O MEDO DA SAUDADE

     Marcela estava há pelo menos uma hora parada ali, olhando para a sua cômoda. Chegou da faculdade e sentou-se para tirar as sandálias de couro que já destruíam seu calcanhar. Tivera um dia cansativo no trabalho e depois um dia de apresentações de trabalho na faculdade. Apresentar trabalho lhe estressava. Primeiro porque alguns não faziam suas partes para apresentá-las, e segundo porque ela era realmente muito tímida e falar na frente das pessoas era quase uma tortura.
     Ao se sentar para tirar as sandálias, ela pensou em Luciano. Pensou que mesmo distante e mesmo não o tendo visto nos últimos quatro dias, ele ainda era seu namorado. Engraçado. No início do namoro os dois passavam a maior parte do tempo juntos. Era engraçado que bastou ela começar uma ocupação que logo ele foi se afastando, parecendo perder espaço em sua vida.
     Rapidamente ela jogou seus cabelos para trás e parou seus olhos agora em uma foto perto de seu monitor do computador. Na extremidade esquerda da tela havia um retrato dela com um rapaz moreno muito bonito e de sorriso sincero grudado ali por um imã em forma de coração. Era Luciano. Sorriu até que sua expressão foi mudando para a de choro. Levantou-se e foi até a tela. Ligou o monitor apertando o botão cercado por uma luz azul muito intensa e o que surgiu na tela foi uma versão maior da foto, como papel de parede.
Sentou-se na cadeira de palha. Afundou-se nela. E permaneceu olhando para a tela. Seus pensamentos voavam. Pensamentos, dúvidas e um monte de idéias se cruzavam dentro de sua cabeça. Ela não estava se sentindo bem com toda aquela situação. Muitos não entenderiam. Muitos os viam como um belo casal. Mas não se pode falar quando estamos de fora.
     Marcela estava triste porque o namoro dela já não a estava satisfazendo. Ela queria poder se dedicar aos estudos, aos amigos, e até mesmo ao seu trabalho. E sentia que no meio de tantas obrigações, seu namorado, seu querido namorado, estava ficando de lado. E isso estava a corroendo por dentro.
     Queria dar um fim no namoro, mas sem magoá-lo. Queria sair da relação com o mesmo olhar que ele lhe lançara quando estavam juntos,não queria que ele a odiasse ao fim. Queria que aquele olhar continuasse. Era algo inédito na vida dela. Ela nunca se sentira tão valorizada. Nunca ninguém viveu tanto em sua função como ele vivia. Era linda a maneira como ele se dirigia a ela. Sempre perguntando sobre seu dia, sempre perguntando se ela estava bem mesmo quando tudo parecia ótimo. Outras o achariam um chato. Ela o achava lindo. E seu maior medo. Seu maior medo em desistir daquela relação era morrer de saudade daquele rapaz.
     Mas eles quase não se viam. E quando ele a ligava durante a tarde, ela nunca podia atender. Sempre tinha que desligar o celular, e guardá-lo na bolsa. E depois, mais a noite, quando ele tornava a ligar, ela não podia atender porque estava em aula. E acima de tudo, Marcela sempre fora extremamente dedicada aos estudos. Não sairia de sala de aula para atender a um telefonema. Era para isso que existiam os torpedos, para dar uma prévia do que a pessoa queria falar em ligação.
     Voltou a si. Ainda estava sentada na cadeira, de frente para o computador e olhando fixamente para o retrato no monitor. Estava tão entretida em pensamentos que nem se quer reparou que estava destruindo sua cômoda com seu prendedor de cabelos. Havia raspado todo o verniz de uma parte da mesinha com desenhos de corações e estrelas. Adorava estrelas. E ao ver aquelas estrelas desenhadas ela se jogou na cama e estendeu a mão para apagar a luz do quarto, no interruptor de luz que estava a poucos centímetros dali. Quando enfim conseguiu, dezenas de estrelas amarelas surgiram no quarto. Nas paredes, no teto, e até sobre as portas de seu guarda-roupa. Dezenas de estrelas e planetas cintilavam no quarto sob a luz da lua. Foi um presente que ele lhe dera no primeiro mês de namoro. Adesivos fosforescentes que quando contra a luz emitiam uma luz própria linda e davam a impressão de estarmos diante do universo.
     Marcela se pegou maravilhada. Fazia tempo que não reparava nas suas paredes e nem naquele céu que antigamente a acalmava. Quando triste ou irritada com seus pais, ela se trancava no quarto e esperava a noite chegar. Se já fosse noite, simplesmente desligava as luzes e ingressava naquele mundo estelar, imaginando a tranqüilidade do espaço. Colocando naquele mundo particular e silencioso todos seus problemas, todas suas preocupações, e todas suas incertezas.
     O problema era que Luciano de repente começou a fazer parte daquele mundo. De repente ele começou a ser uma incerteza. Ela sabia que gostava dele. Muito. Mas sabia também que ele estava se tornando dispensável. Depois de oito meses Luciano se tornara uma incerteza. E seu medo era que visse tarde demais que aquele que ela julgou indispensável, era na verdade, uma parte, um pedaço essencial em sua vida.
     Continuou olhando. Continuou encarando o céu artificial. O teto parecia se mover com tantas estrelas. Ela virou a cabeça para o monitor e fitou novamente a foto. A dúvida de seguir ou não seguir começava a lhe sufocar. Conversando com uma de suas amigas, dias antes, ela lhe aconselhou respirar fundo e falar tudo que estava entalado. Como se fosse fácil. Como se depois que virasse as costas tudo ficaria bem, tudo ficaria tranqüilo. Ele e nem ela sofreriam com a saudade. Que eles seguiriam suas vidas separadas e felizes como se nunca tivessem tido todos aqueles momentos maravilhosos. Não era tão fácil. Ela tinha um medo horrível da saudade. Ela sabia o que era sentir saudade.
     E naquele momento, saudade era o que Luciano sentia. Uma saudade imensa e que lhe estava deixando insano. Sua cabeça borbulhava. Tinha quase certeza de que havia outro rapaz na história. Que havia outro cara que com certeza lhe dera mais estrelas do que um dia ele prometeu. Estava decidido a terminar tudo antes que houvesse uma tragédia sentimental. Antes que descobrisse o pior.
     Foi até a casa de sua namorada. Estranhou o fato de as luzes do quarto estarem apagadas àquela hora. Sabia que Marcela costumava dormir tarde. E era cedo. Resolveu gritar por seu nome. Chamou por três vezes.
     Lá dentro, Marcela deu um salto da cama. Era como se seus pensamentos se materializassem. Dizem que quando pensamos com muita intensidade em algo ou alguma pessoa, ela simplesmente aparece. E parecia que aquilo acontecia naquele momento.
     Ela arrumou o quarto, escondeu as sandálias e foi até a porta. Parou um pouco antes. Observou a silhueta de seu namorado no vidro fumê da porta. Respirou fundo. Pensou ser o momento de falar tudo que lhe estava sufocando. Aproximou-se letamente da porta. Parou para olhar no espelho. Mexeu em seus cabelos tentando os organizar. Mesmo que fosse um momento decisivo e que não exigisse trajes de gala, não queria estar feia diante de seu namorado. Ele ainda era seu namorado. Pensou em como seria mais fácil se ele terminasse com ela.
     Abriu a porta.
     -Marcela, precisamos conversar. - disse ele apoiando-se no umbral da porta.
     Ela apontou para dentro. Ele a acompanhou. Sentaram-se cada um em um sofá. Ela no sofá alaranjado, de onde assistiram tantos filmes no DVD da sala. E ele no verde-musgo, um pouco maior, e aonde ele dormira tantas vezes até o meio da madrugada quando, silenciosamente, ele se enfurnava no meio das cobertas dela até um pouco antes do amanhecer e de seus sogros acordarem.
     -Não creio que nosso namoro seja uma boa idéia... -começou ele.
     Enquanto Luciano falava. Marcela apenas o observa. Olha dentro de seus olhos e acha incrível o modo como suas pupilas dilatavam. Poucas palavras ela faz entender. Poucas palavras entram em sua cabeça e são processadas. Ouviu algo como “Não estou feliz.” Seguido por “Não creio que você esteja satisfeita.”. Apenas o observava. Sua voz se fazia de trilha sonora para as lembranças que emergia de sua caixa de lembranças. Dentro de sua mente, havia com certeza uma gaveta com a letra L aonde guardou durante aqueles poucos meses tudo o que viveram.
     Foi então que ele se levantou do sofá com os olhos marejados.
     -Eu te amo muito. E sei que não vou te esquecer tão cedo. Mas precisamos terminar. -disse ele indo em direção à porta.
     Ela quis sorrir. Sentiu um estranho prazer e alívio ao ouvir e reparar que Luciano estava terminando tudo. Precisava usar mais a força de seus pensamentos. Eles pareciam realmente se tornarem realidades. Não conseguia sair do sofá. O observou se afastar de longe. Passar pela porta e fechá-la cuidadosamente como sempre fizera. Tinha medo de quebrar a porta de vidro e a tratava como se de cristal fosse.
     Continuou sentada se afogando em lembranças. Suas amigas já haviam lhe aconselhado também a dar motivos para que ele terminasse primeiro. Coisas como perturbá-lo com discussões bobas, reclamações insistentes e um monte de outras asneiras. Mas Luciano não merecia aquilo e ela sabia. Ele a compreendia. E sabia que ela estava triste. Sabia que ela não estava satisfeita. E por amá-la, resolveu a deixar seguir livre.
     Marcela voltou para o quarto e sentou-se novamente de frente para o computador. Desprendeu a foto do monitor e colocou-a debaixo de seu travesseiro. Apagou as luzes e ficou ali esperando o sono chegar. O que ela mais temia começava a acontecer. Fazia alguns minutos que ele se fora de sua vida. Fazia quase nove meses que ele entrara e a marcara para sempre. Sentia-se mal por não ter ao menos dito o quanto ele fora especial. Fazia um segundo que ela já estava sofrendo por saudade. E se perguntou porque ao invés de excluirmos alguém de nossa vida, porque simplesmente não à sincronizamos junto à ela?
     Do lado de fora, Luciano sentia-se mal. Triste e cansado. Mas a vida era assim e ele sabia. No fim dos relacionamentos alguém tem que sair ferido. E mesmo sofrendo, mesmo sabendo que ela poderia nunca mais o deixar voltar. Ele se apegaria nas lembranças dos momentos que tivera com ela. E se apegaria até mesmo no sentimento cruel que essas lembranças trariam: a saudade.
 
 
 
                                               Fim
 
Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 08/03/2010
Reeditado em 05/01/2011
Código do texto: T2127848
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