O afinador de pianos
Não eram dez horas da manhã, e ela voltava, cuidadosa, pelas pedras do rio. Chegando ao alpendre, secou os pés no pequeno tapete, calçou as sandálias que trazia nas mãos, prendeu novamente os cabelos e caminhou em direção ao marido que a observava em seu descanso de domingo na rede. Ela foi se acomodando nos braços que a entrelaçaram com ternura e sem pressa.
Fazia quatro anos que haviam comprado a casa na serra. Ali tinham morada e trabalho. Domingo era seu dia de folga e segunda-feira até a tarde o restaurante não funcionava. Na verdade descansavam apenas aos domingos. Às segundas ele repunha os vinhos na adega, trazia os queijos, acertava o trabalho com o jardineiro, enquanto ela, sentada à mesa, conversando amigavelmente com os funcionários, administrando os trabalhos da limpeza e cozinha, ia separando as folhinhas de manjericão dos galhinhos previamente lavados.
À noite cada funcionário sabia o próprio trabalho e tratava de desempenhá-lo bem, porque o casal deixava o comando da casa para tornar aquele lugar mais quente e aconchegante. Eram os músicos; ela ao piano, ele, no violoncelo.
Mais três meses e chegava-lhes o primeiro filho, mas só agora, em Visconde de Mauá, porque antes, em Curitiba, não haviam tido tempo para filhos.
Ele a enlaçou nos braços, puxou-a para si e, por causa da data _ há exatamente oito anos se conheciam _ começaram a lembrar sua história. Ela, professora de música em Curitiba, no velho prédio na rua Floriano Peixoto; descia do ônibus todos os dias na Praça Rui Barbosa, seguia a pé pela Pedro Ivo, pegava a Floriano e às oito horas tinha o primeiro aluno. Ele estudara violoncelo, por alguns anos, na Escola de Música de Tatuí; lá conhecera a luteria ligada à Escola, aprendera o ofício e trabalhara por seis anos, tendo feito o seu próprio instrumento pelo qual tinha muito apreço. Nesses anos em Tatuí interessara-se ainda por afinação de pianos e passou a ser requisitado cada vez mais longe pelo novo trabalho a que se dedicou igualmente com talento e gosto. Assim é que chegara a Curitiba.
Na tarde em que se conheceram, ela havia dado três aulas e estava agora na última. Ele a vira antes: a porta entreaberta da pequena sala, primeiro as botininhas claras marcando baixinho o ritmo. Calças compridas num vermelho queimado, jaqueta curta, gelo, mãozinhas muito alvas, cabelos muito loiros e compridos. Só quando a porta se abriu mais é que pôde ver-lhe o rosto e encantou-se com o perfil. Nariz e queixo delicados, cílios longos e espessos. A voz, incrível, já lhe parecia familiar:
_ Mais devagar, Ana, este segundo movimento é andante, veja _ e fez, na região aguda do piano o andamento apropriado ao segmento.
O moço reconhecera a peça; era uma sonatina de Clementi que ele ouvira um amigo tocar ainda em sua adolescência. Ele afinava o piano da saleta quase em frente àquela em que estava a professora. Ela sabia que o afinador estaria ali naquele dia, pois lhe fora passada a informação com antecedência. Ouvira depois o trabalho paciente e constante do afinador na salinha contígua à sua. Percebeu quando terminara, mas não tivera a curiosidade de ver a pessoa, pois que a própria diretora o recebera, levara até às salas e deixara com ele o serviço.
Faltava apenas o piano de sua sala. Ele esperou que a aula acabasse para ir ter com a professora, que explicava à aluna, já no corredor, que na próxima aula iriam colocar a dinâmica na música.
Aos olhos da jovem, a vista daquela feição foi agradável. Cumprimentaram-se, ela lhe disse que podia entrar e saía para guardar os livros quando ele perguntou qualquer coisa, ao que ela respondeu solícita, voltando-se. Despediram-se. Mais dois dias e ela viajaria no fim de semana para Londrina, com o propósito de visitar uns parentes. Na rodoviária, tomando um suco, avistou o rosto conhecido. Era o afinador que ia para Maringá e de lá voltaria para Curitiba onde teria mais algum serviço na semana seguinte àquela. Trocaram algumas idéias sobre música, sobre gostos pessoais, instrumentos, desejaram-se boa viagem.
Na terça-feira seguinte a jovem professora voltava do trabalho para a pensão onde morava há um ano. Era uma velha e boa construção próxima à Praça da Ucrânia. A senhora proprietária, viúva há dez anos e sem filhos, distinguia com carinho a moça, única hóspede fixa, dos demais ocupantes e, não sendo difícil afeiçoar-se a tão boa criatura de modos e hábitos simples, colocou-a no andar superior, num quarto próximo ao seu. Tinha-a como companheira aos domingos, nas missas da manhã, e iam ao cinema, algumas vezes quando a professora não viajava para ver a família nos finais de semana. A moça, por sua vez, preenchia a vida assim, com as aulas, estudos, leituras, cinema e era feliz.
Pois bem, naquela tarde, quando mal deixava para trás o burburinho das ruas para chegar ao merecido descanso, outros sons lhe chamaram a atenção, ainda nos primeiros lances da escada que levava à ampla sala de onde se via o mezanino e onde ficava o piano da velha senhora. Os sons vinham de lá; eram insistentes e martelados como há poucos dias ouvira na escola, mas não poderia ser... a menos que fosse... era ele! Feliz coincidência!
Riram-se da casualidade. A dona da pensão, amante da música, resolvera que queria novamente o piano afinado e que queria viver. Como o afinador vinha à cidade a cada ano e meio, entrara em contato com a proprietária e agora estava ali. Enquanto fazia o trabalho, a viúva o deixara para ir, ela mesma, às compras de frutas frescas para o café da manhã seguinte e verduras e legumes para o almoço dos hóspedes.
Enquanto se falavam, o afinador encerrou o trabalho e fez um gesto para a professora: o piano era todo dela; que viesse experimentá-lo e desse o seu parecer. A moça já aprovara o trabalho do rapaz porque seus ouvidos estavam atentos aos sons cada vez mais afinados das várias sequências de notas que o rapaz arpejara e dos acordes perfeitos que ouvira. Ainda assim a moça aproximou-se e sentando-se, concentrou-se na escolha de uma música ou trecho que servisse ao propósito. Tocou Mozart, os dedinhos curtos e gordinhos, um único anelzinho, as unhas ligeiramente arrebitadas, o corpo pequenino e forte, o perfume... ah, o mesmo perfume do primeiro dia...
Ela o sentia bem perto. Ele, embevecido, subitamente parou-lhe as mãos, tomou-as e, seguro, beijou-as. Ela ergueu-se cabisbaixa, a face um pouco enrubescida, arrumou a roupa com as mãos e ergueu os olhos devagarinho para o rosto e os olhos do afinador. O que viu neles foi bondade, mansidão, segurança, honradez, carinho. Viu-lhe a alma também. Por isso não se assustou tanto com o inesperado e sorriu. No sorriso sem palavras, desfeita a comoção do momento, a jovem pianista aprovava e acolhia a espontaneidade do rapaz que gostara da música, mas que antes já havia gostado do sorriso, do olhar, da voz, do doce perfume.
Dali a irem ao cinema, jantarem juntos e encontrarem-se amiúde foi rápido. Casaram-se. Ela lhe pediu que voltasse a estudar violoncelo; ele concordou. Mais uns anos e um jovem casal era visto tocando em saraus em casas de pequenas cidades no sul de Minas e também em aberturas de encontros de escritores e artistas. Ela parou de ensinar, ele parou de afinar, para fazerem juntos um pouco de música ao gosto dos contratantes e de acordo com o que sabiam fazer.
A viúva, apesar da vontade de viver, morrera e, sem filhos e parentes próximos, constituiu aquela jovem companheira de passeios dominicais sua única herdeira da velha pensão, dos móveis antigos e do piano em mogno encerado. Venderam a pensão em Curitiba e, com o dinheiro da venda mais as economias, pagaram uma parte da nova propriedade em Visconde de Mauá. Trabalharam duramente e chegaram até o domingo em que encontramos o casal: ela, grávida de seis meses, ele, esperando-a na rede até que voltasse da caminhada sobre as pedras na água rasa do riacho rente à casa e fosse aninhar-se em seus braços, enquanto ele lhe beijaria as mãos, a boca, a nuca, os cabelos. Ela voltou e beijaram-se demoradamente.
A jovem senhora levantou-se, não sem a ajuda do marido, não sem prometer que voltava logo; ia apenas tomar um bom copo de água. O marido já sentia sua falta quando reconheceu um trecho de uma peça que tocariam à noite. Acomodou-se e ouvia com prazer a melodia que a mulher tocava, de pé mesmo, inventando uns trilos que a partitura não trazia.
Ele achava graça na brincadeira da pianista e sorria sozinho na rede, mas instantaneamente fez-se silêncio e um som de notas desconcertadas ecoou pela sala até o alpendre. Correu. A mulher estava caída no chão. Atônito, gritou-lhe o nome, berrou em vão por socorro, pegou-a nos braços e saiu com ela em desespero.
*** *** ***
Passaram-se dez anos. A mulher do violoncelista, morena e esguia, assa uma carne para o almoço; enquanto isso arruma o caixa do restaurante e prepara-se para o trabalho da noite. Têm duas meninas, uma de quatro, outra de três anos, cabelos escuros como os da mãe. Elas brincam e riem muito. Pedem ao irmão que toque piano para elas dançarem. O menino, dez anos, muito loiro, toca, e o pai brinca com as garotas, olhando o filho, agradecido.
O menino sai, feliz, para o que mais gosta de fazer quando a família está assim reunida, descansando dos serviços e estudos da semana, e os funcionários estão em sua folga semanal costumeira: o passeio no rio. Voltando pelas pedras, ouve por alto a conversa de uns vizinhos.
Quando chega, encontra o pai esperando-o à porta e pergunta-lhe o que é apoplexia. O pai sonda o olhar que aguarda uma resposta; curva-se para abraçá-lo contra o peito, enquanto lhe acaricia a cabeça. O homem convida o menino para sentarem-se à escada do alpendre e seguem abraçados. Conversam longamente, até que as garotas chegam, em correria, anunciando que o almoço está servido.
Este conto foi escrito em meados de 2004.