Manutenção
Foi um olhar de soslaio que a fez a quimera brotar na mente de Cristina. Ela quarenta e três anos, baixa, de corpo magro e até mesmo bem definido para sua idade, o cabelo comprido e não muito bem tratado dava-lhe um ar brejeiro, de pouco caso, mas para que se arrumar?
Possuía uma filha de dezenove anos. ‘Minha filha não é tão bonita quanto eu fui na idade dela’ pensava, logo em seguida um sentimento de culpa e autodesprezo tomava conta de seu coração e o sórdido pensamento era jogado no poço mais imundo de sua mente.
Mas na mesma mente a quimera tomava forma, corpo, e até nome, chamava-se Leandro, estudante do curso de letras, vinte e um anos configurando quase a metade da idade dela. O olhar de soslaio surgiu de relance. Havia incentivado o aluno a escrever um artigo sobre literatura e cinema, algo simples, porem ele havia superado todas as expectativas e o texto acabou sendo aprovado em um congresso. Deu os parabéns com um abraço efusivo de orgulho e felicidade. Leandro também havia sorrido e meio sem jeito, quase a contra gosto, correspondeu o abraço. Tomaram rumos diferentes no corredor e por um breve átimo de segundo em que Cristina virou-se para trás pôde perceber o aluno acompanhando-a com os olhos no que ela prontamente denominou: olhar de soslaio.
Passaram-se sete dias. E a quimera chamada Leandro continuava em sua mente. Sentia o coração palpitar ao lembrar do aluno naqueles breves momentos em que se via sozinha em casa. Em um desses momentos, aproveitou para despir-se frente ao espelho. ‘Sim, meu corpo ainda é belo’ dizia a si mesma. Erguia os braços e lembrava-se dos seios rijos e eretos de quando possuía seus dezenove anos. Costumeiramente vestia-se para o sacerdócio de ensinar de maneira sóbria. Calças mais largas, que não marcavam a silhueta, blusas fechadas que não enalteciam o colo e somava-se a isso o cabelo comprido e por verdade que seja dita: mal cuidado. Nesse exato dia ministraria aula para Leandro, o aluno dos olhos de soslaio. ‘E porque não usar algo diferente?’ pensou, escondendo o verdadeiro motivo de tal pensamento. Decidiu que vestiria uma calça jeans que ajustava-se ao seu corpo, delineando-o. Sua imagem no espelho, frente e costas, dizia que estava muito bem com aquela calça. Vestiu uma blusa discreta e foi trabalhar.
Romantismo no primeiro ano A, Crítica Literária no segundo ano B, as aulas passavam mornas como o labor dos trabalhadores que a muito trabalham na mesma profissão.
Entrou então na sala de Leandro. As maçãs do rosto enrubesceram e manteve-se forte para não encara-lo logo de começo. A aula sobre Simbolismo havia sido preparada com esmero e precisão rigorosa de um parnasiano. Escreveu no quadro negro com a palpitação acelerada e uma leve vergonha recalcada de imaginar que ele repararia em sua calça mais ousada. A cada palavra escrita na lousa, aguçava os ouvidos tentando captar algum comentário, mas nada estava solto no ar.
De início foi tomada por uma irritação. Enquanto todos os alunos da sala, que para ela eram só números na chamada, prestavam atenção Leandro persistia em conversar com a menina morena que sentava na sua frente. Os dois conversavam de maneira respeitosa, como todo aluno semicomportado sabe fazer, baixo e nos ouvidos um do outro e era justamente isso que a irritava. A proximidade dos dois, o risinho feliz e jovial daquela moreninha de cabelos alisados e maquiagem no rosto. Ao fim da aula a irritação transformou-se em tristeza e melancólica ela voltou para casa onde encontrou o marido e a filha com sorrisos insípidos e diálogos convencionais. A quimera havia morrido.
Como a fênix, veio a renascer na noite do outro dia, sexta feira. Foi trabalhar com as mesmas roupas, sóbrias e insípidas, tão insípidas quanto sua família. Terminada a última aula saiu pelos corredores quando esbarrou com Leandro:
- Oi professora. – o sorriso de Leandro era cordial e feliz, uma felicidade que fazia Cristina sofrer.
- Oi Leandro. Tudo bom? – sem notar já havia tocado o braço dele.
- Tudo professora. Estou com um novo artigo em mente. A senhora poderia me ajudar? – ‘um típico pedido de aluno. Nada de mais sua idiota.’
- Claro. Ajudo com todo prazer. – respondeu Cristina, dando indícios corporais de que iria continuar sua caminhada pelo corredor.
- Muito obrigado professora! A Senhora é um anjo! – Cristina sorri Leandro continua:
- Olha só, vamos tomar umas geladas no barzinho aqui próximo da faculdade, o professor de gramática também vai. Por que a senhora não vai também? Vai ser legal!
- Vou mandar uns e-mails para o pessoal do CNPQ e dou uma passada lá. – respondeu Cristina.
Infelizmente ambos sabiam que ela não iria comparecer. No carro Cristina ponderava ‘como essas amarras sociais são contritantes.’
Deu-se então no final de semana posterior a essa sexta feira uma reviravolta na configuração estética de Cristina. E na segunda feira apresentou-se na faculdade com uma nova aparência: calça justa no corpo ainda bem constituído, blusa que desenhava seu corpo e não sendo vulgar ostentava o belo colo, e por fim um cabelo cortado curto, próximo ao estilo Chanel que realçava o doce sorriso e os olhos claros e profundos.
Inúmeros elogios foram tecidos por colegas de trabalho e alunos, mas fora as seis palavras ditas por Leandro que fizeram ela sentir-se bonita novamente:
- A senhora está bonita hoje professora.
Cristina deu aula por mais dois anos para Leandro. Estava na banca de monografia dele. Foi a professora convidada nas teses de mestrado e doutorado do mesmo, mas ele nunca soube que ele para ela foi mais importante que ela para ele pois somente com o poder da quimera criada por um simples olhar de soslaio ouve a manutenção da beleza de uma mulher.