O Outro Menino - Final

(Parte Final)

Passaram-se os dias. Aiky sempre aparecia no fim das aulas. Às vezes Kawabe se assustava, pois ele surgia do nada. Fazia isso toda tarde. Saía da escola e ia encontrá-lo. Na maioria das vezes ele o levava para casa, já que andavam um longo caminho juntos. Outras vezes iam ao cinema e ao parque. A vida de Kawabe se tornou duas vezes melhor do que já fora um dia. Estava feliz. Taylor e ele não discutiam. Tudo estava indo bem. Bem até demais.

É engraçado como funciona a vida. É incompreensível, intensa e vaga. É muito fácil parar de existir. O difícil é parar de viver. Ah, sim! A beleza de tudo morre. E já que a felicidade não pode ser eterna, eis que aqui eu começo a narrar o enredo final dessa história, talvez não tão querida. Mas necessária.

Foi numa tarde de Sexta-feira que a chuva tinha parado. O frio não era mais intenso. O tempo agradável não nos dá nenhuma suspeita do que pode acontecer.

Kawabe saiu do último tempo de aula, sozinho. Seguiu mais apressado do que de costume. Andava cabisbaixo, parecia tonto. Logo atrás dele, Aiky vinha correndo, usava o uniforme da escola que agora frequentava. Segurava um copo de bebida nas mãos. Ainda estava com a mochila, ele sempre saía primeiro e vinha buscá-lo.

- Ei! – ele gritou e Kawabe parecia não escutar. – Espera aí!

Ele se aproximou ofegante do garoto. Mas Kawabe não olhou para ele.

- Kaw?

Aiky parou na frente dele e o contemplou de cabeça baixa.

- Ei, tá tudo bem?

Kawabe fez que sim, mas ainda não o olhou.

- Chocolate com creme... – ele entregou o copo nas mãos dele – Seu preferido.

- Obrigado. – Kawabe segurou o copo, sem olhá-lo.

- Olha pra mim.

Aiky olhou em volta, mas estavam sozinhos naquele caminho, então ele tocou no rosto de Kawabe.

- Ei, Kaw... Olha pra mim... – ele levantou o rosto dele

Kawabe o olhou envergonhado. Havia uma enorme mancha roxa em torno de seu olho direito. Aiky fechou os olhos e os punhos, estava realmente furioso.

- Quem fez isso com você, Kaw?

- Deixa pra lá...

- Quem fez isso com você?

- Aiky...

- Eu não vou perguntar de novo. Se você não me falar eu volto lá e descubro.

- Ok, foi o J.P. Mas ele não queria me machucar, foi um acidente.

- DEIXA DE SER INGÊNUO, KAWABE! – Aiky chutou uma pedra com força. – Vai pra casa, eu vou falar com ele.

- Aiky, por favor...

Mas Aiky não lhe deu ouvidos e seguiu o caminho de volta. Kawabe o seguiu.

Na porta da escola agora saíam os alunos de outras séries. Aiky conhecia o menino. Não era a primeira vez que quebraria a cara dele. Mas dessa vez não pretendia pegar leve.

O garoto saiu da escola, acompanhado por dois amigos. Eles logo avistaram Aiky e Kawabe parados na entrada. Todos riram.

- Quando foi que a porta da escola virou ponto de encontro de veados?

- Você nunca mais vai tocar no Kawabe. – Aiky enfiou o dedo na cara dele.

- Você nem estuda mais aqui, seu boiola! Cai fora!

Aiky o prendeu pelo pescoço e usando o braço, começou a enforcá-lo. Os olhos de J.P. ficaram esbugalhados, ele tossiu e Aiky o soltou.

- Porra, Aiky! Tá doido! Eu era seu amigo, cara!

Kawabe ficou parado sem saber o que fazer, apenas olhando. Uma rodinha de alunos se aproximou para olhar a cena.

- Estão vendo esses dois, pessoal? – disse J.P. massageando o pescoço - Eles são namorados!

A maioria das pessoas riram. Muitos apontaram para Kawabe. Ele estava completamente envergonhado.

- Ele veio defender a florzinha que apanhou! Vai se foder, sua bicha! Acha que vai fazer o quê?

- Te matar. – disse Aiky. Seus olhos estavam vermelhos.

De repente Aiky deu um soco na cara do garoto, que caiu com o golpe. Logo depois começou a chutá-lo, descontando toda a sua fúria. Se defendendo com as mãos, a vítima pode ouvir suas costelas se quebrarem com os chutes que levava. Ninguém separou a briga. Foi quando a voz de Kawabe gritou:

- Pára com isso, Aiky! Já chega! Você ficou maluco?

Aiky olhou para Kawabe. Enquanto isso J.P. se levantou, chorando. Mas antes que ficasse totalmente de pé, Aiky o empurrou com força e ele caiu direto com a cabeça no chão de concreto. Instantaneamente uma poça de sangue se formou em torno do seu crânio, ele se debateu como um peixe fora d’água, e então parou de se mexer, mas seus olhos continuaram infinitamente abertos, como duas estrelas apagadas. Os alunos que gritavam e riam pararam imediatamente. Houve um silêncio fúnebre de arrepiar.

Aiky olhou para o sangue escorrendo no chão. Não acreditava no que tinha feito. Se abaixou desesperado, tentando ajudar.

- Me ajudem, porra! Vocês vão ficar aí olhando! Ele vai morrer!

No fundo ele sabia que nada adiantaria. Gritava mais para se enganar. Não tinha mais jeito. Estava feito.

Kawabe não tirou os olhos do corpo no chão. Ficou paralisado. Aiky prometeu que ia o proteger, mas isso ele não fez. Ele apenas achava que estava, quando na verdade, se preocupava mais com o que os outros pensavam. Ele não correu para salvar Kawabe quando ele caiu no mar. Ele correu para bater nos responsáveis por isso. Kawabe não conseguia acreditar em mais nada. Dali em diante as imagens ficaram distorcidas, em câmera lenta. Ele chorou ao ver aquilo. Os rostos dos professores assustados. Os gritos dos estudantes que chegavam para olhar. Tudo girava no tempo perdido. Viu um carro da polícia estacionar. Viu o brilho das algemas que prenderam Aiky. Viu o rosto dele pela última vez. E tudo o que se lembrou foi de sangue escorrendo. Eles o levaram.

Muitos anos haviam se passado depois do ocorrido. Kawabe se formou e finalmente entrou para a faculdade de Biologia. Tempos mais tarde conseguiu um emprego. Agora estava casado e tinha um filho de cinco anos de idade. Ele costumava voltar sempre ao topo da colina durante a noite, enquanto fumava seu cigarro. Olhava para as estrelas se perguntando o que teria acontecido se tudo tivesse sido diferente. A fumaça subia espiralada; frequentemente ele estava embriagado. Aos olhos de qualquer um, poderia ser um cara normal. Um tanto quanto quieto e reservado. Mas no seu íntimo ele jamais estaria livre daquilo. Sua decadência era notável. E embora seus olhos fossem riachos já ressequidos, eles ainda brilhavam ao lembrar daquele dia. Em que a inocência ainda não o tinha abandonado.

Eles nunca mais se viram.

FIM

“Algo encheu meu coração com nada

Alguém me avisou para não chorar

Mas agora que estou mais velho

Meu coração está mais frio

E eu vejo que isso é uma mentira"

(Wake Up - Arcade Fire)

Glaucio Viana
Enviado por Glaucio Viana em 30/01/2010
Reeditado em 14/03/2010
Código do texto: T2059226
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