A Juke-Box

À Henrique Del Vecchio

Ao som de blues e hard rock

Empurrou o CD pra dentro do player, enquanto arrumava o retrovisor e ajustava o Umbervision nos olhos. Deu um último trago no cigarro e o dispensou, no mesmo momento em que o riff de Angus começou. Como se tivesse ensaiado, ele virou a chave no contato, roncou o motor V8 do Mustang conversível Vermelho Vinho três vezes e quando a voz rasgada de Bon Scott misturou-se aos riffs dos irmãos Young, cantou os pneus e partiu.

Seguia sem pressa, rumo ao sol poente, os louros cabelos esvoaçando no vento de 110 milhas por hora, estrada longa e quase sem curvas. Pegou a garrafa de Natasha ao lado do banco, ainda estava fria, destampou com os dentes e virou uma boa dose, parando no meio pra cantar junto com Scott ‘I’m on a Higway to Hell’, sorriu maliciosamente para o retrovisor e fechou os olhos, enquanto o pé apertava o acelerador com mais força. Além do cheiro de vodka ele sentia o cheiro da liberdade, batendo em seu rosto e fazendo esvoaçar seus cabelos. Pedira por aquele tipo de vida. E estava satisfeito com o que conseguira. Horas mais tarde ele estaria em algum hotel barato, à beira da estrada, pagando um Dry Martini pra uma desconhecida, rolando os dados e tirando mais algum pro combustível. Isso, é claro, se não acontecesse algum imprevisto. Mas o que poderia acontecer?

É exatamente essa pergunta que não deve, jamais, ser feita. Sempre que se pergunta isso, algo imprevisto acontece; e algo imprevisto é, invariavelmente, algo ruim. Ou não? Afinal, como saber? O imprevisto é o imprevisto. Assim como o inevitável é inevitável. Mas, se ele houvesse previsto o inevitável que vem a seguir, poderia evitá-lo? Talvez pudesse, mas preferia não evitar as coisas, por isso não planejava nada. Abraçava qualquer coisa que viesse a acontecer. E o que aconteceu ele jamais esqueceria.

*

Ela limpava o balcão, ouvindo as queixas de seu pai, que bradava dos fundos, tocando fogo em seus cadernos, gritando pra quem quisesse ouvir no bar (e pra quem não quisesse também): ‘Isso aqui nunca vai te dar um futuro! Sua desnaturada! É assim que você honra a memória da sua mãe?!’. Ela ouvia tudo em silêncio. Não era a primeira vez que acontecia. Não; isso acontecia com freqüência. Mais freqüentemente de alguns meses para cá. Mas ela podia se lembrar facilmente de como tudo começara.

Da primeira vez ela tinha 14 anos, uns olhinhos mais melancólicos que agora, sua mãe morrera há apenas 2 anos e tudo ainda estava muito cinza para ela. Escrevia nos intervalos entre os picos de movimento no banheiro do bar do pai. O pai a pegara descuidada, sentada no vaso sujo, com a tampa abaixada, vestida, escrevendo em um guardanapo. Tomou o guardanapo das mãos da pequena e, antes de começar a forçar a vista para ler, olhou nos pequeninos olhos melancólicos da garota, que estavam encharcados de lágrimas e pareceu saber o que estava prestes a ler:

‘Em sua memória me ponho a escrever

Com a pequenina mão que de ti herdei.

Sou toda você, não dá pra entender.

Há algo sobre o papai que ainda não sei?

Sei que era mulher pura, como eu sou.

Mas com ele não me pareço em nada.

Há algo que você nunca me contou

E me põe em uma confusão danada!’

Ela havia escrito até aí. A cada verso que liam, os olhos de seu pai ficavam de um vermelho mais vivo, que ela achou que era de comoção a princípio. Mas então veio uma veia saltar no pescoço do velho, três segundos antes de ele rasgar o papel em dois, depois em quatro, oito, até não se poder mais contar, e tirar a cinta e a castigar, ali mesmo, por tais suposições a respeito do pai. Essa fora a primeira vez. Depois disso, ela tentou ser mais cautelosa, mas em vão. Só depois de perder incontáveis poemas, que se deu conta que deveria fazer sempre uma cópia de tudo o que escrevia. Depois de tomar esse cuidado, já não se deixava mais ferir pelas palavras duras do pai. O pouco que ganhava estava poupando, e logo sairia daquele fim de mundo, e seria descoberta por alguém que a faria famosa. Não que odiasse o velho. Amava-o. Tirando as crises como essa e o fato de ser um alcoólatra, ele era um bom pai. Mas aquele lugar não era para ela. Já recebera propostas de vários clientes do bar, mas não se iludiu com nenhum deles. Era ingênua, mas não tola. Mas no fundo esperava que alguém viesse tirá-la daquele lugar. Mas num barzinho de fim de mundo como aquele, o que poderia acontecer?

*

Depois de virar o resto da garrafa de Natasha, colocou-a embaixo do banco do passageiro. Abriu o porta-luvas, tirou a case, abriu-a e começou a procurar por outro CD. Passou os olhos pelo velocímetro, conferiu o ponteiro fixo a 80 milhas por hora e espantou-se ao ver o indicador de combustível. Não teria condições de chegar à rota dos cassinos. Teria de parar no próximo posto. Seria até bom, comer alguma coisa, tomar um drink diferente, pra variar. Avistou a alguns metros a frente um posto rústico, que era mais bar do que posto, mas tinha gasolina e comida, já valia pena, e ele não tinha mais opções, afinal.

Parou ao lado da bomba de gasolina aditivada e esperou que alguém fosse verificar o que ele queria, ou algo assim. Ninguém veio. Programou a bomba para 50 contos, já seria o suficiente para encher o tanque. Enquanto abastecia, olhou para dentro do bar, para ver que tipo de local era. Viu o balcão, uma coleção de garrafas cheias nas prateleiras, típico dos bares. Mudou de ângulo e viu algumas pessoas comendo, a maioria homens, bebendo, fumando, jogando. É; era um bar típico. Colocou a mangueira de volta no lugar, debruçou-se sobre o carro, desligou o rádio enquanto uma voz dizia: ‘Mamma said I was a no good son’. Caminhou até a porta do bar, abriu, ouviu tocar uma sineta. Ninguém parecia notar sua entrada, a garçonete estava apoiada numa das mãos, com o olhar distante, enquanto o patrão, provavelmente o dono do bar, gritava horrores, algo sobre a mãe da garota. Era uma garota notável; usava uma camiseta preta, tinha as unhas pintadas de um vermelho vinho, da cor do carro, não muito chamativo, que caía perfeitamente com os cabelos ruivos; mas seus olhos se destacavam mais que qualquer outra coisa; eram olhos esverdeados, mas a cor não era o mais importante; estavam bem destacados com lápis preto, mas não era o mais importante. O que realmente chamava a atenção era a expressão tão melancólica daqueles olhos. Como se fossem responsáveis por toda a tristeza do mundo. Começou a caminhar na direção da moça, mudando rapidamente de direção quando viu a Juke-box no canto do bar. Dirigiu-se entusiasticamente a ela e começou a contemplar as coleções que estavam à escolha. Arrumou as calças jeans batidas, ajustou a fivela dourada com a ilustração de uma águia com as garras prontas para capturar qualquer coisa que não se podia ver, já que a fivela acabava ali, e via-se o sol atrás da águia, com seus raios bem destacados, bonita fivela que herdara de seu velho, única recordação, de fato, da família que um dia teve; dobrou as mangas da camisa xadrez, tirou o Umbervision do rosto e o guardou no bolso, tudo isso enquanto escolhia uma música que agradasse, não a ele, mas àquela garota que o comovia com seus olhos tão melancólicos. Acabou optando por um blues, pois ‘Se alguém estiver triste, não anime a pessoa, mas se entristeça com ela. Isso sim prova que você tem caráter’, dizia sua mãe. Só depois de escolher a música perfeita, tirou as moedas do bolso, conferiu o preço na Juke-box, e foi colocando as moedas, uma a uma, com um sorriso já melancólico nos lábios. Selecionou o discou e esperou que começasse a rodar. Mas não rodou. Ele fez uma careta e começou a dar tapinhas sutis na lateral da máquina; nada. Aumentou a força dos tapas, a intensidade, arriscou até um chute leve; nada. Virou-se para perguntar se havia algum macete pra fazer funcionar a Juke-box e tomou um susto ao ver dois olhinhos claros, que pareciam ter acabado de derramar um dilúvio de lágrimas, mas sem um sinal de umidade que fosse, o contemplando de tão perto.

*

Ela estava devaneando ainda sobre o passado, quando viu parar um carro na bomba de gasolina aditivada. Era um V8 bem cuidado, raro de se ver por esses lados. Viu descer do carro um rapaz, de no máximo 23 anos, com a barba mal feita, cabelos longos até os ombros, de Umbervision escuros, calça jeans e camisa xadrez, ambas já bem gastas. Tentou se esticar para ver se havia uma garota dormindo no banco de trás, como aparece sempre nos comerciais de carros como aquele; não conseguiu se esticar o suficiente para ver o banco de trás. Notou que ele procurava alguém para cobrar pelo combustível, mas continuou imóvel atrás do balcão, apoiada sobre os cotovelos. Num gesto quase inconsciente, observou seu próprio reflexo no balcão de madeira polida, ajeitou os cabelos, conferiu os dentes, e voltou a se posicionar como se estivesse devaneando.

Não era raro que entrassem homens naquele bar. Mas os que entravam eram, geralmente, clientes antigos, velhos conhecidos do pai, ou com idade suficiente para ser seu pai, ou até seu avô. Uma ou outra vez entrou um rapaz mais jovem no bar, se dirigindo diretamente a ela com aquele olhar que ela tanto conhecia de homem cafajeste, daqueles que certamente diriam: ‘Olá, princesa, não sabia que num bar desse eu acharia uma coisa linda como você’. Ela não precisava se dar ao trabalho de dispensá-los. O pai fazia isso por ela. Mas nunca um rapaz de sua idade chegara lá em uma ocasião daquela, com o pai fazendo escândalo e ela com aquela vontade de desaparecer. Nesse momento ela ouviu a sineta da porta e, disfarçadamente, olhou para o rapaz que estava entrando. Ainda de longe ele já a olhava nos olhos. Ela sentia seu olhar. Mas, apesar do jeito de cafajeste, ela não sentia nenhuma agressividade em seu olhar. Ele sustentou o olhar por longos segundos, até que começou a caminhar na direção dela. Sentiu seu coração disparar, um gelo repentino tomou conta de seu estômago, tudo muito rápido, enquanto seu pai ainda praguejava dos fundos. “Calma, Lora, calma. É só um cara.” A cada passo que ele se aproximava, ela sentia o coração palpitar mais forte. Mas, abruptamente ele mudou de direção. Ela o acompanhou com os olhos e viu que se dirigia à Juke-box, há tanto esquecida no canto daquele bar. Ele não iria fazer rodar um disco, iria? Mesmo que tentasse, será que aquela coisa ainda funcionava? Viu que ele ficou um tempo escolhendo a música (o que será que ele colocaria?), e quando viu que ele colocara a mão no bolso, procurando moedas, foi até ele. Ele se virou e pareceu se assustar com ela ali, atrás dele. Ela ficou sem reação e a única coisa que conseguiu fazer foi aspirar aquele perfume que emanava dele, um aroma amadeirado, misturado com cigarro e asfalto. Era mais atraente de perto. Um tanto mais alto que ela. ‘Posso ajudar?’ tentou dizer, mas sua voz se ausentou. O rapaz sorriu e ficou contemplando seus olhos durante um longo tempo, antes de dizer, com um sorriso menino no rosto: ‘Parece que perdi uns trocados!’.

*

Ela sorriu um sorriso bonito, que deixava aparecer covinhas nas bochechas. Seus lábios eram naturalmente avermelhados e tinha algumas sardas, poucas e pequenas, que sublinhavam a inocência que os olhos transpareciam. E então ele teve uma sensação. Como se uma brisa o tocasse, de repente, sem mais nem menos. E olhando nos olhos melancólicos e esverdeados daquela pequena garota ruiva, foi tomado de algo tão intenso que nunca sentira; nem enquanto morava na casa de subúrbio com a família a milhas dali, nem depois quando se decidiu por colocar o pé a estrada e foi parando em todos os ‘Moulin Rouge’ que encontrava pelo caminho; nem quando se deitava ao lado de tantas mulheres e ficava olhando elas respirando, enquanto o dia amanhecia e elas dormiam.

E tomado dessa sensação, tocado por essa brisa fria, mas aconchegante ao mesmo tempo, sentiu vontade de dizer a ela coisas que nem sabia que seria capaz de dizer; sentiu vontade de contar a ela tudo o que ele vivera até ali, todas as besteiras que ele fez, falar de todas as coisas que ele se arrepende de ter feito; sentiu vontade de abraçá-la, apertadíssimo, e quando juntos dessa maneira, dizer coisas no ouvido dela que só ela saberia decifrar, só ela, mais ninguém, nem mesmo ele próprio; sentiu vontade de vê-la respirando enquanto dorme, de zelar pelo sono dela, pra que nada a perturbasse; sentiu vontade de olhar eternamente naqueles pequenos olhos melancólicos e desejou saber o que os tornara melancólicos daquela forma, e tirar deles a tristeza, e tomar toda a dor de dentro deles para si e sofrer por eles, pra que eles não tivessem mais que ser melancólicos.

Piscou duas ou três vezes, pra se reencontrar com o presente e se ofereceu para arrumar a Juke-box, em troca de, talvez, uma refeição (‘com você’, pensou em dizer, mas não disse). Ela agradeceu a proposta, mas deveria pedir autorização ao patrão, que era seu pai, por sinal. Ele acenou com a cabeça e ela foi em direção aos fundos, onde o homem que havia parado de praguejar estava; seus olhos a seguiram atentamente, como fossem duas câmeras de alta precisão, decorando a forma como ela anda, a cor de seus cabelos refletindo o sol que entrava por um vitral, tudo. Decidiu que era melhor começar a arrumar desde já a Juke-box, com ou sem consentimento. Afinal, lá se foram seus trocados.

*

‘Lora Flynn, que idéia mais maluca é essa de arrumar a Juke-box agora?!’

Como explicaria que o rapaz se ofereceu de bom grado para arrumá-la? E se tentasse explicar, alguma coisa escaparia por seus olhos e seu pai interpretaria coisas exageradamente, em certo ponto. Era capaz de dizer que ela já conhecia o rapaz e tramava algo. Com medo de ser julgada e de despertar a ira do velho pela segunda vez no dia, pediu para o pai ir falar com o rapaz. Enquanto o pai se dirigia, resmungando, ao salão, Lora aproveitou para espiar uma vez mais o rapaz. Sentia-se, de fato, atraída por ele. Já era bem adulta para saber o que sentia. Jamais em sua vida amara alguém, que não fosse seu pai ou sua mãe. Não conhecia os avós, tios, primos, nenhum tipo de parentela. Desde que pode se lembrar vive na casa que fica nos fundos do bar. Sua mãe e seu pai sempre foram sua única família. A mãe a educara em casa. E os rapazes que entravam no bar nunca foram do seu tipo. Nem sabia qual era seu tipo, mas agora pensava que esse rapaz talvez se enquadrasse.

Não tinha cara de quem gostava de literatura, ou artes, mas era bem apessoado, tinha presença... E um senso de humor peculiar, Lora pensou. Suspirou. Fitou seus próprios olhos melancólicos no espelho, atrás do balcão. Hoje eles pareciam ter um brilho especial, diferente. Olhou novamente o rapaz; seu coração acelerou bruscamente. Serviu-se de um cálice de vinho; ‘Acalma o ânimo’, sua mãe dizia. Imaginou-se com uma família, vivendo em um lugar bonito, talvez perto das montanhas, onde há neve, frio, chocolates-quentes... Nada desse calor infernal, ventiladores barulhentos, homens suados... E ficou assim, devaneando, sem saber por quanto tempo, até ouvir uma música que fez seus olhos melancólicos se encherem de lágrimas. Uma música tão nostálgica que ela quis adormecer, para sonhar e ver melhor suas próprias lembranças. Sem perceber estava chorando, intensamente. Entre as lágrimas viu um rapaz, de camisa xadrez lhe estender um lenço e afagar-lhe os cabelos ruivos.

*

‘Boa tarde, senhor. Espero que não se incomode, mas eu comecei a arrumar sem seu consentimento. ’ Disse o rapaz, enquanto o homem de barba ruiva e cabelos ralos se aproximava. Estendeu-lhe a mão. ‘ Flynn. Thomas Flynn. Eu gostaria de agradecê-lo, senhor...?’ Apertou a mão do homem; mão pesada. Olhou nos olhos do velho e viu o cansaço de uma vida sofrida; sentiu até um pouco de pena do velho, apesar de ter visto como havia sido rude com a pobre garota. ‘O’Doyle. Richard O’Doyle’, disse, estranhando falar seu nome completo, há tanto não se apresentava formalmente a alguém. As mulheres da estrada mal perguntavam seu primeiro nome, se importavam mais com quantas rodadas ele pagaria e quantas horas ele agüentaria acordado; e, modéstia à parte, elas nunca se arrependiam. O homem lhe disse que seria um prazer ouvir novamente a Juke-box tocando suas músicas, como nos velhos tempos e que fazia questão de pagar-lhe a medida justa, referente ao conserto. Disse que não, que tudo bem, que uma refeição já estaria de bom tamanho e que queria a honra de escolher a primeira música após o renascimento da máquina. O velho concordou com um sorriso; aquele parecia ser um bom rapaz, pensou.

Em poucos minutos a Juke-box estava ligada. Reconheceu os trocados que Richard colocara há pouco; ele escolheu o blues que tinha em mente e todos no bar aprovaram com um silêncio radiante. Todos pareciam hipnotizados pelo som magnífico da máquina. De repente, alguém começou a retirar as mesas do salão; o velho prendia o choro, foi para dentro do balcão e se serviu de Scotch; Richard olhou para a moça; estava magnetizada e chorava sem parar umas lágrimas tão doces que qualquer um se comoveria. Aproximou-se dela e, sem perceber o que fazia, começou a afagar-lhe os cabelos. Ela recebeu o gesto de bom grado. Tocou nas mãos dele; tentou se aproximar mais, porém o balcão a impedia. Ele segurou-a pelas mãos e a guiou até o salão; ela então, inesperadamente, o abraçou. Ele sentiu seu coração acelerar de tal modo que pensou que fosse explodir; queria tê-la sempre por perto, assim, abraçada a ele, se aconchegando em seus braços. Pensou que, por ela, deixava-se trancafiar, abria mão de sua liberdade, começaria uma vida nova, como alguém digno. E a música dizia ‘You’re gonna leave me’ e ele, inconscientemente disse que não ia, que ficaria ali pra sempre, se ela quisesse. Sem esperar, estava também chorando, quando seus olhos se encontraram com aqueles lindos olhos verdes, que agora estavam transbordando toda a tristeza e melancolia que abrigavam. Ela apertou seu peito contra o dela, aproximou os lábios de seu ouvido e disse: ‘Lora. Meu nome é Lora’. Lora... Como um nome pode se adaptar tão bem a quem o possui? ‘Frankie. Me chama de Frankie’ ele respondeu, passando a mão por toda a extensão do rosto dela e de seus cabelos ruivos.

*

Ele a tirou para dançar e ela, envolta em toda aquela melodia, toda a magia que aquele blues transpirava, deixou-se levar, sem perceber e quando se deu conta, estava tirada ao pescoço de um estranho, na frente de todos os clientes, na frente de seu pai. Sabia que todos ali a olhavam, inclusive o retrato amarelado de sua mãe na parede, mas não parecia se importar. Tudo havia tomado um ar profundamente puro, simples, como se fosse o primeiro dia no Paraíso depois da criação do homem. E ela sentiu como se todos ali no bar estivessem dançando juntos; talvez não os corpos, mas a alma de todos ali rodopiavam ao som do blues sobre suas próprias cabeças...

E nos braços daquele desconhecido, que parecia conhecer desde sempre, sentiu-se confortavelmente segura, completamente plena, sentiu-se querida, como se sentia nos braços de sua mãe. Ele disse que ficaria ali, pra sempre, se ela quisesse, o que ela não compreendeu bem, dizer isso de repente, assim, mas sentiu uma chama arder dentro de seu peito, querendo responder que iria com ele onde quer que ele fosse, mas não disse nada. Quando deu por si, seus olhos derramavam tantas lágrimas como jamais havia derramado. Ela quis contemplar o rosto do rapaz desconhecido, que despertara nela essa tamanha vontade de amar, de viver, de chorar, de sentir, que há tanto ela não sentia, que só conseguia derramar em versos, entre as pautas de cadernos velhos; quando olhou nos olhos dele, viu que também chorava, mas um choro de felicidade, como se também sentisse o mesmo que ela sentira naquela hora. Tomada de íntima compaixão, ou ainda um sentimento muito maior que ainda não sabia nomear, apertou seu corpo contra o dele, querendo unir seus corpos, tanto quanto as almas já estavam entrelaçadas uma na outra; achegou-se ao pé do ouvido do forasteiro querendo dizer-lhe mil coisas, mas a única que pôde dizer foi seu nome. Ele pareceu se chocar um pouco, ao ouvir o nome dela, pois estremeceu; então se recompôs e se apresentou também. Frankie. Era um bonito nome. Ela só ficou sem entender por que ouviu outro nome, quando ele se apresentou a seu pai...

*

Então a música parou. Houve, é claro um fade out, mas eles não perceberam e foi como se a música terminasse abruptamente, como uma estacada. E, com a música, se foi toda aquela aura de magia que envolvia todos naquele salão; pouco a pouco as cadeiras e mesas foram voltando aos seus espaços originais e seus ocupantes voltaram a se sentar e comer, beber, conversar, como se aqueles minutos jamais tivessem existido. O velho foi agradecer ao rapaz, não só por consertar a Juke-box, mas também por escolher uma canção tão delicada, tão apreciada e que, coincidentemente, era a preferida de sua queria e já falecida Jill. Richard (ou Frankie, afinal?) afastou-se bruscamente da garota, não porque quis, mas por respeito e apertou mais uma vez a mão pesada e gasta do velho, que insistiu em lhe pagar uma medida justa, proposta a qual Frankie recusou novamente. Mas fez uma contraproposta que deixou ambos, pai e filha, um tanto constrangidos ou qualquer coisa do tipo, pois se tratava de uma proposta um tanto estranha, apesar de simples: que lhe dessem uma refeição, em companhia de Lora. O velho Thomas coçou a barba ruiva, reflexivo; por fim, disse que cabia a Lora decidir, pois já era madura para tomar tal decisão sozinha, o que a deixou surpresa; aceitou o convite inesperado do rapaz. Estava excitada com a idéia de passar um tempo com alguém de sua idade, ainda mais um rapaz que parecia conhecer uma boa parte do País. Sem contar o fato de ser um rapaz bonito e um tanto misterioso e, se não estava enganada, mentiroso; afinal, dissera nomes completamente diferentes quando se dirigiu a ela do que quando se dirigiu ao pai.

Richard ‘Frankie’ O’Doyle tinha lá seus segredos. Nada de que se orgulhasse, mas também nada tão vergonhoso, ou desonroso a ponto de colocá-lo durante uma vida atrás das grades (talvez alguns anos, mas não uma vida). Olhou surpreso quando a garota aceitou seu convite para um almoço informal juntos. Sentia ainda a estranha emoção de minutos antes, quando a estranha se atirou em seus braços. “Não é possível que eu esteja apaixonado! Eu mal a conheço. Está certo que ela é linda e tem jeito de ser inteligente e decidida, mas céus! Se controla, Frankie, relaxa". Por fim, sentaram-se, um de frente para o outro e ele disse à ela que escolhesse o que comer. Pediu uma dose de conhaque para abrir o apetite e uma garrafa de cerveja para acompanhar a comida, qualquer que fosse. Ela tomou suco de laranja. Comeram uma comida simples, porém Frankie sentia como se fosse a melhor refeição que já fizera, ou que faria, em sua vida inteira.

*

O diálogo entre Frankie e Lora levou um tempo para se estabelecer. Houve, é claro, um certo constrangimento de ambas as partes, mas depois de uns goles de cerveja e suco, e após as perguntas mais formais, iniciaram uma conversa agradável. Lora lhe perguntou por quantos estados e províncias havia passado, quantos hotéis, certos detalhes de alguns lugares específicos, especialmente os mais frios. Frankie pareceu surpreso ao saber que a garota jamais havia freqüentado uma escola e que a mãe se fora tão cedo. Perguntou por que o pai estava gritando tanto quando ele chegou ao bar, o que ela levou um tempo considerável para responder, escolhendo as palavras certas. Depois de uma rápida discussão sobre gostos gastronômicos (os dois eram vegetarianos); climáticos (ambos preferiam o frio); geográficos (Frankie gostava de montanhas, mas preferia as planícies com vegetação espessa, enquanto Lora amava as montanhas); e artísticos (Lora se surpreendeu ao descobrir que o rapaz era tão bem instruído literariamente quando ela); Lora finalmente se encheu de coragem e perguntou por que o rapaz mentira sua identidade.

Frankie empalideceu. Nem havia notado a incoerência que cometera. Tentou explicar à garota o porquê de sua incoerência proposital, mas engasgou, gaguejou e já estava fazendo feio demais pra um dia. Parou; respirou; organizou as idéias e começou: ‘Richard O’Doyle é o nome que meus pais escolheram para mim. Mas isso foi há mais de vinte anos. Estou há três anos, mais ou menos, na estrada. E, na estrada, meu nome é Frankie. Por questões de segurança e porque é um nome bem mais relax!’, disse sorrindo. Lora entendia. Richard havia ficado em casa, com todas as regras, todas as limitações. Frankie era um homem livre. Fazia sentido. Lora pensou em que nome teria, acaso um dia abandonasse o bar, o pai e todo o marasmo da beira da estrada. Como se Frankie lesse seus pensamentos, disse: ‘O seu nome é perfeito. Nenhum outro nome se encaixaria tão perfeitamente em suas feições, linda Lora’; Lora corou e sorriu.

Após muitas conversas e explicações os dois sentiam como se soubessem tudo o que há para saber a respeito do outro; como se já se conhecessem há anos. O senhor Thomas não fez menção alguma de interromper o almoço de sua filha com o forasteiro Richard, afinal o rapaz tinha boa índole e se mantinha a uma distância respeitosa de sua filha. Mas quando o almoço já havia se prolongado por quase cinco horas, sentiu-se na obrigação de interromper, não só porque a filha tinha trabalho a fazer, mas porque queria indagar ao rapaz como faria para ir embora assim, à noite, com aquela estrada esburacada e perigosa à frente. ‘Sem problemas, senhor Flynn’, disse Frankie. Contou que estava acostumado com esse tipo de estrada e com o mau tempo de outras províncias. O homem insistiu para que o rapaz ficasse em sua casa durante a noite, que fosse no outro dia de manhã, após uma boa refeição; Frankie se prontificou a recusar, mas sentiu Lora lhe dar um puxão de leve na manga da camisa e disse que, se não fosse incomodar o velho, ficaria por essa noite. O velho disse que não, não era incomodo algum, agradeceu-lhe mais uma vez o conserto da Juke-box e pediu licença para ir contar o caixa. ‘Lora’, ordenou ’vá lavar as louças!’. Ela se dirigiu para a cozinha e Frankie a seguiu.

*

Durante o curto período de lavar e secar louças, Lora e Frankie estiveram mais perto um do outro do que jamais estiveram, exceto quando se abraçaram, mais cedo naquele dia. Frankie sentia um doce perfume emanando dos cabelos de Lora e a profunda sensação de querer viver com ela uma vida digna ainda não havia passado. O perfume amadeirado de Frankie preenchia as narinas de Lora e seu coração batia mais forte cada vez que suas mãos tocavam, por acidente, as de Frankie para lhe passar os pratos. Acabados os pratos e os talheres, Lora foi para a frente do bar, esfregar o chão do salão. Frankie disse que iria em seguida, pois vira algo que chamara sua atenção, mas omitiu esse fato para a garota.

Num dos armários em que guardara alguns pratos, Frankie descobrira uma espécie de fundo falso. Colocou lá um prato propositalmente desproporcional aos outros, para identificar qual armário olharia depois. Assim que Lora se distanciou para o salão, Frankie verificou que o velho Flynn estava encerrando o caixa do posto de gasolina, então tirou os pratos do armário e forçou um pouco o fundo, que deslizou facilmente para a direita. No fundo falso havia apenas um caderno, de capa dura e gasta, com boa parte das folhas já amareladas. Após uma rápida folheada, parou em uma página qualquer e começou a ler, atento aos movimentos de Lora:

‘Se houvesse alguém que me levasse embora...

Que me mostrasse as belezas lá fora.

Se alguém pudesse me levar daqui

E me mostrar coisas que jamais vi.

Mas acho que este é meu destino, então.

Ficar sempre dentro desta prisão.

Ah, como eu gostaria de deixar

Esta cadeia que chamo de lar.

Só queria ter alguém que me olhasse

Com ternura e em seus braços me tomasse;

Quero alguém que me leve até o céu.

Só quero alguém para ficar ao léu.

Só quero alguém para chamar de meu.

Queria ser a Eurídice de Orfeu.

Mais que depressa, Frankie fechou o caderno e o colocou de volta no fundo falso, guardou os pratos e bateu a porta do armário; Lora vinha voltando. Ao ler tais linhas, Frankie só fez aumentar a vontade que tinha de levar a garota dali. Lora o tomou pela mão e o levou para casa.

*

Enquanto esfregava o chão do salão, Lora tentou ficar de olho em Frankie, mas foi em vão. Sua visão estava prejudicada pelo balcão e pela coleção de garrafas do bar. Perdeu-se em um devaneio, por uns instantes: como seria passar a noite com Frankie em sua casa? Era, sem dúvida, o tipo de pessoa por quem Lora esperara toda a vida, e só de imaginar o fato de que Frankie estaria na mesma casa que ela, durante toda uma noite, a deixava extremamente nervosa e estranhamente ansiosa. Mil e uma histórias passavam por sua cabeça e ela as espantava, uma a uma, com o pretexto de não ser louvável uma garota ficar com pensamentos como aqueles. Que falta fazia sua mãe... Certamente ela lhe diria exatamente o que fazer numa situação dessas.

Seu devaneio foi abruptamente interrompido por seu pai, dizendo-lhe que se recolhesse e mostrasse a Richard onde iria dormir; ele ficaria ali mais um tempo, relembrando a Juke-box, ouvindo mais um blues, relembrando os tempos em que sua querida Jill ainda era viva. “Onde ele vai dormir?” Lora quis perguntar, mas desistiu. Ela arrumaria um lugar para o rapaz. Um lugar conveniente.

Thomas a despediu com um beijo, um terno beijo do patriarca de uma só filha, que já se esquecera da briga daquele dia, devido ao bom coração que possuía, ou talvez às doses de Scotch que já havia tomado, até então. Lora Flynn jamais o decepcionaria. Thomas sabia do talento da filha e que seria fácil sua ascensão no mundo lá fora, mas tinha medo, na verdade, de que Lora, sua pequenina, frágil e melancólica Lora tivesse um final tão triste quanto o de sua querida e idolatrada Jill. O velho viu a filha partir e tomar o forasteiro pela mão, então foi tomado de um nó pesado na garganta. O dia em que Lora decidisse, realmente, partir dali e que alguém a tomasse pela mão daquela maneira e a levasse porta afora, ele não conseguiria fazer coisa alguma para impedi-la, ele sabe disso. Sente em seu coração o pesar de saber que, não tarda muito, a filha vai partir dali e no fundo ele deseja isso, deseja que a filha saia daquele fim de mundo que não é vida para ninguém, afinal. Será que Lora sabia disso? Mas em seu coração há também uma parte que insiste em querer que a filha fique ali, pelo menos até o dia em que ele feche os olhos e não abra mais e tenha certeza de que fez um bom trabalho de guardião enquanto pôde. Ainda perdido nesse devaneio, serve-se de mais um Scotch on the rocks, caminha até a Juke-box e põe a rodar outro blues, também muito apreciado por sua Jill, enquanto viva. “Ah, Jill, por que você se foi tão cedo?” - choramingou Thomas, entre pequenas lágrimas que começavam a brotar - “Você deveria estar aqui, querida, você sabe que eu não quero vê-la partir. Não quero perder Lora tão cedo quanto perdi você, meu bem. Quero, ao menos, ter a chance de dizer adeus à nossa filhinha quando ela decidir partir. Eu prometo a você, Jill, prometo que nada vai acontecer a ela, mesmo quando ela partir e eu não puder mais vigiá-la; você sabe disso, querida, você sabe, pois é você quem vela por todos nós, não? ” Dizendo isso, olhou para o retrato amarelado de Jill na parede e teve a leve impressão de vê-la menear a cabeça em sinal negativo. Depois balançou sua própria cabeça, como se repreendesse a si mesmo e disse: “Está certo. Está bem certo. É Ele quem cuida de todos nós, não você querida. Você não pode fazer mais nada e eu sei, Deus sabe que sei, o quanto você gostaria de poder fazer...” E ali ficou o velho Thomas, até muito muito tarde, até a hora em que o sono quase o embalou e ele decidiu ir para a cama.

*

Quando Frankie entrou no pequeno chalé que ficava nos fundos do bar, ficou surpreso. A casa era muito aconchegante, do estilo pré-fabricada, em madeira de carvalho. O chalé exalava um cheiro doce de madeira, que também vinha dos móveis rústicos. Em frente a uma poltrona e um sofá de dois lugares o fogo estalava na lareira; tudo realmente muito aconchegante. Enquanto Lora pediu alguns minutos para arrumar uns cobertores e travesseiros (o frio era intenso naquela região, segundo ela), Frankie viu que acima da lareira havia um quadro, pintado no estilo impressionista; representava uma paisagem distante; um chalezinho, muito parecido com aquele onde estava, na beira de um lago, um bosque, não muito denso, ao fundo, cisnes flutuando tranquilamente sobre a água e, ainda mais ao fundo, montanhas rochosas, cujos picos jaziam sob espessa camada de gelo. Um belíssimo quadro. Frankie foi se aproximando do quadro e leu, no canto inferior direito, o nome do pintor: Jill M. Flynn.

Pareceu a Frankie que Jill era uma mulher incrível. Criou a filha, educou-a em casa, tinha ótimo gosto para música e ainda era uma artista impressionante. “É uma pena que tenha partido tão cedo”, pensou. ‘Gostou do quadro?’, disse uma voz atrás de Frankie; ‘É impressionante, Lora. Sua mãe deve ter sido uma mulher e tanto’. Frankie respondeu, e não conseguiu se conter, então disse: ‘Você, provavelmente, herdou algum dom artístico também, eu suponho?’. Lora corou. ‘Vamos, não se envergonhe. Eu achei o caderno no armário de louças’. Ao ouvir isso, Lora o encarou como se tivesse sido invadida, como se Frankie tivesse entrado em sua mente e revirado tudo. Corou ainda mais forte, mas Frankie percebeu que era ódio, desta vez. Os olhinhos melancólicos chispavam e faiscavam de raiva. “Que garota - Frankie pensou – Todos os sentimentos dela atravessam a barreira do invisível pelos olhos” e sentiu novamente aquele gelo no estômago. ‘Desculpe, Lora, não queria te deixar nervosa. Se isso lhe conforta um pouco, eu não li nada além de um poema; só isso. E nem dizia nada que eu não soubesse sobre você ainda. Algo com você querer sair daqui. Isso qualquer um percebe só de te olhar. ’. Lora foi voltando, pouco a pouco, à sua cor normal. Resolveu relevar aquilo, afinal; se Frankie disse que leu apenas um poema ela acreditava nele. Se esforçou e sorriu (e, mesmo sendo forçado, o sorriso não lhe saiu menos natural).

Tomou Frankie pela mão e o levou aonde dormiria. Como sabia que o pai voltaria muito tarde, colocou o rapaz em seu próprio quarto, numa cama de solteiro que ficava do lado oposto à sua. Assim poderiam conversar até tarde, sem problemas. Quando Lora tentou se desvencilhar da mão de Frankie, ele a segurou mais forte e puxou para perto de si. Ela sem reação, ofegante de susto e emoção, talvez. Ele aparentemente muito calmo, tomou a outra mão de Lora e segurou entre as suas e colocou-as em seu peito. Depois passou uma das mãos dela para suas costas e colocou a outra em seu rosto. Ao toque daquela mão fria, macia e cálida em seu rosto, fechou os olhos, num gesto que transbordava ternura e carinho; algo que não sentira jamais, até aquele dia.

*

Lora estava ofegante, quase sem ar. Ninguém jamais tivera tamanha ousadia para com ela; e ela sentia-se até culpada, pois adorava aquela sensação. Seu rosto foi se aproximando do rosto de Frankie, seus olhos fitavam os olhos dele, ela via os lábios de Frankie, agora muito perto, sua barba mal feita, seus cabelos longos, então foi tudo esmaecendo como se ela estivesse prestes a desmaiar, mas então se deu conta que eram seus olhos se fechando. Então aconteceu.

Seus lábios encontraram os lábios de Frankie e ela sentiu instantaneamente um calor gélido, algo que não conseguia definir, tomar conta de todo seu corpo, como se uma onda de energia emanasse dos lábios dele e invadisse seu corpo frio. Ela o apertou mais contra si mesma, enquanto suas mãos acariciavam as costas e o rosto de Frankie. Jamais havia experimentado tal sensação em sua vida. De repente não havia mais o perigo de seu pai chegar a qualquer momento, não havia mais o olhar de sua mãe pesando sobre ela, não havia mais nada no mundo, só ela e Frankie e um blues que parecia emanar de dentro deles mesmos.

É difícil descrever o que Frankie sentiu naquele momento. Ele já havia estado com muitas garotas, de diferentes províncias, etnias, tamanhos, cores, umas com cheiro de hortelã outras de naftalina, outras, ainda, sem cheiro algum, somente carne. Beijá-las era algo tão simples, tão fácil, como se fosse uma obrigação antes de chegar a outro nível. Mas não com Lora. Céus, não. Quando seus lábios se encontraram com os dela, Frankie sentiu como se seu coração se expandisse, ou mais, como se seu coração renascesse, descongelasse; como se seu coração tivesse sido criado naquele momento. Ele já não sabia onde estava, o que havia à sua volta, não havia passado e o futuro pouco importava, ele poderia morrer naquele momento presente que era, sem dúvida, o melhor momento de sua vida. Foi como no primeiro dia em que decidiu pegar a estrada e sentiu pela primeira vez o vento em seus cabelos. Lora o apertava tanto e ele também a abraçava com força, como se o medo os dominasse, medo de perderem um ao outro, de uma hora para outra, como se fossem acordar a qualquer momento e descobrir que fora tudo um sonho. Ainda abraçados, apertados, quase fundidos, Frankie disse, ofegante: ‘Lora, eu quero me casar com você. Viver uma vida com você. Eu abdico da estrada, abdico do meu nome, da minha liberdade, de tudo. A verdadeira liberdade é esta, Lora, e eu me sinto culpado por descobrir agora, mas esta foi a hora certa, afinal. A verdadeira liberdade é estar preso a uma outra vida que vale mais que a sua própria e por sua vida eu daria a minha mil vezes se necessário, Lora. ’ Frankie disse isso tudo muito rápido, e foram tantas palavras que parou de repente e encontrou uma forma muito mais simples de dizer aquilo tudo; e, apesar de mais simples, parecia muito mais profunda e misteriosa. Olhou novamente os olhos melancólicos de Lora, que agora emitiam uma onda radiante de felicidade, passou a mão por seu rosto novamente, apertou-a mais forte contra si e disse: ‘Lora... Eu te amo’.

Lora sentiu seus olhos se encherem de lágrimas. Mas não eram lágrimas ásperas, dolorosas, pesadas, que queimavam seu rosto e torturavam sua alma. Não. Eram as lágrimas mais doces que jamais chorara em toda sua vida. A alegria (não: a felicidade; verdadeira, completa e perfeita felicidade) tomou conta de cada espaço do seu corpo. Ela sorria e chorava, a um só tempo. Tentou dizer alguma coisa, mas não conseguia, ela sabia que seus olhos diziam tudo o que ela queria dizer e tinha a sensação de que aquele homem sabia decifrá-la. Ficaram, durante muito tempo, abraçados, sem dizer mais nada, a não ser alguns suspiros de ‘Eu te amo’, repetidos muitas vezes seguidas, como se tivessem passado uma vida longe do outro (e tinham mesmo).

*

Thomas Flynn ouviu o ronco de um motor V8 e correu para a porta do bar. Viu o carro de Richard ao longe, com a silhueta de alguém no banco passageiro e um volume grande no banco de trás. Entendeu, então, que o dia chegara e sua querida Lora se fora, sem dizer adeus, sem, ao menos, sua benção.

Às 5h da manhã, Thomas Flynn despertou. Suava muito e ofegava. Um pesadelo horrível o assombrara. Foi à cozinha do chalé e serviu-se de água fria. Seria inútil tentar dormir novamente. Dentro em pouco teria de abrir o bar, estocar coisas e tudo o mais. A água tinha um estranho gosto amargo naquela manhã. Tentou recordar do pesadelo que o fizera despertar daquela maneira. Não lembrava muita coisa. Apenas fragmentos de cenas, no máximo. Um V8 Vinho fumegando longe, uma Juke-box no banco de trás, camas vazias, lençóis desarrumados, um horror. Voltou para o quarto para tirar o robe, colocou a roupa habitual de trabalho, penteou-se, lavou o rosto, beijou a foto de sua saudosa Jill e foi para o bar. Era ainda muito cedo para despertar a filha.

Quando chegou ao bar viu que Richard arrumava algumas coisas no carro. Saiu a seu encontro e surpreendeu-se ao ver Lora com ele, calibrando pneus, verificando óleo (a filha aprendera muitas coisas em tantos anos trabalhando ali). ‘Bom dia, papai’ – disse a pequena Lora, docemente, com seus olhinhos melancólicos cintilando e dando-lhe um beijo estalado nas bochechas gordas. ‘Bom dia, Sr. Flynn’ – disse Richard estendendo-lhe a mão. Thomas piscou. Não havia ainda assimilado as coisas. ‘Ora! – respondeu, estendendo também a mão ao rapaz – Já está indo tão cedo, filho?’. Richard hesitou. Olhou para Lora e, voltando-se novamente para Thomas, disse: ‘Não sem antes agradecer ao senhor e trocar algumas palavras mais’. ‘Está muito certo, então – disse Thomas – Vou lá dentro preparar um desjejum e conversaremos o que quer que seja’ e conclui a frase com um olhar estacado para Lora e um outro, rápido, para Richard. Thomas Flynn sabia, desde que acordara naquela manhã, quer perdera sua filha. Mas, pelo menos, poderia dar-lhe um último adeus, como era seu desejo.

*

Mais tarde, naquele dia, Thomas Flynn colocaria um blues na sua velha Juke-box, sentaria com os clientes mais antigos e mais chegados, pagar-lhes-ia um Scotch e choraria um choro doce e melancólico; e as lágrimas que derramaria seriam pela felicidade de ver a filha já crescida e livre e, ao mesmo tempo, pela tristeza de estar só novamente, tão só quanto ficara depois da partida de sua Jill, ou bem mais agora, pois já algo faltava naquele bar. Algo mais importante que os clientes, que o retrato de Jill, que a coleção de garrafas, mais importante que a foto do rock star famoso que passara ali muitos anos antes, algo muito mais valioso que tudo o que poderia haver ali de físico ou in memorian. Algo tão pequeno e tão simples e que o consolara tanto na partida de sua Jill. Algo que ele desejaria ver uma vez mais, pelo menos, antes de partir para o infinito encontrar-se com a falecida esposa. Um par de estrelas brilhantes e melancólicas haviam se apagado no céu de Thomas Flynn; duas estrelas, pequeninas e únicas, as quais formavam uma constelação a que chamava de ‘Os Olhinhos de Lora’.

A milhas dali uma voz dizia nos auto-falantes de um V8 Vermelho Vinho, acompanhada por duas outras vozes, todas distorcidas pelo vento de 110 milhas: ‘Always I’ll be there. ’ E nunca, na história do amor, que um dia alguém disse ser a história do mundo, houve uma canção tão verdadeira do que aquela fora naquele momento. E muitos anos passariam depois dali. Muitas milhas a percorrer, muitas estradas, muitos Estados, muitas províncias, vales, montanhas, planícies, paisagens muitas vezes novas, outras tantas repetidas, até que o destino quis sossego e optou por um chalé, pré-fabricado em madeira de carvalho, ao pé de uma montanha de pico congelado, com um lago à frente, lareira aconchegante... Um final feliz, muito parecido com o começo. Afinal, o que mais poderia acontecer?

E nos corações de todos os que viveram, ou tão somente conheceram, esta história, freqüentemente ouve-se o ritmo compassado, doce e melancólico de um blues quando tocado em uma antiga Juke-box.

William G. Sampaio [29/1/10] [Após alguns meses de gestação]

REFERÊNCIAS:

Lora Flynn ~> A que chora; filha do homem ruivo

Richard ~> Poderoso senhor

‘Frankie’ ~> Livre

William G Gardel
Enviado por William G Gardel em 29/01/2010
Código do texto: T2058284
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