Esmeralda
ESMERALDA
O falseamento de certos princípios da moral,
dissimulado pela educação e conveniências sócias,
vai criando esses aleijões de homens de bem.
JOSÉ DE ALENCAR
O nome da minha “amiga” era Esmeralda. Mas o nome - ou melhor, a pessoa - não fazia mais jus ao brilho e à cor da pedra preciosa com o mesmo nome. Tal jóia ainda cintila, contudo, seu fulgor é tão artificial que engana somente os que vêem a superfície das coisas, os que não abalizam uma pedra preciosa duma pedra negra. Seu brilho agora cega e não mais encanta. Aquela pedra de fulgor verdejante, que outrora ficava no mais elevado altar, encontra-se agora enterrada na mais baixa profundeza das larvas incandescentes do Hades terreno, consumida vorazmente pelos vermes que ali habitam, vermes que roíam impiedosamente as suas vísceras. A nostalgia é inevitável quando me lembro daqueles olhos vivos e cheios de vigor, no entanto, a consternação logo me assola quando vejo aquelas órbitas abatidas e com uma luz sulfúrea que me aterrou num primeiro momento do nosso encontro. A lisura e a integridade tiveram seus reinos devastados pela malícia e pela hipocrisia.
Alguém se pergunta: o que sobrou de útil desta pobre mulher? Eu respondo: absurda e absolutamente nada. Em tese, o espírito há de amadurecer e se elevar com o passar dos anos. Entretanto, o contrário aconteceu com a minha antiga “amiga” Esmeralda quando a encontrei, depois de longos nove anos em que eu estive em Wick, Escócia. Vi que seu espírito estava num estado mórbido de decomposição ético-moral. Já tinha uma certa suspeita quando proseamos rapidamente ao telefone, tive certeza quando a vi na porta da sua morada. Não a reconheci de imediato e sei que a recíproca foi a mesma. Seu sorriso era muito mais deprimente do que o mais rigoroso inverno das Highlands e mais falso do que a sua aparência, uma superfície duvidosa coberta por perigosas e mortais areias movediças.
Num primeiro momento, pensei que eu perdera meu custoso tempo em visitar aquele ser degradante. Vim à Bahia visitar minha família que eu não via fazia nove anos; aproveitei o ensejo e fui ter com aquela que fora a minha melhor amiga de infância. É uma lástima ter de dizer que “infelizmente as pessoas crescem”.
Cumprimentamo-nos de maneira bem apática. Não se sabia de que lado a hipocrisia hasteava mais alta a sua bandeira. Tive clemência daquela pessoa em completo declínio, por isso, convidei-a para passearmos de carro. Após uma análise pormenorizada no carro, Esmeralda hesita um pouco, mas acaba aceitando meu convite. Aquele gesto causou-me uma elevada repugnância que tive vontade de partir sem ao menos dizer adeus, o que seria um sacrifício sobre-humano da minha parte.
Enquanto o carro andava pela cidade “Pedra Negra”, uma agitação nervosa tomou de assalto todo o meu corpo. Minhas mãos estremeciam no volante e minha respiração estava arfante. Escuso em dizer que a recíproca gestual fora a mesma.
Fazia quinze minutos que perambulávamos pela cidade e as únicas palavras dirigidas um ao outro foram apenas insensíveis e falsos cumprimentos. Com muito esforço, perguntei-lhe sobre as novidades destes nove anos da minha ausência aqui na cidade. A resposta foi um seco “sem novidades”. Entretanto, as estrelinhas daquela resposta estavam deveras nítidas para mim. Era imperioso que Esmeralda ocultasse seus anos de vícios, extravagâncias e excessivos prazeres. Muitos já tinham me alertado para as atitudes duvidosas da minha “amiga”. A evidência concreta estava agonizando ao meu lado.
Ela, com muito esforço também, perguntou sobre como eu vivera estes longos nove anos na Escócia. Não respondi do mesmo modo que Esmeralda, não almejava descer ao seu nível. Respondi-lhe que eu era o rei duma linda princesa escocesa com uma rainha dinamarquesa. A inveja estava aparente naqueles olhos grandes e sulfúreos, que, de quando em quando, era velado pelas franjas dos seus negros, longos e lisos cabelos. Uma cobiça aliada ao desdém dos seus finos lábios e da contraída e esmerada sobrancelha.
Estávamos sem rumo. Faltava somente conhecer o cemitério, o que seria a atitude mais apropriada naquele momento. Seria uma excelente oportunidade para enterrar aquele corpo insensível num jazigo qualquer ou simplesmente deixá-lo exposto aos urubus.
Mas estávamos sem rumo. Ela, muito mais ainda. Apenas freqüentava uma faculdade particular. Soube que Esmeralda fazia programas voluptuosos para angariar fundos. Isso me surpreendeu, visto que sua família vivia financeiramente bem, não havia motivos para tal estilo de vida. Seus batalhadores pais não mereciam essa abominável filha. Não obstante, já se foi o tempo em que os oráculos previam acertadamente o futuro nebuloso duma peste pérfida e o jogavam montanha abaixo para saciar a insaciável fome dos tubarões. A morte seria um castigo brando para aquele flagelo dos deuses. Era necessário que ela fosse jogada num inferno no qual seria quase impossível a expiação dos seus crimes.
Ainda continuávamos sem rumo, até que o carro passa ao lado do Centro de Cultura Adonias Filho. Havia um cartaz afixado na entrada. Era uma peça de teatro que se intitulava “A Viuvinha”, obra do imponente escritor romântico José Martiniano de Alencar. Não pensei duas vezes, precipitei o carro adentro do recinto sem ao menos perguntar se aquele ser queria assistir à peça ou não. Estacionei meu carro e rapidamente abri a porta para Esmeralda sair e fiz uma mensura, afinal, ser cavalheiro ainda não custa nada.
Quem nos observava, percebia que éramos estranhos, dois desconhecidos, apesar de caminharmos junto. Sempre unidos, eternamente afastados. A essência do espírito nos aproximava, mas, as ilusões que tínhamos uma do outro nos separavam a uma distância maior do que os sonhos impossíveis. Duas flores que nasceram contíguas, contudo, suas ramificações penderam para caminhos completamente distintos, cada um viu e vivenciou uma era diferente; uma vingou, a outra criou espinhos e perdeu seu brilho, sua coloração, seu bálsamo.
Entramos no teatro. O público, que ocupava os duros e desconfortáveis assentos, era composto de no máximo umas trinta pessoas. Pensara que havia de chegar mais, mas, quando a peça havia começado, enganei-me. Sentamo-nos no assento mais elevado para que a nossa visão dos atores fosse privilegiada. Estávamos findando o mês de janeiro, desnecessário apontar o terrível calor que ali fazia.
Entraram em cena os protagonistas da peça, Jorge e Carolina. O figurino estava horrível, parecia que fora feito de última hora. O cenário era muito pobre para o que o enredo se propunha. Na minha ida à Escócia, eu levara alguns livros de meu pai e um deles era “A Viuvinha”, de José de Alencar. Então, estava inteiramente ciente da narrativa. Se bem que este excelente autor fora pouco detalhista nesta obra, pois a descrição e a comparação são uma de suas muitas características que eu reverencio.
Depois de se despedi de Carolina – sua então amante – Jorge faz uma retrospectiva do seu soturno e negro passado. Sei que ele ia permitir que seu grande admirador fizesse isso, por isso, hei de me utilizar das palavras do próprio autor, “Durante três anos... saciou-se de todos os prazeres, satisfez todas as vaidades... essa glória efêmera... como quase sempre sucede... só despertou quando, fatigado pelos excessos do prazer... o moço sentiu o tédio e o aborrecimento, que é a última fase dessa embriaguez do espírito”. Essa passagem emocionou-me muito, causou-me uma derradeira catarse, porque, e vale salientar isso, o ator estava excelente no papel do protagonista Jorge. Ao fim da peça, hei de pedir-lhe um autógrafo.
É uma lástima, mas toda a minha euforia se esvaecera quando percebi aquela enfastiada pessoa sentada ao meu lado. Notei que Esmeralda estava desconfortável em todos os sentidos. Talvez por nunca ter assistido a uma peça de teatro, talvez (o mais provável) por não está a entender o conteúdo da obra, pois o diretor fez questão de manter a fidelidade lingüística do romance. Não sei se foi uma estratégia tradutória intralingual, na qual a ideologia conservadora estava claramente presente. Que seja uma coisa ou outra, mas a fidelidade à obra foi mantida e não se sabe com isso se o diretor é conservador ou não.
Isso não muda o fato de Esmeralda está desconfortável e justamente na parte em que o Sr. Almeida – tutor e um grande amigo do pai de Jorge - alertara Jorge de que este estava completamente falido. “A vida elegante o atraía, a ociosidade o fascinava; o senhor lançava pela janela às mãos cheias o ouro que seu pai havia ajuntado real a real”. Os diálogos estavam excelentes, entretanto, eu não conseguia me concentrar com aquela tediosa pessoa ao meu lado. Uma impulsiva cólera apossou do meu corpo. Durante grande parte da peça tive ímpetos de estrangular aquela mulher até que ela perdesse a consciência, se é que ela tinha consciência de alguma coisa.
Minha zanga fazia com que o firmamento perdesse todas as suas estrelas, todas as suas cores e toda a sua face diáfana. Em lugar disso, um véu de emanação cinzenta cobria o que outrora fora um aprazível panorama. Aquela emoção turvava meu discernimento de tal forma que eu não sabia mais quem eu era. Estava em vias de cometer um ato aterrador.
Então, algo extraordinário impediu que eu tomasse uma atitude própria daquele momento. Esmeralda ergueu-se do assento e argumentou “Preciso tomar um pouco de ar. Com a tua licença”.
Fiquei muito aliviado com a sua atitude deveras apropriada naquela que havia de ser uma fatídica ocasião. A agitação que fulminava meu corpo desvaneceu-se na mesma da hora. Minha respiração voltara ao seu ritmo standard. Finalmente, podia-se ver o sol se erguendo altivamente no horizonte, com seus raios dourados, junto com uma aérea aragem que corteja a triunfante chegada da alvorada. O bálsamo sulfúreo deu lugar para uma fragrância do mais aromático perfume francês. A euforia teve seu retorno triunfal, uma mesa farta com fumo, aguardente, carne de porco, cerveja germânica, um bom vinho francês e um excelente uísque escocês, não necessariamente nesta desnecessária ordem. Meu espírito se transformou da água para o vinho, foi como se eu tivesse jogado fora todo aquele cálice que continha as mais amargas angústias existenciais.
Que alívio! Voltemos à peça. É uma pena que ela já esteja quase terminando. A pouco a pouco, Jorge quitou todas as suas dívidas, faltando apenas seis letras que estavam estrategicamente em poder de Sr.Almeida. “Se ainda há neste mundo felicidade para mim... é preciso que eu tenha reparado todos os meus erros; é preciso que eu me sinta purificado pela desgraça... aí está o mais nobre exemplo de honestidade... e também o mais belo testemunho de uma verdadeira amizade”.
Tal diálogo trouxe-me uma nova e relevante revelação. Tenho a plena certeza que aquela mulher repugnante tivera uma cartase contra a sua própria vontade. Inconscientemente, eu fui cruel com a minha “amiga”. Não é sempre que sou assim. Nunca é sempre.
Enganei-me ao ter subestimado a capacidade de abstração de Esmeralda. Ela havia compreendido até as vírgulas da peça, mas isso não quer dizer que ela resignou-se com aquela mensagem subliminar, a qual fez arfar seus imponentes bustos. Uma verdade bem dita causa uma ferida na alma de tal forma, que a única maneira de não aceitá-la é tomar uma atitude impotente como a de Esmeralda, ou seja, dá as costas para o espelho da verdade, ao reflexo do que nós somos, e não do que queremos ou poderíamos ser.
Por fim, Jorge expiou seus crimes de concupiscência, de ociosidade e de extravagância. Finito. Aplausos merecidos para os atores e o diretor. Autógrafos recebidos. Sai do teatro exultante.
Os lampejos da altiva lua alumiavam meu itinerário. As raras e suaves brisas daquele lugar arejavam meu rosto alvo e jovial. Não obstante, mais uma vez, minha felicidade fora transitória. Esmeralda estava a me esperar no carro. Orgulhosamente, eu não lhe disse uma palavra. Abri-lhe a porta para que ela entrasse. Notei, e ainda incrivelmente tive dúvidas quanto a isso, que aquele carro era algum tipo de status para aquele ínfimo ser. Confesso que ainda confuso estou eu com essa descoberta, era somente um carro novo, o que há de tão interessante nisso? A cólera atingiu seu ponto máximo da tolerância. Era imperioso que eu me livrasse daquele Walking Corpse.
Penosamente, ela argumentou a sua atitude de outrora “Não estava passando bem ali. Sentia-me sufocada”. Eu sabia disso e orgulhosamente nada lhe respondi, nem um mero aceno com a cabeça. A imagem límpida do céu desfez-se numa bruma maldita da hipocrisia.
Acelerei o carro. Minha percepção estava extremamente afetada pela aquela presença perversa. Rapidamente, chegamos à sua morada. Em meus pensamentos, eu clamava para que aquela estúpida saísse logo do carro, caso contrário, ela iria se sentir realmente sufocada.
“Adeus”. Somente essa palavra fora proferida de modo trêmulo por Esmeralda. Foi como se eu tivesse acordado dum amargo pesadelo. Duas perguntas aumentavam ainda mais a minha dúvida “O que fizeram com Esmeralda? O que Esmeralda fez consigo mesma?”.
Inesperadamente, uma lágrima é vertida por mim. Observei que minha “amiga” parou por uns segundos diante da porta da sua casa e, subitamente, ele se virou e cravou seus olhos nos meus. Dava para notar que eles também estavam anuviados de lágrimas e ela soluçava deveras e seus seios estavam anelantes. Ali estava a evidência de que, pela primeira vez, nossos sentimentos foram verdadeiros; foi como se tivéssemos esvaziado todo o cálice que continha a derradeira hipocrisia.
Abri a porta do carro e fui correndo ao seu encontro. Abraçamo-nos fortemente durante um período indefinido de tempo. Aquela cena foi um verdadeiro retorno à nossa frutífera infância, duma época medieval bem distante, uma era dos imaculados sorrisos, dos ilusórios sonhos sempre possíveis, o retorno à natureza, o retorno à essência do nosso ser.
“Porque nasci aqui para esta nova vida”. Essa foi a última frase da peça “A Viuvinha”, do excelente José de Alencar. Mesmo que a minha amiga não a tenha ouvido, ela finalmente compreendeu que nunca é tarde para recomeçar, nunca é tarde para expiar os crimes, sejam eles quais forem. O céu não há de ficar sempre nublado, pois a vida não é uma eterna nuvem sempre a lacrar os nossos sentimentos essenciais.
Nunca é tarde. Nunca é sempre.
Afinal, uma esmeralda nunca perde a sua cor verdejante, mesmo afundada num mar de lamas.