Dia da saudade
 
Era sábado. Eu me lembro bem que estava escrito no calendário: "dia da saudade". Ao contrário do que se esperava, o parque estava quase deserto, apesar da tarde ensolarada. Havia poucas pessoas na praia  e também ao longo das trilhas de caminhada e nas ciclovias. Nas áreas de lazer, poucos frequentadores. Um e outro casal conversava aqui e ali à sombra das árvores. Minhas pernas me levavam sem rumo, e eu não tinha idéia do meu destino. Queria apenas um lugar tranquilo pra pensar na vida.
Bancos enormes em forma de meia lua circundavam o em torno do largo e os galhos das árvores se misturavam formando uma pérgula singular, sombreando todo o ambiente. Parei para contemplar a vista, mas, instintivamente, fechei os olhos  ao sentir o vento e respirei o cheiro do mar. 
Um raio de sol que intrujava entre as folhas me fez reabrir os olhos. Então deparei com aquela figura tão presente em meus pensamentos. 
Ela estava sentada do lado oposto, mais próximo da pista que separava o parque da faixa de areia. Usava um vestido longo, de cor bege, de abotoadura frontal e detalhes bordados no decote em V e uma sandália rústica agraciava-lhe os pés. Aquele traje dava-lhe um ar de serenidade e ao mesmo tempo sedutor. Cada vez que eu a via, ela estava sempre mais bonita. Mas naquela tarde, sentada no banco, de cabeça baixa, ela parecia absorta em seus pensamentos, contemplando alguma coisa que segurava nas mãos.
Me aproximei devagar e ela reagiu com calma me convidando pra sentar ao seu lado, como se estivesse me esperando, desejando a minha presença. Eu peguei na sua mão. Ela sorriu e me ofereceu a boca. Beijei-lhe o lábio inferior, brinquei com o seu queixo e senti os seus poros transpirando nas minhas narinas. Seu perfume de mel atingiu-me o âmago. O beijo fluiu como jamais tinha acontecido.
Tanta coisa foi dita naquele beijo. Gestos cheios de saudade. A batida do coração era a nossa trilha sonora. Tudo parecia girar a nossa volta e que o mundo assistia em plano alto o nosso momento. 
Não sei quanto tempo durou aquele beijo. Mas é certo que nenhum de nós dois queria que ele terminasse. Naquele beijo havia perguntas sem resposta, desejos reprimidos, coisas e coisas a lamentar, um gozo intenso de felicidade, a sensação de um momento único, jamais vivido por nós dois.
Terminado o beijo, depois de um tempo abraçados, eu percebi um foto caida no chão. Caiu no instante que a beijei. Apanhei-a e olhei o belo rapaz cujo rosto parecia familiar. Diante da minha expressão interrogativa, ela sorriu , segura de si, me encarou e, passando a mão na minha face, com toda calma do mundo, me disse:
- Esse é o outro homem da minha vida: seu filho. 
Olhei, confuso, e enquanto ela sustentava aquele sorriso cativante, eu perguntava, perplexo:
- Meu filho?!
Espantado, eu me dei conta que ela já havia morrido a dezoito anos atrás. Minha reação imediata foi sair correndo. Mas algo mais forte me segurou ali. Ela soltou uma gargalhada que por segundos me passou fantasmagórica. 
- Calma, ela disse, - Você não está tendo um pesadelo. Ele é seu filho. Entendo o seu espanto. Ouça. Eu não morri.  Aquele encontro no cemitério, a lápide, eu forjei tudo para deixar você livre pra seguir o seu caminho. Eu não podia continuar atrapalhando a sua vida.
Ela prosseguiu:
- Eu superei todas aquelas perdas e fiquei livre da minha doença porque decidi viver. Este rapaz é uma espécie relíquia que eu guardo de você.
- Mas como ele pode ser nosso filho, se eu nunca de toquei? Naquela tarde que você me implorou para fazer amor com você, mas como você estava muito frágil, eu me neguei...
- Tolinho, ela retrucou - Ele é fruto daquela tarde no escritório, lembra?
- Aquilo foi só um devaneio, eu disse, duvidando das minhas próprias palavras - Eu lembro de ter acordado uma tarde, no escritório, com o barulho estridente da cirene dos bombeiros. Estava suado e deitado no sofá. O escritório estava vazio e eu achei que tudo era um sonho. Por que você brinca assim comigo?
- Não foi um sonho querido. Você mandou a secretária mais cedo pra casa. Queria ficar sozinho. Não sei o que passou pela cabeça dela, mas ela me apontou a sua sala, se despediu de mim e foi embora. Você estava extremamente vulnerável naquele dia. Eu, literalmente me aproveitei de você. Você estava exausto naquela tarde. Adormeceu. Saí antes do você acordar
- Como você pôde fazer isso comigo? Esconder meu filho, nosso filho?
- Você nunca tocou no assunto e sempre agiu como se nada tivesse acontecido. Eu não entendia porque. Mas agora, eu entendo. Pra você, não aconteceu absolutamente nada.
- Me dê um tempo, pedi - pra digerir isso tudo. Como eu podia imaginar isso tudo? logo hoje, no "dia da saudade"... onde ele está? onde?...
Uma voz bem longe me chamou baixinho:
- Daddy, daqui a pouco eu tô indo!  Era minha filha caçula, de dezoito anos, que estava  indo trabalhar. Eu precisava levá-la no ponto, às cinco e meia da manhã.
Levantei depressa com o coração batendo acelerado. Mas o sonho perseverava perturbador na minha cabeça. Cada passo meu, na rua, era com como seu estivesse me afastando daquele lugar onde eu havia feito aquela descoberta inusitada, esperando que o sol alvorasse sobre a minha cabeça dirimindo as minhas dúvidas e me aforreasse do meu dilema. Por horas eu fiquei perdido entre o real e o imáginário.




Dia da Saudade: 30 de janeiro.