(Des)virtuando o Roteiro
Mais um dia entediante, de um tempo nublado. O cheiro de terra molhada, naquele momento, não me motivava. A rotina de um dia assim fazia círculos. Maldição. Nenhuma ligação, nenhuma mensagem, nenhum estímulo. Até meus peixes estavam parados. Dizem que os animais refletem o estado de espírito dos homens. Não acreditava nisso. Até agora.
Minha cama já tinha o formato do meu corpo e, mesmo que me levantasse, lá estava o meu cheiro, o qual me prendia. Fiz um esforço, levantei. Morar sozinha tem dessas coisas e minhas férias nunca foram tão interessantes, como se pode perceber. O controle remoto me paquerava. Foi maior que eu, meu iogurte me levava até o som da TV. Não durou muito tempo. Entre uma colherada e outra, ele acabou e eu quem quase acabo com parte do meu passado.
Desastrada e preguiçosa. Minha mão derrubou o porta-retrato.
Nossa, pensei eu, quanto tempo não vejo essas pessoas. 7 anos se passaram. A nostalgia falou mais alto. Como o tempo passa sem sentirmos... Esse mesmo tempo estatizou minha turma da faculdade em uma imagem. Uma eternidade muda. Adoraria poder ouvir o “carpe diem”, da Sociedade dos Poetas Mortos, mas não. Havia sorrisos, sonhos e o peso da saudade.
Vamos lá, recordando o nome de cada uma das pessoas. Até que minha memória não é ruim, apesar das poeiras desse isolado objeto e do tempo. Como seria bom um reencontro. Como estariam todos? Espero que melhor que eu. Esse tempo é cruel ou nós fazemos a crueldade com o nosso tempo? Meu trabalho, minhas escolhas, minhas preferências fizeram do meu tempo um dia de semana nublado...
Depois de tanto resgatar imagens de minhas memórias, estava decidida. Iria resgatar meu passado. Essas pessoas, em especial. Lucro com quem aparecer. Sim, vou reentrar em um site de relacionamentos, o Orkut. Nem lembrava minha antiga senha. Bem, tudo novo de novo.
Meu usuário: Ana Cristina Albuquerque. NÃO! Para que tanta formalidade? Cris Kerque. Ou bem, ou mal, assim me chamavam no curso de Letras. Eu adorava. Pois bem, entrei em ação, virtualmente falando. Meus primeiros contatos? “Professora, Cris!!!”. Sorri. Até comunidade eu tinha. Pois é... A fama vem de onde menos se espera. Mas vamos lá!
Minha faculdade tinha 3.708 participantes? Nossa! Por essas microfotos ou “praque” fotos, vamos ver se eu me lembro. Amanda, Sandra, Adriano, Maria Cláudia, Edite, Patrícia, Eduardo, Jéssica, Érika, Carla, Marcela, Camila, Clemente... Alana? Nossa, como engordou! ... Gustavo pai? Quem diria... Daniel, Daniel, Daniel... O nome não me era estranho. Agora, essa foto é a morte! Como ele quer que nós o reconheçamos? Adicionei. Se colar, colou. Mirela? Está tão linda! Não mudou nada, uma boneca...
O brilho nos meus olhos voltou. Ocupei bem o meu dia. Até o sol deu o ar da graça. Dei uma pausa às minhas lembranças. Fui correr. Saí cantarolando, após pegar o fone de ouvido e meu celular. A rotina, ainda naquele dia, permaneceu a mesma. Sinto saudade das ruas de Recife. O Rio de janeiro é caloroso, mas nada como estar em casa. Parei no boteco de seu Ubiraci, tomei aquela água de coco e voltei. Nuvens de chuva começaram a se formar. Além disso, meu apartamento precisava de uma faxina muito maior que as poeiras do meu passado. Antes, paro em meu computador e, para minha surpresa, recadinhos e recadinhos. Fiquei tão feliz. Respondi a todos, até que me intrigo com o seguinte recado:“?????????”. Eu, indignada, respondi: “!!!!!!!!!!!!!”. David não estudou comigo, mas me lembrava perfeitamente dele. Ele, porém...
Tentei descrever-me mais. Ele, aparentemente, mostrou-se interessado em saber de mim, mas me senti invisível aos olhos dele. Conversamos. Recados e mais recados. Do mesmo jeito, fazia com outros amigos, os que me reconheciam. David realmente me inquietou. Talvez por pensar que minha pessoa não está, nem estava, com essa bola toda. Confesso: o ego não estava tão calibrado com esse esquecimento dele. Ele se lembrava de amigos meus, mas nada de mim. Frustração. Estava tão diferente assim? Peguei uma foto da época e me comparei no espelho (mulher é tão exagerada). Voltei. Conversa vai, conversa vem. Trocamos MSN. Dia 7 de janeiro de 2012.
[...]
Dia 23 de janeiro. Nossa amizade se solidificava. Eu ria. Achava estranho. Como podia sentir saudade de quem nem conhecia? Afinal, embora o visse muitas vezes, nos tempos da faculdade, falávamos pouco. Acho que ele, na época, nem sabia meu nome. Disse ele que sabia, mas não acreditei. Acho que não quis me frustrar. Mas ... A Cris de outros tempos não é exatamente a mesma. Topamos nos conhecer melhor. Meus dias de férias viraram as férias. Como era bom poder conversar com David, ou DVD, como, carinhosamente, preferia ser chamado. Com o tempo, de Cris, eu era linda. Adorava ler dele esse adjetivo.
Nossos papos não tinham sinal vermelho, avançávamos madrugada adentro sem dificuldade. Estávamos tão distantes e tão próximos. Trocamos telefone, mas nosso meio de comunicação era o MSN. Afinal, a chamada “Rio de Janeiro – Recife” não tinha o mesmo sabor no final do mês. Claro que o ouvia, às vezes. Acalentava imaginar o calor de sua voz em meus ouvidos. Sentia-me uma adolescente. Realmente, fazia tempo que não sentia algo tão bom por uma pessoa que concomitantemente estava ficando tão íntima. Sei lá... No fundo, nos conhecíamos. Essa é a minha impressão.
Isso, ao mesmo tempo, me apavorava. Tinha vontade, porém, de mais. E tivemos mais. Uma, duas, três, dez noites... . A câmera fazia milagres e os olhares, as amostragens, os sorrisos nos permitiam ser mais ousados. Era loucura. “Você confia em mim?”, perguntava-me DVD. Pela câmera, meu olhar confirmava a pergunta e, em milésimos de segundos, minha imaginação e meus desejos respondiam outro questionamento que constantemente me fazia: “quer ser minha?” ...
Era nosso segredinho. Nosso momento. Só nosso. Os limites entre o real e o virtual podem ser relativos, perto da nossa imaginação e das nossas palavras que oscilavam entre o conotativo e o denotativo.
Nem meus 28 anos, minha maturidade e minha formação acadêmica conseguiam descrever ou traduzir. Ele, enquanto artista das imagens e enquanto criador de almas, conseguia animar a minha vida. Porém, nem os 29 anos de experiência o faziam entender o porquê de tudo isso. Vivíamos. Uma coisa, porém, ele deixava bem claro: o nosso momento era nosso. Eu via as nuvens. Ele me permitia, era meu guia. Minha música oscilava com a dele, fundia-se, era a nossa música.
Tornei-me uma nova pessoa.
Minha rotina, no trabalho, abre as portas. Entro sem bater. Sinto-me empolgada e com o mesmo frio na barriga inicial. Turma nova, criar bons contatos, fortificar elos. Tudo, novamente. Faz parte. Sem perceber, eles (os elos) são criados, assim como foi com DVD. Meu DVD.
Onde nossa história nos levará? Não sei. O roteiro não depende só de mim. Esse enredo, afirmo, só está no começo.
Veridiana Rocha
25/01/10