Abril

Recostada na poltrona perto da janela, ela pensava sobre o tempo, enquanto a chuva caía impaciente na vidraça, e o barulho ajudava a preencher seu próprio vazio. O tempo; impassível. Com seu cronograma infalível que nos lembra do movimento dos dias, todos os dias, o tempo é majestade ordenando nossas emoções, dizendo-nos o que deve e o que não deve ser considerado.

Lembrou-se que tinha sempre alguma vontade. Um redemoinho de vontades acontecia em seu coração a todo momento. Já teve vontade de quase tudo. A algumas se permitiu, outras enterrou tão fundo que nem se lembrava mais.

Na casa fria não se ouvia nada. Só o borbulhar de suas próprias entranhas a lembrava de existir. Levantou-se da poltrona e ficou observando a rua, sentiu-se tão estranhamente profunda que quase parou de respirar, quis ter a sensação de asfixiar-se. Precisava urgentemente de espaço.

Queria ser irreal. Aquela casa branca, limpa e grande não lhe cabia mais. Era espaço de mentira. A realidade das medidas a estava sufocando.

Então decidiu. Era abril, e o tempo parou. Os segundos não se importavam mais em passar naquela noite. A cidade toda dormia, e ela era sua única companhia.

Deu uma última olhada. As janelas fechadas. Mas agora ela esperava. Esperava o quê? O bonde passar. O bonde do começo dos tempos, talvez. Nunca mais esperaria tanto.

Sentiu um vento frio entrando por debaixo da porta, e suspirou buscando coragem. Desceu as escadas devagar, como quem se esconde de uma doença. Ia cautelosa, degrau por degrau. Cada passo que ficava era uma pegada instantânea, como um perfume, um relâmpago, uma tentativa. Cada passo que avançava era o peso do concreto quebrado, do navio quebra-gelo, do deslizamento de terra.

A madrugada estendia seu manto enquanto ela caminhava pelo calçamento. Havia uma espécie de névoa gelada misturada à chuva fria. Tudo igual ao dia anterior, com aquele cheiro de folhas mortas. Caminhava olhando para o chão procurando nas sombras algo que não se encontra; só havia umidade.

Apesar da densidade do ar frio cortando o rosto, ela sentia um tornado começando a se formar no peito. Não sabia exatamente por que, mas os indícios claros da tempestade a assaltavam. Seu corpo estava quente, ardia com os pingos finos da chuva.

Ela sabia-se bonita e desejável, quase frívola, e isso deixava tudo mais fácil. Sentiu os pelos eriçados, numa mistura de medo e prazer. Era livre, perigosamente livre. Os cabelos escuros, molhados, gotejavam na blusa fina marcando a silhueta de uma mulher densa. Ela era toda escuridão, umidade e calor, e seus olhos ardiam. Nesse exato momento, algo muito comum a rondava, uma necessidade, um apelo.

Ia caminhando como quem vai ao parque, não tinha medo do mundo, tinha medo de si mesma. A respiração estava acelerada, o coração aos pulos, e, apesar do frio suas mãos suavam. Isso dentro dela era uma realidade que a acompanhava desde sempre, esfacelando sua sanidade, e seu tornado interior não podia mais ser contido.

O desconhecido que ela estava procurando nas sombras a chamava, como o eco de um grito infinito.

Então, no final da rua ela viu uma porta aberta, entrou no pub fedorento e percebeu o mundo à sua volta.

Lá dentro era abafado e escuro. E ela era agora ainda mais escura e quente. Os olhos ferozes, vasculhando a temperatura, algum gosto diferente.

Caminhou até o balcão, misturando-se ao barulho, esbarrando nas pessoas e pediu uma bebida para analisar as possibilidades. Todos os seus sentidos estavam aguçados, a tempestade dizia a ela que estava chegando. Precisava ser rápida.

Tentou perceber os cheiros, os humores, tentava preencher o vazio da sua alma que doída terrivelmente. Em pedaços, ela havia esperado até aquele dia, mas sabia que a espera nunca teria fim. A sua necessidade não seria satisfeita. Em noites chuvosas como aquela, quando tudo dentro dela entrava em colapso, era imprescindível saciar sua vontade, completar o copo com mais uma dose de descontrole. Sua dor era inacabável.

E, no fim era só ela. Amava o desconhecido, amava quando sua vontade beirava o precipício, porque era justamente o que ainda a mantinha viva.

Então, fechou os olhos por um minuto, num suspiro profundo de reconhecimento e decisão. Pôde sentir seu corpo aumentando, inchando com os cheiros do ambiente, com os olhares curiosos.

Mas, antes de abri-los novamente, um par de olhos fixos espreitava sua nuca suada. O magnetismo daquele olhar incógnito era suficiente para dizimá-la, e antes que pudesse aliviar sua intensidade entregando-se àquele momento, o cheiro da respiração fria do observador a sufocou.

Todo o seu corpo reagiu. Tudo agora era lento e ritmado, como uma dança. O movimento do ar na respiração dele era suave em torno do pescoço dela, e acalmava seu calor, como morfina. Os olhos que a espreitaram ardiam agora profundamente em sua pele.

Como se o tempo parasse, como se a procura parasse, ela se virou e o mundo ficou mudo.

Dentro dela o tornado explodiu. Alheia a todo o resto, ela testava o espaço entre eles, sentindo que o ímã do centro da Terra agia sobre seu corpo, mantendo-a no lugar. Já estivera admirando o nada por muito tempo, já observara o desfiladeiro de cima de uma pedra afiada, já correra pelo fio de uma navalha. Mas nada do que tinha esperado um dia encontrar podia ser comparado àquele momento.

Finalmente era presa voluntária dentro dos olhos dele. Ela queria aquilo, precisava dele, o havia esperado desde sempre. Ele era mais do que sua necessidade, mais que o precipício, que o desconhecido. Ele era o próprio tornado.

Ele a examinava, com seus olhos antigos, duros. Dentro dele não havia dúvida, nem clemência. Ela já lhe pertencia, e ele a esperava há muito mais tempo.

Num movimento rápido ele apanhou seu braço com a força exata de uma queda d’água e a trouxe para mais perto. O perfume dela era melhor que as fragrâncias mais refinadas que já sentira, e sua pele tinha o calor que somente a escuridão pode emprestar. Não havia mais o tempo, nada mais o impediria. Calou seus desejos nos olhos da mulher e encontrou o conforto cuja existência nunca antes ele havia aceitado.

O tempo que foi seu companheiro, seu algoz, era agora sua recompensa. O tempo era ele nos olhos dela, toda sua solidão refletida, e ela era sua. O pub ficou imenso de repente, com espaços inteiros, suficientes para caber um pedaço daquele mundo particular.

Será que era assim? E se não sobrevivessem? E se estarrecessem de susto? Nunca saberiam. Ela mesma já não existia, e ele só existia a partir dela; o avesso de uma costura. Finalmente. Enfim.

KCP

KCP
Enviado por KCP em 15/01/2010
Código do texto: T2031006
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.