Coração de cadela

Bob era um cachorro de rua. Um vira-lata, para usar o termo correto. Nascido em Porto Alegre, mistura de Fox paulistinha com qualquer outra coisa. Perdera a mãe ainda filhote e não conheceu o pai. Nunca foi ao veterinário, tomou vacina ou foi desverminado. Mas tem aquela imunidade perfeita que só os cães criados nas ruas têm. Se uma peste assolar a vizinhança todos os cachorros de madame com certeza morrerão, mas Bob continuará ileso. É um sobrevivente.

Criou-se no cais do porto, comendo comida no lixo e disputando espaço com os cachorros maiores. Normalmente conseguia lograr os brutamontes, pois era muito rápido, mas também levou várias surras e quase morreu. Assim aprendeu quando era hora de ser valente ou simplesmente dar no pé. Também era muito cadelengo. Desconfia que tenha vários herdeiros espalhados pela cidade.

Não tivera nome até conhecer sua nova família. Foi na época em que, cansado da vida agitada do centro da cidade, resolveu tentar a sorte nos subúrbios. Acabou chegando à casa de seu Manuel e de dona Maria, dois lusitanos de bom coração, mas de raciocínio um tanto quanto lento. Seu Manuel é dono de um açougue. No dia em que chegou a casa da família a pequena Mariazinha, filha mais nova do casal, estava brincando em frente ao portão e o viu. Foi amor a primeira vista. Chamou Bob e ele, com todo o descaramento de um bom vira-lata, veio sem se fazer de rogado. Depois a menina entrou no açougue e perguntou para o pai se podia ficar com um cachorrinho bonito que havia aparecido. Seu Manuel, que não nega nada a menina, acabou concordando. Então ela levou alguns miúdos que seu Manuel ia descartar para ele. Bob ficou encantado. Tinha encontrado o paraíso na terra. A felicidade dos simples. Resolveu ficar morando lá.

Assim começou o período mais feliz da sua vida. A família gosta dele e ele adora a pequena Maria. Ela é tão inteligente que às vezes Bob pensa que a menina é filha adotiva do casal de portugueses. Há também o jovem Antônio, o filho mais velho. Um bom rapaz, apesar de às vezes tentar sacanear Bob chamando-o de Marley. Bob rosna irritado. Não gosta de reggae. Como um bom cão criado nas ruas prefere o hip hop.

No verão é uma festa. Os miúdos não se mantêm frescos por muito tempo e assim ele está sempre gordo e de pelo lustroso. Em troca vigia com fidelidade canina o açougue de seu Manuel. Duas vezes já o alertou quanto à presença de vagabundos que iriam assaltar seu estabelecimento. Seu Manuel dava uns tiros para cima e tudo se resolvia. Nesses dias recompensava Bob com algo mais saboroso, como um pedaço de carne ou um coração.

A felicidade de Bob durou até o dia em que ele resolveu dar uma chegada nos bairro de classe alta que fica próximo a rua onde seu Manuel mora. Ele ainda continua dando seus passeios pela cidade, apesar de agora ter o seu próprio lar. E já andava meio entediado, precisando de ares novos.

Acaba encontrando Hamlet, um Pug que estava passando por maus lençóis, encurralado entre o portão de sua casa e Bóris, um rottweiler com cara de poucos amigos. Bob, sem pensar duas vezes, acaba dando uma mordida na pata do grandalhão e assim faz com que ele saia correndo atrás dele. O conduz numa perseguição pelo bairro e acaba despistando-o, pois Bóris é tão grande quanto estúpido. Enquanto isso Hamlet se safa, conseguindo entrar no quintal.

Após se livrar de Bóris ele volta para ver se tudo vai bem com o Pug. Hamlet está muito agradecido. Não é um cachorro violento e Bóris não consegue ver ninguém em paz sem provocar. Os dois conversam pelo resto da tarde e acabam ficando amigos. Bob promete voltar com alguns miúdos quando vier visitá-lo de novo. Hamlet suspira. Nada como um bom pedaço de fígado ou rim pra quem só é acostumado a comer a ração de cachorro mais insossa do mundo. Depois disso as visitas de Bob a Hamlet se tornam uma rotina.

Na última visita há uma novidade. Uma nova família se mudou para a rua de Hamlet e uma cadelinha Yorkshire está virando a cabeça de todos os machos do bairro. Cindy é um xuxu, comenta Hamlet, excitado. Bob pergunta se ele já chegou junto. Sabe que o amigo é muito sensível aos requebrados de uma bela fêmea.

- Tá louco? A Ofélia me mata, diz Hamlet olhando assustado para os lados.

Bob compreende. Ofélia é a esposa de Hamlet. É uma Pug também e, como toda fêmea, extremamente possessiva e temperamental. Bob se despede e resolve dar uma olhada em Cindy. Ficou impressionado com a descrição feita pelo amigo. Não custa nada dar uma conferida no focinho de uma cachorrinha bonita, não é?

Quando Bob chega à casa indicada pelo amigo ele fica encantado. Cindy não é só um focinho bonito. Ela é coisa mais linda que ele já viu na vida. Com seu longo pelo preto azulado e dourado e suas fitas amarelas na cabeça. Não é a toa que lhe botaram o nome de Cindy, pensa. Ela é uma princesa. Bob lhe da um oi e ela responde com um ar um pouco desconfiado. Uma garota difícil, conclui Bob. Mas isso não é problema para ele. Adora desafios e não gosta de fêmeas fáceis. Resolve ir embora e voltar outro dia trazendo-lhe um presente. Já está completamente apaixonado. Caído de quatro por ela.

Volta no fim de semana com um osso carnudo. Ela aceita o presente com gosto e eles conversam mais a vontade pela primeira vez. Bob vai embora tarde da noite, prometendo trazer algo melhor. E assim os presentes se sucedem. Um rim aqui. Um pedaço de fígado ali. Um dia Bob consegue um coração, que seu Manuel acha que já não presta. Mas o faro de Bob é muito melhor. É o presente perfeito. Ele entregará seu coração para Cindy.

Não me perguntem como ele consegue atravessar o bairro com um coração enorme, despistando todos os cães maiores. O amor tem dessas coisas, não é mesmo? Cindy adora o presente de Bob e nesse dia eles trocam as primeiras lambidas. Bob volta para casa uivando de felicidade. Eles começam um romance e ele vai visitá-la com freqüência.

O tempo passa depressa e Cindy anuncia que seu próximo cio ocorrerá em breve. Bob está muito ansioso. Sonha com o momento desde que viu Cindy pela primeira vez. Ele planeja uma noite romântica. Quer levar Cindy para assistir o pôr-do-sol no cais do porto. Será uma noite de amor perfeita, pensa Bob. Quando o grande dia chega Bob acaba entrando no tanque de lavar roupas de dona Maria. Ela não entende nada. Então ele pega a barra de sabão entre os dentes.

- Ora pois, será que Bob quer comer o sabão?

Bob solta um ganido, desanimado. Mariazinha acaba vindo em seu socorro. Será que mamãe não vê que Bob quer tomar um banho?

- Oh raios, Bob nunca foi desses luxos.

É o amor, pensa Bob, enquanto a garota o esfrega. O amor muda a cabeça de qualquer macho. Ele sai então em busca de Cindy. Nesse dia lhe leva uma língua. Um presente sugestivo, ele pensa enquanto dá um rosnado maroto.

Passa pela frente da casa de Hamlet e o amigo o chama. Está com uma cara assustada e pede que Bob espere um pouco. Mas ele está com muita pressa. Quer ver Cindy logo e ainda tem que dar um jeito de abrir o portão. Hamlet se despede dele, com desânimo.

Ao chegar à casa de Cindy vê que ela está acompanhada por um jovem Yorkshire de pelo brilhante e gravata borboleta ao pescoço. Deve ser algum parente, pensa Bob. Aproxima-se de Cindy e cumprimenta o outro cachorro. E a chama para sair.

Então Cindy apresenta o York como sendo o seu novo namorado. Bob fica arrasado. Mas e ele? E o amor que ela jurara? E as noites que ele esperara na rua enquanto ela não vinha para a última volta pelo pátio, antes de dormir? Isso não significava nada?

O caso deles fora apenas uma aventura passageira, fala Cindy. Uma paixonite da juventude. Mas ela ama Albert de verdade. Eles formarão uma família. È melhor que Bob a esqueça.

Mas esquecer como, pergunta desesperado. Ele late, grunhe e gane. Seus uivos são de cortar o coração. Cindy e Albert vão para os fundos da casa e ele fica ganindo por um longo tempo. Então a empregada da família chega irritada e o põe para correr com uma vassoura.

Traído e escorraçado Bob sai vagando sem destino pela noite. Entregara seu coração a Cindy e não podia pegá-lo de volta. O dela estava apodrecido.

Mas isso já não importa, pensa Bob. Está desiludido com as fêmeas e o mundo. Vagará sem destino pela noite de Porto Alegre e atacará o primeiro pitbull que encontrar.

Urubu Rei
Enviado por Urubu Rei em 19/02/2010
Código do texto: T2096159
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