DESCOBERTA DA ROSA
Para Rosa Lins, in memoriam
Encontrei em ti o verdadeiro abrigo que eu buscava para as minhas noites de vento e chuva. Agora não preciso mais procurar na noite nem fazer perguntas ao vento.Tu sabes todas as respostas e as dá com um sorriso, um olhar, um movimento de olhos, de forma tal que nem precisa verbalizá-las. Agora posso ficar em casa nas noites de chuva, nos dias cinzentos, ganhando cor no rosto, músculos em volta do esqueleto, conforto na alma e segurança em todo o resto.
Hoje tenho banheiro que não é mais uma privada longe da casa. Ele é conjugado ao quarto de dormir e eu não preciso mais sair de casa para urinar, como fazia quando era menino. Meu quarto, com a tua presença nele foi devidamente exorcizado dos demônios zombeteiros que costumavam atormentar-me depois das minhas andanças noturnas. Sei que hoje estou a salvo dessa estranha moléstia que costumava me atingir nas noites de vento e chuva. Aprendi a controlar essa doença através de um regime de certeza, conforto e segurança que o ressonar do seu sono tranqüilo me traz.
Mas claro que sei que essa moléstia é incurável. Afinal, eu sou poeta. Quanto venta à tardinha e chove no começo da noite, aquela velha nostalgia bate à porta e eu atendo. Então eu vou para aquele nosso quartinho no fundo do quintal, onde a minha velha máquina de escrever está sempre a postos e muitas folhas em branco estão á espera, como se soubessem que mais cedo ou mais tarde serão utilizadas. Sento-me então no escuro e espero a visita daquele anjo torto cobrador, que uma vez foi invocado pelo poeta Drummond, e desde então passou a fazer parte da vida dos poetas.
O ANJO TORTO
Um dia desses o anjo torto
Gabriel dos poetas atormentados
Visitou a minha casa
E remexeu nos meus papéis.
Vinha cheio de oficialidade
Como advogado do diabo
Levantar-me o merecimento.
Era sóbrio o anjo torto,
Não fez perguntas nem falou.
Só puxou minhas gavetas
E seqüestrou os meus papéis.
Anotou alguma coisa
Na prancheta que trazia
Nas manoplas esgrouvinhadas.
No quintal olhou o céu
E fez algumas anotações,
Respirou fundo o anjo torto
E suspirou desconsolado.
Foi ao quartinho de despejo
Achou um esboço de poema
(Eis a prova definitiva?)
Só então olhou pra mim
Com um sorriso indecifrável
Pôs a prancheta num dos bolsos
E sumiu numa nuvem de fumaça.
Por isso te digo que não sarei. Tu mesma sabes disso. Notas que me levanto à noite quando o vento bate na janela. Não te aborrece o fato de eu ter que levantar-me da cama para atender às exigências do anjo torto do Drummond. Nem sentes ciúme da noite do vento e da chuva que amiúde me convidam para reviver aquelas antigas andanças pelas ruas da cidade amada. Até já te propusestes a experimentá-las comigo. Não te incomoda a intimidade que tenho com os espíritos da noite. Não procuras ser possessiva nem te importas que eles concorram contigo pela minha atenção. Sabes que seja quais forem os apelos que me fizerem e os prazeres que me ofertarem, eu sempre voltarei para o teu lado. Entendes que eles me fascinam, mas não têm as respostas que eu preciso, por estas estão todas contigo, no teu pensamento raso, povo e chão, que aprendeu e sintetizou todas as sabedorias necessárias para o viver em perfeito equilíbrio.
Tens a sabedoria da árvore e a determinação dos regatos. Sabes vergar a tempestade e contornar os obstáculos. Em caso nenhum atacas porque sabes que a resistência mais eficiente é a tolerância e a compreensão. Enquanto todos lutam e se ferem para galgar a montanha e sobreviver às intempéries, tu atravessas as tormentas sem ao menos despentear os cabelos. Por que o livro em que aprendestes foi o Sermão da Bemaventurança.
E é assim que me sinto cada vez mais calmo e mais irmão. É esta comida simples que fazes e o jeito especial de encontrar as coisas que eu nunca me lembro onde deixei. Quando me despedes com um beijo trivial pela manhã, sei que voltarei para receber outro beijo trivial à tarde, mas é a justamente a simplicidade desse comportamento que me faz sentir o mais amado dos homens.
Como é bom sentir que sou amado
Pelo prazer que demonstras quando chego,
Em nossa casa, à tarde, bem cansado
E encontro a mansidão deste aconchego.
O meu cansaço se esfuma nos teus braços,
E desaparece como um gato frente a um cão.
Se na rua amargurei alguns fracassos,
Junto a ti me recupero e sou campeão.
O meu mundo, do teu não pode ser separado,
São indistintos, como o fogo e sua chama.
Te amo como Basho amou a flor nazuna,
Na naturalidade daquele muro fendilhado.
“Yoku mireba, nazuna hana saku, kakine kana,(*)
Porque, sem ti, não posso ser coisa nenhuma.
Porque o que nos une é justamente o trivial. Fosse novidade, nós teríamos medo de entregar-nos um ao outro com tanta confiança. Não se ama o desconhecido porque ele sempre nos inspira desconfiança e temor. Nos amamos porque nos conhecemos e o verdadeiro amor é o amor do amigo, do cúmplice, daquele que é verdadeiramente próximo e confiável.
Ao terminar estas memórias, que escrevi com o objetivo de reunião e acerto entre as minhas partes, descobri-me ainda mais disperso. Mas já não preciso do vento para trazer-me as mensagens que cada uma delas me envia. Recebo-as pelos movimentos dos teus olhos, pelas posturas do teu corpo, pelos toques macios das tuas mãos e pelas poucas precisas e fundamentais palavras que dizes, e a fazer isso resumes toda a informação necessária para que eu, finalmente compreenda. Por isso este livro é também, e principalmente teu.
Com todo o meu amor.
DO LIVRO NOITE, VENTO E CHUVA, PUBLICADO PELA EDIGRAF, SÃO PAULO, 1986
Para Rosa Lins, in memoriam
Encontrei em ti o verdadeiro abrigo que eu buscava para as minhas noites de vento e chuva. Agora não preciso mais procurar na noite nem fazer perguntas ao vento.Tu sabes todas as respostas e as dá com um sorriso, um olhar, um movimento de olhos, de forma tal que nem precisa verbalizá-las. Agora posso ficar em casa nas noites de chuva, nos dias cinzentos, ganhando cor no rosto, músculos em volta do esqueleto, conforto na alma e segurança em todo o resto.
Hoje tenho banheiro que não é mais uma privada longe da casa. Ele é conjugado ao quarto de dormir e eu não preciso mais sair de casa para urinar, como fazia quando era menino. Meu quarto, com a tua presença nele foi devidamente exorcizado dos demônios zombeteiros que costumavam atormentar-me depois das minhas andanças noturnas. Sei que hoje estou a salvo dessa estranha moléstia que costumava me atingir nas noites de vento e chuva. Aprendi a controlar essa doença através de um regime de certeza, conforto e segurança que o ressonar do seu sono tranqüilo me traz.
Mas claro que sei que essa moléstia é incurável. Afinal, eu sou poeta. Quanto venta à tardinha e chove no começo da noite, aquela velha nostalgia bate à porta e eu atendo. Então eu vou para aquele nosso quartinho no fundo do quintal, onde a minha velha máquina de escrever está sempre a postos e muitas folhas em branco estão á espera, como se soubessem que mais cedo ou mais tarde serão utilizadas. Sento-me então no escuro e espero a visita daquele anjo torto cobrador, que uma vez foi invocado pelo poeta Drummond, e desde então passou a fazer parte da vida dos poetas.
O ANJO TORTO
Um dia desses o anjo torto
Gabriel dos poetas atormentados
Visitou a minha casa
E remexeu nos meus papéis.
Vinha cheio de oficialidade
Como advogado do diabo
Levantar-me o merecimento.
Era sóbrio o anjo torto,
Não fez perguntas nem falou.
Só puxou minhas gavetas
E seqüestrou os meus papéis.
Anotou alguma coisa
Na prancheta que trazia
Nas manoplas esgrouvinhadas.
No quintal olhou o céu
E fez algumas anotações,
Respirou fundo o anjo torto
E suspirou desconsolado.
Foi ao quartinho de despejo
Achou um esboço de poema
(Eis a prova definitiva?)
Só então olhou pra mim
Com um sorriso indecifrável
Pôs a prancheta num dos bolsos
E sumiu numa nuvem de fumaça.
Por isso te digo que não sarei. Tu mesma sabes disso. Notas que me levanto à noite quando o vento bate na janela. Não te aborrece o fato de eu ter que levantar-me da cama para atender às exigências do anjo torto do Drummond. Nem sentes ciúme da noite do vento e da chuva que amiúde me convidam para reviver aquelas antigas andanças pelas ruas da cidade amada. Até já te propusestes a experimentá-las comigo. Não te incomoda a intimidade que tenho com os espíritos da noite. Não procuras ser possessiva nem te importas que eles concorram contigo pela minha atenção. Sabes que seja quais forem os apelos que me fizerem e os prazeres que me ofertarem, eu sempre voltarei para o teu lado. Entendes que eles me fascinam, mas não têm as respostas que eu preciso, por estas estão todas contigo, no teu pensamento raso, povo e chão, que aprendeu e sintetizou todas as sabedorias necessárias para o viver em perfeito equilíbrio.
Tens a sabedoria da árvore e a determinação dos regatos. Sabes vergar a tempestade e contornar os obstáculos. Em caso nenhum atacas porque sabes que a resistência mais eficiente é a tolerância e a compreensão. Enquanto todos lutam e se ferem para galgar a montanha e sobreviver às intempéries, tu atravessas as tormentas sem ao menos despentear os cabelos. Por que o livro em que aprendestes foi o Sermão da Bemaventurança.
E é assim que me sinto cada vez mais calmo e mais irmão. É esta comida simples que fazes e o jeito especial de encontrar as coisas que eu nunca me lembro onde deixei. Quando me despedes com um beijo trivial pela manhã, sei que voltarei para receber outro beijo trivial à tarde, mas é a justamente a simplicidade desse comportamento que me faz sentir o mais amado dos homens.
Como é bom sentir que sou amado
Pelo prazer que demonstras quando chego,
Em nossa casa, à tarde, bem cansado
E encontro a mansidão deste aconchego.
O meu cansaço se esfuma nos teus braços,
E desaparece como um gato frente a um cão.
Se na rua amargurei alguns fracassos,
Junto a ti me recupero e sou campeão.
O meu mundo, do teu não pode ser separado,
São indistintos, como o fogo e sua chama.
Te amo como Basho amou a flor nazuna,
Na naturalidade daquele muro fendilhado.
“Yoku mireba, nazuna hana saku, kakine kana,(*)
Porque, sem ti, não posso ser coisa nenhuma.
Porque o que nos une é justamente o trivial. Fosse novidade, nós teríamos medo de entregar-nos um ao outro com tanta confiança. Não se ama o desconhecido porque ele sempre nos inspira desconfiança e temor. Nos amamos porque nos conhecemos e o verdadeiro amor é o amor do amigo, do cúmplice, daquele que é verdadeiramente próximo e confiável.
Ao terminar estas memórias, que escrevi com o objetivo de reunião e acerto entre as minhas partes, descobri-me ainda mais disperso. Mas já não preciso do vento para trazer-me as mensagens que cada uma delas me envia. Recebo-as pelos movimentos dos teus olhos, pelas posturas do teu corpo, pelos toques macios das tuas mãos e pelas poucas precisas e fundamentais palavras que dizes, e a fazer isso resumes toda a informação necessária para que eu, finalmente compreenda. Por isso este livro é também, e principalmente teu.
Com todo o meu amor.
DO LIVRO NOITE, VENTO E CHUVA, PUBLICADO PELA EDIGRAF, SÃO PAULO, 1986