos tomar o café!
Djanira, a empregada da casa, entra na sala com os jornais e se depara com o casal de mulheres trocando torradas com beijos na boca, fica estarrecida. Arregala os olhos, perplexa com a cena que vê naquele momento. Maíta nem se importa muito, dá de ombros, pisca os olhos para Edi, que sente seu coração pular de vergonha diante do olhar de Djanira.
- Olhe meu amor, não fique constrangida, acho melhor ir se acostumando com o olhar crítico das pessoas, é assim mesmo!
- Vamos indo então?
Diz Maíta à Edi que folheia as páginas noticiosas do jornal.
-Vamos sim, já estamos bem atrasadinhas e o trânsito, nem se fala! Como estará a essas horas da manhã?
Maíta desce no elevador sempre agarrada, colada ao corpo de Edi. Extasiada de alegria combinam um novo encontro, promessas de telefonar, quem sabe até marcar um almoço naquele mesmo dia. Seu Jerônimo, o porteiro do prédio, cumprimenta as moças que pegam o carro na garagem e seguem seu destino para a cidade. No percurso o embaraço de sempre atormenta. As duas que olham fixamente os ponteiros do relógio que denunciam as horas que resvalam lepidamente, que as deixam ansiosas, os minutos que passam, o tempo que escoa sem volta.
Maíta deixa Edi em seu trabalho.
- Assim que chegar eu te telefono, almoçamos juntas!
Edi chega à sua sala sob um dilúvio de perguntas de suas colegas. Ajeita o seu blazer preto de camurça, abotoando os grandes botões, tentando ocultar o vestido vermelho por debaixo. Prepara sua mesa para mais um dia agitado de trabalho, vai abrindo suas gavetas, remexendo seus utensílios, liga o computador. Como sempre, quase que como uma mania, vai acertando com leve toque, os quadros pendurados na parede, nutria um horror de que ficassem inclinados, tortos, sua avó dizia que trariam má sorte se o dono os deixassem prostrados, desengonçadamente.
Ao mesmo tempo que arrumava aquele ambiente, sentia uma tensão dual em seus pensamentos. Num mundo em que se conferia status à identidade pessoal das pessoas por suas relações amorosas, estava aflita. Preparava um discurso concatenado, Edi não sabia sustentar-se por muito tempo em mentiras. Não queria de aquele momento em diante partilhar sua intimidade com quem quer que fosse. Seria difícil. Edi era um livro aberto, todos conheciam seus passos, o que fazia, não tinha segredos para ninguém. Estava arrependida, pensava como pode se expor tantas vezes perante às pessoas, e tendo agora que mudar de uma hora para outra, ser uma mulher mais reservada. Calçava-se de todas as precauções possíveis, capazes de mantê-la segura e natural, mantendo as aparências.
Helena, amiga de Edi de mais de vinte anos, a quem costumava confessar todos os seus problemas, entra na sala e com um olhar que quase a desmantela, como que a descobrir a sua mentira encarnada a cada gesto, lhe diz:
-“Edi, ficamos preocupados contigo ontem à noite, imaginamos que só poderia ter sido teu ex-marido, saiu com ele, né?”
Edi monossilabicamente responde que sim. Sem fitar os olhos de Helena, sai de fininho da sala para ir buscar um café. A amiga novamente investe em Edi, grudada, vai seguindo-a pelo corredor a fora.
E Helena continua falando:
- “Seria tão bom para ti reatar com ele, sairias daquela redoma de gatos do teu apartamento, não viverias mais sozinha!”
As mãos de Edi trêmulas, segurando o copinho de café pelando, deixa respingar algumas gotas ao chão. Prefere assoprá-lo a dizer alguma coisa à Helena. Retornam juntas à sala, nesse ínterim um mensageiro bate à porta trazendo um buquê de flores. Edi sente seu coração fibrilar ao ver aquela profusão de lírios e miosótis brancos envoltos em papel celofane. Helena como um cupido, diz que só pode ser de Pedro Ivo, ex-marido de Edi. Num gesto brusco sem que Edi pudesse conte-la, Helena escavando sua curiosidade, toma das mãos de Edi, o cartãozinho que acompanha as flores. Edi estremece dos pés à cabeça, esconde seu lindo rosto por entre os lírios.
- “Até que enfim! Quanto tempo sem receber um mimo desses, deixa-me ver o que ele te diz”.
Helena abre o cartão, gagueja, perplexa ao ler o conteúdo da mensagem, engole em seco, orbita seus olhos em direção à Edi e lê em voz alta:
-”Edi, te quero para sempre. Beijos, Maíta”.
E diz, fingindo acolher aqueles dizeres, estar chocada, surpresa, não iria supor que Edi se interessasse por uma mulher!
Os lírios encorajam Edi, que assume a sua verdade sob o impacto e o espanto de Helena. Toma o cartão das mãos da amiga, de volta para si com lágrimas que umedecem sua face pálida e ousada, declara veemente:
- “Helena, sou uma mulher sentinte da mais pura felicidade, que jamais nenhum homem me proporcionou. Estou viva, ela me faz sentir assim, é tudo quanto eu possa imaginar de melhor para mim.”
Edi aperta contra seu corpo aqueles lírios, sentindo sua alma lavada. As duas se entreolham em silêncio, que é interrompido pelo tilintar do telefone. É Maíta avisando que vem buscá-la para o almoço.
Helena se despede rapidamente de Edi, desejando toda sorte do mundo:
-“ Edi não estou aqui para te julgar, só espero que sejas muito feliz, só importa amar, não importa como, já é o bastante! Nos falamos mais tarde, querida! Vou indo almoçar também, bom apetite!”
Edi toma um táxi, levando consigo alguns lírios em suas mãos, os acarinhando, suavemente, protegendo-os do vento para não os esflorar, encontrando em cada pétala um sentido para sua vida.
Vilma Belfort