O Reencontro

Conforme se aproximava da porta de vidro, menos enxergava. A silhueta do homem alto lhe era motivo de amargura, propiciava inclinação à ilusão. As feridas eram reabertas instintivamente, os pensamentos se confundiam entre as linhas do tempo, e a dor que gerava lágrimas era, aos poucos, esmagada pela ira ingênua.

Dentro da sala escura batia um coração ansioso. A situação pedia calma, mas a hipocrisia reinava na cautela. Não existiam motivos suficientes que sustentassem tal posição, embora a fraqueza do homem clamasse pelo conforto encontrado na arrogância. Ele repetia pra si um desejo fraco de perdão e esperava que ele ganhasse força assim que revisse o rosto dela.

Ela agora tremia. As lágrimas não puderam mais ser evitadas. Os passos foram endurecendo e, agressivos, puxaram uma horda de sensações repugnantes. Os olhos faiscaram então. A memória sensitiva fora ativada! – o constrangimento e o medo explodiram num berro contido e o corpo inteiro passou a responder ao calor do ódio. A mulher pôde planejar seu ataque baseado em verbalizar tudo o que fosse mais ofensivo, ditando todo mal que aquele homem cometera e se escondendo na sua carapuça de vítima.

O homem identificou a cor vermelha dos cabelos da mulher, mas se surpreendeu quanto à maneira como se apresentavam. Comparando com o que eram há vinte anos, os fios ruivos perderam a vida e os cachos. Ele se culpou pelo cabelo, enquanto se dirigiu a um espelho qualquer para relembrar suas feições. Não sabia exatamente o que mudara em sua aparência. Seu cabelo também foi notado, assumira tons cinzas; os ombros caíram e os olhos... Eles se tornaram inesperadamente indecifráveis! Eram de outra pessoa, de outro animal ou, ainda, de outra era. O momento se aproximava, ele sabia.

Ela parou em frente à porta de vidro, notando os passos contidos, mas não menos pomposos do homem do outro lado. O imenso corredor chegara ao fim e a porta de vidro fora aberta – as memórias se chocaram de frente!

- Entre. – tal convite não chegou a formular comunicação – Por favor, fique à vontade!

O segundo convite pouco inspirador do sujeito despencou no chão assim que foi feito. Não chegou a criar raízes, pois foi logo recolhido pelo ego do homem, que com um risinho sonso deu ares sarcásticos às palavras inseguras.

A mulher fez menção de responder, separando os lábios e afiando a língua, todavia o riso saliente a desestruturou. A boca fechou, os olhos abriram. Ela não tinha vantagem alguma naquele jogo contra o passado. Mesmo que ele figurasse claríssimo de cabelos grisalhos, não dava pistas do futuro: o olhar era de um estranho. Não lhe passava pela cabeça olhá-lo por dentro, porém contava com que a intimidade entre os dois revelasse a verdadeira identidade do outro, e que enfim a besta caísse aos pés da donzela.

- Bebe? – ele já voltara de sua inspeção ao balcão com uma garrafa de conhaque.

- Não.

O homem se serviu no próprio gargalo, numa afronta declarada. E ao término de uma longa golada, se restringiu a um simples pigarro refinado. Voltou ao balcão de bebidas e se viu estampado numa das garrafas. À principio não se encontrou no reflexo, mas à medida que cedeu à leveza do seu plano inicial, envergonhou-se do que era. Pedir perdão lhe custava mais que reconhecimentos fáceis.

- Acho que você ainda se lembra, não? – a mulher tomou a sala com seu tom de doce viúva – Lembra-se de quem eu sou, sim?

- Evidentemente. – ele.

- Então, qual é o motivo dessa encenação? – ela.

- Nenhum. – ele – Gostaria de pedir... hum... implorar sua compreensão.

- O “ hum” soou irônico. – ela – Não vejo motivo para tanto.

- Perdão. Não foi minha intenção. – ele.

- Nunca foi, certo? – ela.

- Aí você me pegou! – ele deixou escapar o espectro duma risada franca.

- Eu, sinceramente, não o entendo. O que você quer? – ela... momento vago – Está precisando de alguma coisa? Não... – o homem se virou de costas – Não hesite em pedir se for o caso.

- Não, não é isso! – ele – Isso é mais difícil do que você pensa. Eu não...

O homem fora interrompido pelo susto. Ela se colocou entre ele e suas divagações, o que, de fato, o fez tossir de maneira deselegante. Ele ajeitou o paletó, endireitou a gravata, franziu os lábios, cerrou os olhos, bateu os pés e, enfim, olhou nos olhos da mulher.

- Eu não quero te magoar. – ele.

Ela bufou e saiu de vista, passeando perdida pela sala de visita.

- Ei, é serio. – ele desviou os olhos e, como quem sente dor, prosseguiu: - Eu quero que você me perdoe.

Ele se achou incrivelmente homem por ter se utilizado do recipiente da coragem. A certeza previa a vitória.

- Perdoar o quê? – ela fora tomada pelo cômico da situação – Eu já nem sei mais... – as mãos foram à cintura num instante de reflexão – É isso?

- É – ele.

Ela fugiu da batalha quando ela ia atingindo seu ápice. Tudo era revelado pelos olhos. Cada passo dado pelo adversário era anunciado anteriormente por um olhar desconfiado, e ainda pouco, o homem fizera o imprevisto: baixara os olhos em reverência. As palavras ainda eram pretensiosas e nada sinceras, contudo a bandeira branca estirada a seguir fora inconcebível até nos mais desvairados sonhos da mulher. Ela recusou de bom grado aquela tentativa de reaproximação, evitando pensar demais nas opções ao redor.

- Eu... – ele não sabia o que dizer, nem o que querer.

Ela pegou sua bolsa na poltrona e quase correu para a porta, com as lágrimas forçando para sair.

- Eu te amo, você sabe. – ele, rouco.

Ela parou e os olhos vazaram.

- Eu preciso de você. – ele, nervoso; temeroso das palavras que atropelavam seus pensamentos lógicos.

Continuou:

- Precisei de vinte anos e alguns minutos para descobrir isso – suas mãos suavam deselegantemente. – Você, só você me conhece.

- Isso torna as coisas mais fáceis, não? – ela se virou com os olhos inchados e a maquiagem excessivamente borrada – Agora, o que eu posso dizer de você? Primeiro: eu não preciso de você, assim como não precisei todos esses anos. – a voz dela se manteve numa tétrica estabilidade – Você é arrogante! – ela balançou a cabeça em descrédito, embora as palavras secas fossem indevidamente reais – Você não gosta de ninguém a não ser de si mesmo.

Pausa!

- Sim, eu já te amei! Mas já foi, eu não ligo mais! – os braços da mulher foram esticados paralelamente ao teto – Estou exausta! E isso não vai dar em nada. – ela sussurrou: – Por favor, me deixe ir.

Soluços de ambas as partes.

- Eu não estou te impedindo. – o sorriso dele foi genuinamente charmoso. – O nosso amor está! – ele estendeu a mão em direção a ela – Fica.

Ela desabou. Os dois estavam no mesmo patamar. Não mantinham as máscaras. As lembranças desgostosas que os uniam foram destrinchadas por completo e, sem palavras, se entenderam e reconheceram. Caíram juntos, escaparam das ilusões, assassinaram o passado numa terrível parceria fatal e passional.

No fundo, ironicamente e por vinte sombrios segundos a sós em suas respectivas mentes, criaram um desejo qualquer de vingança. De repente, seria deleitosa a sensação de ter o coração do outro na mão e poder senti-lo bater bem devagar, contrariando as noções básicas. Ter poder sobre o sentimento alheio, sugar cada gota ínfima de sangue e celebrar a dor. Mas esses vinte segundos foram há vinte anos... E o desejo foi se perdendo... Hoje eles tentam reavivá-lo, estúpidos! Desgastes em vão.

- Por que? – ela – Você me magoou muito... Ainda dói muito... – ela pressionou a mão no peito – Você espera que eu simplesmente esqueça?

- Isso seria pedir muito? – ele.

Ela afirmou com a cabeça porque as palavras não tinham oxigênio suficiente para existir.

- Então, não há mais nada a dizer... – ele, livre.

- Não. – ela, livre.

Os dois não se olharam. De cabeças baixas, um de frente para o outro, permaneceram. Talvez, depois de alguns minutos, eles se abracem ou até se beijem. Podem continuar a conversa, e se confundirem quanto às sensações. Ela pode ir embora em paz, sem dizer nada. Ele pode correr atrás dela depois de refletir sobre o futuro, pode parar o trânsito das coisas e gritar seu amor em público, mais alto que si. Mas o que é certo, antes de qualquer outra coisa, é que eles se olhem. Daí em diante irá valer o que foi dito em silêncio, por duas crianças constrangidas pelo tempo.

J Jesse
Enviado por J Jesse em 07/04/2010
Reeditado em 02/10/2010
Código do texto: T2182950
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