A Mais Pura Forma de Amor - VIII
-Eu vi! Eu vi! Eu vi! –O pequeno espírito do vento cantarolava animadamente enquanto voava sem parar ao redor do Garou, volta e meia dando algumas piruetas pelo ar. Ele voava com grande graça e desenvoltura, fazendo com que as folhas ao redor se agitassem. –A Águia não quer saber o que eu vi? –Perguntou manhoso, quando finalmente deu-se conta que estava apenas sendo ignorado pelo lobisomem, o qual apenas andava por entre as árvores, abrindo caminho para que Carlo o seguisse. –Ah! De que adianta eu ver se eu não der a notícia!? Pergunta! Pergunta o que eu vi!
-Mas que saco! Se for para você para de encher, diz logo o que você viu! –O Garou perdeu a calma por um instante, chegando a espantar Carlo.
Mas como o vampiro já estava convivendo há algum tempo com aquele Theurge, começava a se acostumar a vê-lo conversando com espíritos como se fosse um louco falando sozinho.
-Eu vi a Águia e o vampiro debaixo de uma árvore... Se bei-jan-do... –Respondeu risonho, desviando-se em seguida da mão irritada que tentava espantá-lo.
-Vai amolar outro! –O lobisomem gritou, enquanto sua face ficava vermelha de vergonha, o que fez com que Carlo imaginasse qual era o tema daquela conversa e risse em conseqüência.
O vampiro não conseguia não achar aquele lobisomem uma graça. Ele era tímido, muito tímido, e por isso desde o beijo que haviam trocado na noite anterior, nenhuma palavra a respeito fora dada.
-Do que você está rindo? –O Garou perguntou mal-humorado, enquanto seguia na frente de Carlo, emaranhando-se por entre as árvores enquanto era seguido por Carlo.
-Nada, só acho engraçado você discutindo com o Unicórnio Invisível.
-Não era com ele, ele não fica falando bobagens...
-Que tipo de bobagem? –Perguntou maldoso.
-Ah... –Corou mais. -É só mais uma das brincadeiras do Vento...
-Ah, o espírito do vento, é?
-Sim, ele vive enchendo o saco...
-Então por que você não manda ele se catar?
-Bem que eu queria às vezes, mas não posso. Ele ajuda muito.
-Como?
-Geralmente é o Vento que me guia.
-Ah... –Carlo balbuciou, finalmente entendendo como aquele lobisomem conseguia ter tanta certeza acerca da direção que estava seguindo. –E para onde eles estão te guiando agora?
-Para uma cidade.
-Para uma cidade? –O vampiro perguntou surpreso.
-Para uma cidade. –Repetiu calmamente, enquanto afastava alguns galhos para que Carlo pudesse passar.
-Mas uma cidade mesmo? –Carlo permanecia incrédulo.
-Você não estava doido para ir para uma? –Perguntou, já começando a perder sua curta paciência. –Cuidado onde pisa. –Avisou.
-Sim, mas eu pensei que você não gostava de cidades.
-Não gosto, e presta atenção por onde pisa...
-E então?
-Então o que?
-Ah... Sei lá... Diz, que cidade que a gente tá indo? Não é para Dalton, é? Acho que Dalton é perto daqui...
-Não sei. O vento não sabe ler placas.
-Hum... Tomara que não seja Dalton... Odeio aquele fim de mundo... Meus avós moravam lá, e eu sempre tinha que ir pra lá nas férias de verão...
-Se for a cidade que você não gosta, é só passarmos o dia, e partirmos para uma que te agrade.
-Que tal Memphis ou Nashville? –O vampiro perguntou empolgado. -Sempre quis conhecer o Tennesee!
-Eu não gosto dessas cidades grandes... E preste atenção onde pisa...
-Ah, deixa de ser chato! Cidades grandes são as melhores! Muitas boates e outros lugares legais para ir de noite! Cidade pequena é um tédio! Acho que você vai... Ah! Merda! –O vampiro gritou em uma mistura entre dor e irritação. –Esse negócio prendeu minha perna!
-Eu disse para você prestar atenção onde pisava... –O lobisomem calmamente deu seu sermão, enquanto se agachava para ajudar o vampiro. –Francamente... Você é muito desatento... Como eu poderia deixar você ir sozinho se nem consegue andar sem engatar o pé numa raiz?
-Ah! Mas foi culpa dessa árvore idiota! Eu nunca tropecei numa calçada! Na cidade eu sei me virar muito bem, fique sabendo!
-Isso quer dizer que você não vai mais precisa de mim uma vez que cheguemos à cidade?
-Não é assim também...
-E como é, então? –Perguntou serenamente, enquanto tirava o pé de Carlo do tênis que se encontrava preso em meio a um monte de raízes embaraçadas. –Heim? –Insistiu na pergunta enquanto massageava com cuidado o pé do vampiro, internamente se divertindo com o silêncio constrangido dele.
-Eu não sei... –Respondeu com um muxoxo, vendo que a situação se invertera. Há pouco ele que provocava Águia, agora era o Garou que lhe deixava constrangido.
Águia sorriu, e em seguida beijou o delicado pé que estava em suas mãos.
-Você é muito fofo, Carlo... –Disse, tendo certeza que se Carlo ainda fosse um ser humano normal, coraria.
-Ah! Para de me provocar! –O vampiro resmungou, e logo se levantou, revoltadíssimo.
-Hei, toma teu tênis! –O Garou gritou para o vampiro que já começava a andar duro.
-Fica com ele! –Gritou fazendo birra, espantando algumas aves que dormiam lá perto.
-Hei, Carlo! –Chamou mais uma vez, dessa vez em tom mais grave, inspirando seriedade.
-Que é?
-A cidade é pro outro lado.
-Ah, vai te lascar! –Gritou, fazendo um gesto obsceno que Águia obviamente não conseguiria ver.
E os espíritos do vento se divertiram carregando a gostosa gargalhada que foi dada pelo Filho de Gaia.
***
-Esse lugar fede... –O Garou comentou com seu típico mal-humor, enquanto seguia andando ao lado da estrada com Carlo, já entrando em território urbano.
-Nem fede não, é só a fumacinha dos carros... Bem, tem aquela indústria química ali expelindo uma fumaça estranha, mas acho que não deve ser nada nocivo não.
-Que eu saiba, não faz mal para você, que não usa mais os pulmões.
-Ah, não fala assim... Isso magoa, cara... –Falou em tom levemente chateado. –Pelo menos aqui não tem árvores assassinas devoradoras de pés. –Provocou. –Calçadas! Calçadas são maravilhosas! E Dalton é tão pequena, não sei do que você tá reclamando!
-Se você diz... Ah, droga! –Resmungou de dor ao bater de frente com um poste. –Merda!
Carlo arregalou os olhos achando aquilo no mínimo estranho.
-Cara, você vive numa floresta e nunca bate numa árvore... Explica esse mico aí?
-O espírito do concreto não quer se mostrar... –Resmungou enquanto passava a mão pela testa, segurando a vontade de dar um soco naquele poste antipático. –As árvores são bem mais acessíveis...
-Você tá falando sério? –Perguntou enquanto se aproximava de Águia e o pegava pelo braço, a fim de guiá-lo.
-Nem o vento aqui se comporta direito... Acho que ele está intoxicado, não consegue seguir a direção certa... –Disse em um tom grave e desgastado, enquanto seus cabelos eram bagunçados pelo vento proveniente de um caminhão passando em alta velocidade ao lado deles. –Argh, odeio ser guiado... –Comentou, enquanto lentamente seguia os movimentos de Carlo.
O vampiro ficou um tempo em silêncio, pensando no quanto Águia estava se esforçando só atender a um desejo seu.
-Obrigada, cara... Você é muito bom... A melhor pessoa que eu já vi na vida, sabia?
Águia sorriu. Sentia-se mal, era fato. Mas estava fazendo aquilo por Carlo, e por isso seu esforço valia a pena.
-Você não é nada mal também... –Falou sem graça, já começando a corar um pouco.
-Você é uma graça mesmo, lobão... –Riu, pensando no quão estranha era aquela vergonha dando cor à face de um cara aparentemente tão másculo.
-Ah, não enche...
-Se os espíritos do vento não conseguem te encher o saco aqui, eu vou fazer o papel deles. –Falou rindo.
-Era só o que me faltava... –Respondeu já mais bem-humorado. -Para onde vamos?
-Você tem dinheiro?
-Não. Você tem?
-Nada. Vamos ter que arrumar uma grana para você comprar algo para comer, e um lugar para passar o dia...
-Faz tempo que eu não como hambúrguer... E eu acho que senti cheiro de esgoto vindo dali... Lá não entra sol, tenho certeza... –Provocou apostando para a direção de um bueiro, contendo o riso.
-Eu não vou dormir no esgoto! –Reclamou, enquanto olhava em volta com atenção. –Cara, fica aqui que eu vou descolar uma grana pra gente.
-Aonde você vai?
-Só espera aí...
-Carlo!
-Espera!
-Carlo!
Não houve resposta.
E pela primeira vez em algum tempo, Águia se sentia realmente desorientado.
Ele já havia morado numa cidade –havia nascido em uma, para dizer a verdade- mas era fato que ele tinha sérias dificuldades para ficar numa.
As buzinas, os barulhos indefiníveis, as vozes irritadas das pessoas... Os caminhos desconformes do vento e aquele maldito cheiro de poluição! Tudo aquilo impedia que seus tão aguçados instintos funcionassem como sempre funcionavam, deixando-o mais cego do que de costume.
E com sua total falta de capacidade, veio um grande desespero. Estava sozinho, em um local desconhecido e nem sabia como voltar para a floresta. Carlo não estava por perto, não podia sentir o cheiro dele, tão pouco sentir seu espírito.
Não estava sentindo quase nenhum espírito na verdade. Aquela cidade era um espaço pouco amistoso, e isso acabou por trazer a tona algumas desagradáveis lembranças de sua infância. Ele vivia em uma cidade parecida com aquela, pequena, mas com indústrias que o envenenavam e o impediam de se guiar pela natureza.
E como os seus ‘coleguinhas’ de escola nunca o ajudavam em nada que não fosse roubar sua bengala, seu pai adotivo viu que o pequeno Águia não conseguiria viver na cidade. Deu um jeito de se mudar com ele para uma cabana em um fim de mundo qualquer e então ensinou o jovem garou a se guiar pelos sons, cheiros e espíritos da floresta.
Na floresta, ele poderia andar em sua verdadeira forma, usar todos seus dons e viver livremente, sem ser julgado ou matratado por sua marca de nascimento.
Mas na cidade, ele estava apenas perdido.
Deu alguns passos, temeroso. Sabia que podia tropeçar, cair, bater em algo ou ser atropelado. Tentou novamente localizar Carlo, mas não obteve sucesso, e por isso amaldiçoou o vampiro por tê-lo deixado sozinho naquela situação. Deu mais dois passos, e sentiu sua mão alcançar algo sólido.
Uma parede, e um suspiro de alívio. Encostou suas costas nela e deixou seus joelhos se curvarem até que ele se sentasse no chão. Tinha que esperar por Carlo, ou então começar a pensar em como se viraria caso o vampiro simplesmente o tivesse abandonado.
Minutos se passaram, e Águia chegou a conclusão que sua cara devia estar muito mal, pois nesse meio tempo duas pessoas haviam lhe oferecido comida. E sabe como é que é... Gente oferecendo caridade gratuita é coisa rara. Estava prestes a aceitar a próxima ajuda oferecida quando o doce e familiar cheiro invadiu-lhe as narinas.
-Cara, você tá parecendo um mendigo sentado aí.
-Vai se foder.
-Credo, tá doido, é? Que agressividade é essa?
-Como você me deixa assim sozinho, droga?! –Águia gritou, chamando atenção dos pedestres que passavam pela calçada.
-Eu disse que eu ia arrumar grana e já voltava, porra!
-E saiu do nada, sem explicar nada, e me deixou parado no meio do nada! Não sei se você notou, mas eu não enxergo porra nenhuma, e eu to perdido nessa merda de cidade! Eu podia dar dois passos e morrer atropelado, você pensou nessa possibilidade?
-Deixa de fazer drama, merda! –Carlo também irritou-se, e gritou.
-Drama?! Porque não foi com você! Você tem noção do que é ficar sozinho num lugar que você não conhece?!
-Sim! Eu me perdi naquela porcaria de floresta onde você reina, esqueceu?
-E eu te ajudei! Eu te guiei! Agora é a sua vez de me guiar, e você me deixa sozinho! Mas que merda de olhos que Gaia me mandou! –Finalizou sua frase dando um potente soco na parede ao seu lado, chegando a ferir sua mão.
Carlo suspirou, buscando não ar, mas calma.
Ajoelhou-se ao lado do lobisomem, pegando a mão dele entre as suas. Levou-a até a boca e então beijou aquele machucado de forma carinhosa, não deixando de tomar um pouco do sangue que escorria por lá.
-Foi mal, cara... Não queria te deixar mal, eu só tinha visto uma forma bem fácil de conseguir dinheiro pra gente, e por isso sai apressado...
-Que forma era essa?
-Um bacana engravatado.
-Você o roubou?! –O Filho de Gaia exclamou surpreso, mais uma vez chamando a atenção dos que passavam.
-Ei! Fala baixo! E não, eu não roubei. Ele estava disposto a me dar o dinheiro se eu me deitasse com ele.
-E você fez isso?
-Claro que não, senão não teria voltado tão cedo, né?
-Então...?
-Eu o levei para um beco, tomei o sangue dele e peguei a grana, só.
-Isso é uma mistura de roubo com prostituição, algo mais vergonhoso ainda. –Águia deu seu sermão, incapaz de ver como a expressão de Carlo se tornara sombria depois que falara aquilo.
-Vergonhoso, é...? –Carlo perguntou baixo, levantando-se do lado do Garou. –Desculpa, mas eu só tenho esse jeito vergonhoso para te conseguir comida. Se você não pode conviver com isso, deixa que eu te levo de volta para o mato, e você nunca mais vai precisar de mim ou do meu dinheiro sujo.
Pelo tom magoado que o vampiro detinha, e pela aura infeliz dele, Águia notou que tinha falado algo que não devia.
Levantou-se, e com a mão direita buscou o ombro de Carlo. Definitivamente precisava que o vampiro o guiasse, e de fato fosse seus olhos.
Mãe Gaia parecia querer aquilo, pelo menos.
-Foi mal, Carlo... Não queria ofender...
-Que seja... –O vampiro respondeu ainda um pouco magoado, mas no fundo aliviado que Águia não havia decidido simplesmente voltar. –O que você quer comer?
-Qualquer coisa tá boa...
-Hum, se importa se a gente for comprar umas roupas antes? A gente tá igualzinho a dois mendigos.
-Bem, eu não tô nem vendo...
-Sei, sei... –Carlo respondeu já em tom mais ameno, já começando a andar, com a mão de Águia em seus ombros.
Agora ele estava de fato sendo os olhos daquele Garou, e aquilo lhe transmitia algo entre o receio e o orgulho.
Acima de tudo, sentia-se privilegiado.