O gosto do desejo

Depois de andar por muito tempo a esmo olhando para o mar, entendi que a minha alma não me pertence. Ela me transcende, me transborda, me abandona. Sou tão limitada frente a tantas coisas que eu não conheço, sou tão incapaz de ser, tão pequena para um sentimento tão continental. Se feliz, a alegria se manifesta na mesmice dos sorrisos irremediáveis, no olhar anormalmente contagiante, e transborda nas palavras confusas. Se triste, a face talvez não mude, mas muda o impasse em que constantemente estamos e novamente em palavras transborda, porém dessa vez em palavras definidas, certas e certamente erradas.

Mas vamos aos fatos que me levaram a tal devaneio. O sol singelo das oito da manhã entrava timidamente pela janela e tocava-nos causando uma leve sensação de acolhimento. As mãos tímidas traçavam na sua agenda com a caligrafia perfeita e levemente inclinada. Em um minuto a capa da agenda batia na mesa a minha frente causando um estalido que me fez saltar e sair do estado de transe em que estava.

Olhei para os olhos acobreados que pareciam arder sem um motivo específico. Percebi por entre os dedos o papel destacado que veio em minha direção, o peguei e li o endereço e a indicação abaixo. Sem mais palavras, me levantei e caminhei até a porta em silêncio antes de sair espiei mais uma vez e fui surpreendida por um meio sorriso às minhas costas me deliciei com os olhos de Apolo e saí da sala em silêncio o deixando em meio a muitas repartições.

“Rua Antônio Carlos,550 – 17 horas. Eu deveria ir buscar um livro, então obedeci o comando e saí de casa enquanto o sol se punha ao horizonte tocando o mar e se apagando levemente nas ondas. Cheguei ao endereço e ele estava sentado na varanda me esperando. Pela primeira vez vi seu rosto sorrindo em plenitude, me aproximei com certo receio, um homem de poucas palavras. Me estendeu o livro “Poemas de Pablo Neruda” escritos em itálico na capa branca. Sentei ao pé da escada e abri cuidadosamente o livro.

Coração dispara ao ver as letras que compõe a dedicatória do livro. “Um grande livro para uma pequena grande menina”. Ele sabia que eu amava Neruda, talvez eu não soubesse, mas ele me amava. Só consegui agradecer, a voz rouca e receosa. Então ele tocou minha mão, e se aproximou de mim e seus lábios dos meus, e beijou-me receoso. Eu lutava contra o sentimento em mim, ele era impossível. Então me fui, ele não me deteve. Levei comigo o livro dos seus sentimentos e o gosto do seu beijo, que ardia como os seus olhos ao pôr do sol.

E então voltamos ao início desse conto, a minha caminhada, a minha pequenez que não me deixou esquecer os cinco anos de diferença que nos separava, e o impasse que não me deixa escolher entre a felicidade e a tristeza. As palavras, eu tenho certeza expressam algo claro... E por conseqüência certamente errado. Qual seria o sentimento então? Eu o amo, isso é fato

Sah
Enviado por Sah em 22/02/2010
Reeditado em 22/02/2010
Código do texto: T2100465
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