A CARTA
José,sentado naquela tosca cadeira de balanço; já corroída pelos anos de uso ,uma herança de seu pai, que muitas e muitas tardes sentara-se nela à conversar com a família reunida no alpendre da casinha onde nascera,na região colonial,tinha, em sua mão esquerda, um envelope branco com vários selos indicando o destinatário e o remetente. Enquanto comprimia o envelope contra o peito, seus pensamentos voavam em direção ao passado, lembrando-se principalmente da razão maior do conteúdo daquela missiva, um leve sorriso ia tomando forma no rosto enrugado pelos oitenta e quatro anos de sua feliz existência. Surgia em sua volta a imagem daquela que fora sua companheira, sua metade ,sua maior alegria , “sua Maria”,sua querida flor de Jasmim ,como sempre a chamara. Revivia o dia em que a havia conhecido e deixava escorrer nos cantos dos olhos duas lágrimas furtivas. Como era meiga “sua Maria”,como era bela com seu jeito simples de pentear os cabelos,que teimosamente iam parar no canto dos lábios e ela os soprava e ajeitava graciosamente com as mãos.Tinham se casado na igrejinha do morro mais alto daquela região colonial, um lugar sagrado, simples, marcante, quase irreal que, com sua cor branca e seu altar em madeira rústica,tinha lugar para ajoelhar-se e rezar,tão diferente de qualquer outra igreja que conhecera . José revivia cada momento com tal intensidade ,que parecia estar ouvindo a voz do padre dizendo:
-Em nome do Senhor Deus,eu os declaro Marido e Mulher
Os anos passavam como um filme na memória de José, que a cada momento tinha um sobressalto ao rever determinadas cenas. A mais forte foi aquela em que junto à “sua Maria” ouviu o som do choro de um bebê , que parecia estar saindo daquela caixa de madeira utilizada pelos moradores da redondeza para colocação do lixo comunitário. José e Maria , mesmo não tendo certeza pois o som cessara ,tiraram a tampa e apavorados viram aquele pequeno pacote de panos e jornais mexer-se. Abriram-no, o choro voltou mais forte, surgindo à sua frente a forma de um menino que, ao vê-los , esticou-lhes os bracinhos ;tão frágeis e nus, que como em uma suplica parecia querer dizer-lhes :
- Salvem-me.!.. adotem-me!.. criem-me !...
José ,atônito, pegou a criança no colo e passou-a para Maria que, ao pegá-la, entrou em crise de choro. Quem deixara ali, aquele inocente? Quem fora tão cruel e desumano para abandonar aquela frágil criaturinha? Todas as perguntas foram feitas e José continuava vendo o filme passar, lembrando-se ainda, que:“sua Maria” não pudera dar-lhe um herdeiro legítimo devido a um acidente que tivera na infância ;no qual havia perdido parte do útero, não podendo por isso cumprir o papel de mãe natural. José reviu também o momento da adoção, do batizado, da formatura no colégio primário, no ginásio e na faculdade. Reviu a partida do trem, naquele domingo em que se despediram do Carlinhos ; que estava indo para o exterior em busca de novos horizontes. Reviu também o desencarnar de sua amada,“Maria”, que partira para encontrar-se com Deus e o deixara apenas com seus pensamentos e suas imagens fantasmagorica, reais. José, ao sentir uma forte dor no peito, comprime a carta contra si e desfalece. Ao acordar, sente a mão de alguém afagando as suas e uma voz suave de pura melodia dizer-lhe:
- Venha, querido ,eu estava com muita saudade
Leve como o ar, José viu sua Maria levando-o pela mão em direção a uma luz tão linda, e tão branca, que até parecia fazer parte do seu corpo. Ele, nesse momento, entendeu que tinha morrido .
Quando a empregada chegou, encontrou-o com a carta presa junto ao peito. Pensando que ele estava dormindo e sem dar- se conta do ocorrido, pegou-a para ler. A carta viera de Londres e tinha o seguinte teor :
- Querido papai, fui aprovado para ser Juiz da Corte Suprema da Inglaterra, obrigado por tudo, espero ver-te na minha posse. Mando-te junto a passagem de avião para a próxima semana .... Assinado : Carlinhos.
“O filho que tinha achado no lixo hoje se tornara um filho de luxo”.