A Mais Pura Forma de Amor - VII
À medida que a Lua, louca como apenas ela conseguiria ser, escondia-se lentamente atrás da sombra de sua irmã, as noites iam se tornando mais escuras e densas.
E os agora já tão escassos raios prateados pareciam transmitir a Carlo toda a loucura da qual eram formados.
E aquilo o preenchia de temor.
Uma grande inquietação tomava conta do seu corpo, e parecia que nada poderia contê-la. Aquela desagradável sensação vinha se arrastando por dias, e Carlo sabia o motivo dela, assim como conhecia a solução.
Mas o maior problema mesmo era saber que simplesmente não poderia colocar a solução em prática. Não tinha como.
Suspirou, tentando resignar-se; tentando suportar o excitante e enlouquecedor cheiro que se desprendia do pescoço de Águia, enquanto as batidas do coração do Garou e a pulsação das artérias dele pareciam prestes a deixá-lo surdo.
-Sua perna tá praticamente boa. –Falou de maneira gentil enquanto terminava apressadamente de trocar as faixas da perna do Garou. Tinha que se afastar dele, urgentemente.
O mais rápido possível.
-Tem algo errado, Carlo?
-Não, nada não... –Carlo deu um sorriso tão forçado que chegou a ser uma sorte o fato de Águia não enxergar. Ver um sorriso falso como aquele seria uma decepção para o Garou.
-Sua voz está abatida, e a sua aura está trêmula. –Águia disse seriamente, enquanto, mesmo sem ver, analisava o vampiro. –Não tente me enganar, Carlo... Eu não sou bobo.
-Eu sei que não, mas...
-Mas...?
-Águia... –Suspirou, buscando em seu interior a coragem que precisava. -Eu tenho que ir...
-Ir para onde?
-Ir embora.
-Por quê? –O Garou perguntou friamente, como quase sempre fazia. Tinha medo de demonstrar suas emoções, e tinha razões para tal.
-Eu não posso viver aqui, você sabe... Tá certo que dá para eu sobreviver bebendo o sangue de animais e tal... Mas cara, é ruim demais... Eu sinto que vou pirar se continuar assim... Eu preciso ir para uma cidade... Sério.
-É só pelo sangue?
-É um bom motivo... –Respondeu um pouco inseguro. Não sabia o que o Lobisomem pretendia com aquela pergunta.
-Mas é só pelo sangue mesmo?
-Aonde você quer chegar?
-Se for só pelo sangue, você pode tomar o meu... –Ofereceu em voz baixa, envergonhado. Como admitir que não queria que o vampiro fosse embora? Como admitir que estava disposto a dar seu sangue para que ele ficasse?
Desde quando Carlo havia conquistado um papel tão importante na sua vida? Desde quando aquele vampiro havia se tornado a luz em sua vida?
-Eu não poderia, Águia...
-Por que não? Meu sangue não é bom o bastante?
-Não, não é isso... Pelo contrário, ele é até melhor que o dos humanos... Mas... –O vampiro olhou para o chão. Mesmo sabendo que o outro não o encarava, não tinha coragem de olhar nos olhos dele. -É só que isso é tão estranho...
-O que é estranho?
-Eu... Ah, eu não sei... Não sei mesmo...
O silêncio que se fez em seguida quase que os sufocou. Ambos podiam se sentir espremidos por um grande e profundo desconforto, e uma tristeza ainda maior.
-Tudo bem... Pode ir... –O Garou deu permissão, já pensando no quanto sua vida ficaria escura... Mas se era o melhor para Carlo, não o prenderia. Não... Jamais poderia ser tão egoísta.
-É... Melhor mesmo eu ir, né? –O vampiro quis confirmar, internamente desejando que o lobisomem o abraçasse e o ordenasse para que ficasse.
Mas não foi o que aconteceu.
-É, melhor... Boa sorte lá em Las Vegas...
-Acho que não vou para Vegas não... Acho que uma cidade menor deve ser melhor...
-Seja como for, cuide-se.
-Pode deixar... Vou tentar não ser corrompido lá. –Sorriu tristonho.
-Você não vai ser. Você tem um espírito muito forte, Carlo.
-Só não tão forte quanto o teu, Águia... Até... –Despediu-se dele como se despedisse de sua própria alma.
-Até... –O lobisomem se despediu também, erguendo sua mão para que Carlo a apertasse.
As duas mãos se encostaram e se fecharam uma envolta da outra, firmes.
A cena por si só já poderia ser considerada incrível, apenas pelas particularidades daqueles inimigos naturais.
Mas o que a tornou ainda mais bela foi sua duração, intensidade e emoção.
Era como se aquelas mãos se recusassem a se soltar, pois se o fizessem, tudo ao redor desmoronaria. O tempo havia parado, mas os espíritos do vento voavam ao redor deles como se quisessem uni-los ainda mais. O grande Unicórnio Negro apenas assistia, dando sua silenciosa permissão àquele que era quase como um filho para si.
E por um breve instante, por um milésimo de segundo que mais parecera uma existência toda, os olhos cegos de Águia voltaram a enxergar.
Durante aquele mísero momento de iluminação, ele poderia ter visto tudo.
Todas as cores e belezas que jamais vira estavam à sua disposição, ansiosas para serem admiradas. Águia poderia pela primeira vez ter visto, e não apenas se conformar em só sentir, a beleza prateada da lua. Poderia ter visto as flores, as estrelas, as folhas, as aves... Tudo!
Mas ele não enxergou nada além dos olhos de Carlo. Aqueles olhos claros, de um verde quase amarelado.
Olhos belos e tristes, que pareciam prestes a derramar lágrimas de sangue.
Olhos que eram apenas seus.
O aperto de mão se desfez, e deu lugar a um abraço.
Um abraço apertado e possessivo, pois Carlo era seu.
O lobisomem envolveu com seus fortes braços o tão magro corpo daquele vampiro, pensando no quão frágil e indefeso ele era. Definitivamente não poderia permitir que Carlo saísse de perto de si. Era sua obrigação defender aquele corpo pequeno e frio, afinal, aquele corpo era seu. Aquelas mãos eram suas e aqueles olhos eram seus. Tudo naquele vampiro era propriedade sua, e havia sido a própria Mãe quem lhe dera esse presente, e por isso ninguém jamais teria o direito de tomá-lo de si.
Abraçou-o com ainda mais força, deixando claro que mesmo que Carlo quisesse, jamais poderia se separar dele. Fez com que seus corpos se colassem, de modo que ambos jamais desejassem se separar. Tinha que deixar aquilo bem claro para Carlo:
Ele era seu.
O vampiro pareceu compreender rapidamente o recado, e então, de repente, os lábios se uniram.
Havia sido iniciativa do vampiro, mas o Garou imediatamente acatou, e disso nasceu um beijo.
Um beijo completamente afoito e faminto, onde os lábios se abriam e fechavam, enquanto as línguas se entrelaçavam, ensandecidas em uma dança repleta de sensualidade. Um beijo necessitado e sangrento, com sabor de desejo e pecado, pois ao mesmo tempo em que acariciava os lábios de Águia com paixão, Carlo os mordia com ferocidade, buscando neles o sangue com a mesma necessidade que alguém que se afoga busca o ar.
Porque aquele sangue era tudo para si.
E porque naquele sangue estavam os lábios que há algum tempo o seduziam.
E porque naqueles lábios estava a alma do monstro que o salvara e o cativara.
E porque naquele monstro estava o único humano que já lhe dera carinho, e o único a quem ele se dignou a dar carinho também.
O único que já lhe fizera sentir-se realmente humano.
Aquele beijo prosseguiu, acalmando-se aos poucos, à medida que a realidade voltava a cercá-los e os dois davam-se conta do que faziam, e especialmente do que os levava a fazer aquilo.
O abraço de Águia, todavia, continuava apertado e possessivo.
E o beijo de Carlo seguia regado a sangue e volúpia, embora mais calmo e carinhoso.
Por mais feios e egoístas fossem os sentimentos envolvidos - a possessividade de Águia, e a luxúria pelo sangue que Carlo sentia - aquele beijo tornava-se puro por ser capaz de juntá-los e transformá-los em amor.
E naquela noite, a Mãe Gaia, a Irmã Lua, o Unicórnio Negro e todos os espíritos do bosque testemunharam o surgimento da mais pura forma de amor.