AMNÉSIA

A discussão começou no quarto. Em seguida passou para o banheiro, depois para a cozinha e finalmente atingiu o clímax na copa, durante o café da mnahã. Só acabou, por assim dizer, quando Dirceu, o marido, levantou-se com a fisionomia transtornada de ódio e proferiu a fatídica frase final, aquela que encerra qualquer discussão entre marido e mulher:

– Agora chega! Eu não aguento mais! Esse casamento já deu o que tinha que dar. Vou embora pra nunca mais voltar. Quero o divórcio.

O silêncio que se seguiu foi quase constrangedor. Aquela frase dita daquela maneira foi como uma tapa no rosto de Marília, a esposa. Ela abriu a boca como se fosse dizer algo, por fim deixou cair o pedaço de pão que levara à boca e colocou ambas as mãos no rosto. Sua fisionomia ficou lívida, suas pernas tremeram e ela não conseguiu conter as lágrimas.

Dirceu permaneceu impassível. Deixou que as lágrimas da esposa escorressem livremente por alguns minutos, até criar coragem para falar:

– Eu sinto muito que tenhamos chegado a esse ponto. Mas não dá mais. Nosso casamento acabou, não vale a pena continuar com essa farsa por mais tempo. Estou indo embora, não tenho condições de continuar dividindo a mesma cama com você, Marília. Dessa vez é pra valer. Depois mando alguém pegar minhas roupas.

A mulher ouvia atônita, parecia que nem era com ela. Pensava nos quase quinze anos de vida em comum, resumidos naquele "não vale a pena continuar com essa farsa por mais tempo". Então era aquilo, para ele tudo não passara de uma farsa...

Marília não disse uma única palavra, até que ele saiu da sua presença. Estava em estado de choque, mas assim que se viu a sós, proferiu as palavras que marcariam para sempre a sua vida dali por diante:

– Se você pensa que vai me jogar fora assim, sem mais nem menos, depois de ter me usado por quinze anos, está muito enganado! Você ainda vai voltar por aquela porta, nem que seja dentro de um caixão!...

Nem bem ela acabara de falar, a fotografia do casamento dos dois, que ficava pendurado na parede da copa, caiu no chão com um estalo seco, espatifando o vidro e rachando a moldura. Marília levantou-se assustada.

*

Dirceu saiu de casa contente, apesar da briga. Nem olhou para trás quando cruzou o portão da garagem, naquela que achava ser a última vez. Saiu com o carro, festejando intimamente a própria atitude. Finalmente criara coragem e fizera o que já deveria ter feito meses atrás. Agora era só falar com Regina... Ela iria gostar da notícia.

Dirigia apressadamente, louco para chegar ao escritório e se trancar em sua sala com a secretária. Pela manhã não havia muita gente por lá, quem sabe eles não poderiam namorar um pouco, antes que os colegas de trabalho chegassem... Ela estaria bem acessível, por conta da novidade...

Tão imerso em seus próprios pensamentos estava que nem notou que o imenso caminhão de lixo a sua frente freou repentinamente. Se não estivesse tão distraído, teria conseguido evitar o acidente. Mas Regina ocupava toda a sua mente naquele momento, e o cérebro não conseguiu enviar o comando a tempo de frear o carro. Quem viu, disse depois que foi uma batida muito feia.

*

A recuperação foi lenta e difícil. Estava sem o cinto de segurança, o que fez com que sua cabeça se espatifasse contra o parabrisa do carro. Isso lhe causou um traumatismo craniano, e, de quebra, uma amnésia total. Não conseguia lembrar-se de nada, nem ao menos sabia quem era. Além disso, teve a coluna cervical atingida, e isso significava que talvez nunca mais voltasse a andar.

Marília, a princípio, desesperou-se. Lembrou-se do que desejara imediatamente após Dirceu sair de casa naquela manhã, e sentiu remorso. Pediu a Deus perdão pelo que pensara, tinha certeza que fora ela a culpada pelo acidente. O retrato quebrado não a deixava esquecer. Mas depois de algum tempo, pensou que talvez tivesse sido melhor assim. Dirceu havia saído de casa disposto a não voltar mais. Ela sabia que ele tinha uma amante, apesar de não saber quem era, mas agora ele estava entrevado em cima de uma cama, e amante nenhuma ficaria com alguém naquela situação. Ele estava ali, ao alcance de suas mãos, totalmente carente e dependente dela. E o que é melhor, não lembrava de nada do que dissera na manhã do acidente. Positivamente, Deus escreve certo por linhas tortas, era o que ela pensava.

Decidiu assumir que amava aquele homem, mesmo naquela situação delicada. Depois do tempo de internação, que se estendeu por dois longos meses, ela o trouxe de volta para casa. No hospital, os dois filhos do casal quase não puderam visitar o pai, pois Marília achava melhor que eles não o vissem com o rosto inchado e deformado do acidente. Somente depois de duas cirurgias plásticas para acertar as cicatrizes que restaram foi que Marília levou os dois garotos, um de nove e outro de onze anos para ver o pai. O que também não adiantou muito para a recuperação da memória de Dirceu. Ele continuava completamente desmemoriado. Vez por outra lembrava um nome, e nessas horas a esposa congelava de medo de que sua memória retornasse por completo, mas ficava nisso.

A vida foi sendo reestruturada segundo os novos valores. Marília cuidava de Dirceu como se ele fosse seu bem mais precioso. Não havia quem não notasse o zelo da esposa para com o seu marido paraplégico, de como ela tratava pessoalmente de tudo o que se referia ao seu bem estar, sua comida, suas roupas, os passeios pelos parques e shoppings. Aos sábados ela o levava de carro à fisioterapia. Os médicos não haviam perdido a esperança de que um dia ele voltasse a andar.

Por dentro, Marília achava que Dirceu era como uma casca vazia, a espera de ser preenchido. Não havia sentimentos nem lembranças, só o vazio e a falta de identidade. Ele não sabia qual o seu prato favorito, nem que banda gostava de ouvir ou qual o seu escritor preferido. Aos poucos, porém, foi se acostumando a ouvir as sugestões dela, sempre muito solícita e equilibrada, a lhe guiar por aqueles momentos de tormenta e dúvidas. Sem Marília e as crianças, ele não teria conseguido suportar os tratamentos que se seguiram.

Às vezes, na fisioterapia, quando fazia algo pela primeira vez, como mover o dedo do pé, ou dar dois passos com a ajuda de uma muleta, era ela quem se alegrava com ele e os dois voltavam para casa sorrindo e cantando para as pessoas que passavam na rua, como dois loucos. Aos poucos sua dependência foi se transformando em amizade, até que ele percebeu que estava apaixonado... Por sua própria esposa.

Havia se passado três meses desde que saíra do hospital, quando percebeu que algo diferente estava acontecendo. Estavam no banheiro, e ela passava o escovão em suas costa. Vestia uma camiseta de malha branca, colada ao corpo por causa da água que ele jogara nela, de brincadeira, e a visão dos seios de Marília despontando de dentro do tecido mexeu com ele. Ficou encabulado ao ver que era uma ereção. Desde o acidente que não sabia o que era sexo. Marília, ao notar o que acontecia, entrou na banheira e começou a deslizar suas mãos suavemente pelo corpo do marido, numa carícia envolvente. Quando deram por si, estavam ambos nus, se entregando àquele amor renascido das cinzas. Foi como a primeira vez para eles. Era amor, era gratidão, era desejo, era carinho, era tudo o que um amor entre um homem e uma mulher poderia ser. Depois do êxtase, ficaram abraçados por um tempo que nenhum dos dois poderia determinar ao certo, em silêncio.

A partir desse dia, a recuperação de Dirceu foi muito mais rápida. Em pouco tempo ele voltou a andar, e mesmo com a ajuda de muletas, sentia-se feliz em poder passear perto de casa.

Num desses passeios, quando estava com Marília, ouviu alguém que o chamava e se voltou. Marília reconheceu a loira exuberante que parou o carro ao lado deles e sentiu medo: era Regina, sua ex-secretária. Ela sempre desconfiara que ele e Regina fossem amantes, e talvez até fosse a verdadeira causa dele ter saído de casa naquele dia fatídico.

Regina cumprimentou os dois e perguntou como estavam. Dirceu não pareceu reconhecê-la, trocaram mais algumas gentilezas e a loira foi embora. Mas Marília percebeu os olhares inquietantes que ela lançava para seu marido. Uma mulher sempre percebe essas coisas. Ele, porém, parecia completamente inocente e imune aos encantos da sua ex-secretária.

Foi aí que Marília teve certeza que ele a amava como antigamente e nada poderia destruir o amor que eles construíram sobre toda aquela tragédia. Era um amor que renascia forte e seguro, e nada ou ninguém poderiam abalar a confiança e a felicidade que estava sentindo ao lado do seu marido. Ela sorriu enquanto eles voltavam para casa.

– Do que você está rindo? – ele perguntou, apoiando-se nela para atravessar a rua.

Ela o olhou, apertou sua mão entre as dele e disse:

– Estava me lembrando o quanto você foi maravilhoso na noite passada.

– Jura? Ah, mas você não perde por esperar – cochichou baixinho no seu ouvido, deixando-a arrepiada – Hoje será muito melhor...

Os dois riram abraçados.

– Senhor, faça com que meu marido nunca recobre a memória. Eu não sei o que ele faria se conseguisse lembrar daquele último dia... – ela pensava.

– Deus, que ela jamais descubra que eu nunca perdi a memória, foi só uma chantagem mesquinha da minha parte. Eu amo essa mulher e não suportaria perdê-la... – ele pensava.

E foram-se os dois para casa, entre felizes e preocupados.