Antes de o trem partir
Na maioria das cidades interioranas o meio de transporte utilizado desde sempre foi o trem. E Odete viveu todas essas aventuras, acompanhando os pais em suas viagens frequentes; ora à capital ora a cidadezinhas próximas.
O pai, português, comerciante, levava os filhos nas viagens para não os deixar sozinhos, ou por não confiar em criados. Embora todos os criados fossem de extrema confiança. É bem possível que por nenhuma dessas hipóteses, mas por simples capricho de ter a prole como companhia.
Sempre chegavam à estação pelo menos uma hora de antecedência. Dizia o velho português: “a chegar cedo não corro o risco de perder o comboio.” Na estação havia uma pequena praça de alimentação na qual, enquanto esperavam o trem fartavam-se com o delicioso pastel. Depois, logo a frente um jardim bem cuidado com bancos era o local apropriado para os mais novos brincarem e as pré-adolescentes olharem os rapazinhos, que também com os pais aguardavam o trem. Trocavam olhares e surgiam até alguma paixão infrutífera aos olhos adultos. Era, na verdade, uma alegria para todos.
Odete a mais velha da prole, contava à época com quinze anos. Muito bonita, graças aos traços fisionômicos da mãe. O pai não pode contribuir em nada, aliás, por sorte: cabelos desgrenhados, bigode avantajado e com aparência sisuda. A mãe, no entanto, deu a Odete cabelos lisos castanhos claros, sobrancelhas bem contornadas e uma silhueta de mulher puramente brasileira. Portando esses predicados, Odete promovia o encantamento de muitos rapazotes naquele jardim, pelo menos uma vez por semana. O pai tinha que abastecer o armazém e às vezes entregar alguma encomenda, o que o forçava a estar naquela estação toda semana.
O primeiro beijo de Odete aconteceu naquele jardim, regado a romantismo e medo. Mas um medo que queria sempre desafiá-lo. Vinham-se flertando há dias, meses, até que o filho do tabelião, Alexandre, sentiu o gosto daqueles lábios sedentos. Na véspera em que o pai marcava viagem, Odete passava a noite em claro, arquitetando reencontrar Alexandre e entregar-lhe mais um beijo. Mas, seria um beijo diferente: mas demorado, sem tanto medo – com gosto de pecado.
Na semana seguinte o pai marcou outra viagem. Odete se preparou, vestiu a melhor roupa e foi para a estação na esperança de estar com Alexandre. Houve a frustração: não coincidiu o dia de o tabelião viajar. Odete achou que nunca mais veria Alexandre. “Ou será que ele não havia gostado do beijo?” – indagou-se, em silêncio, durante toda a viagem. “Mesmo que ele não tenha gostado, permita-me Deus que eu possa pelo menos vê-lo, ainda que de longe.” – suplicou em casa, depois da viagem, em seu quarto.
Após dias, o português chegou à noite e anunciou que pela manhã viajariam. Odete do quarto ouve o anúncio e desce esbaforida:
- Mas o senhor irá duas vezes nesta semana? Interrogou Odete.
- É filha, tenho uma entrega e preciso repor uma mercadoria que acabou ontem.
Odete voltou para o quarto e preparou a roupa que usaria no dia seguinte. Pela manhã, o português entrou nos quartos acordando a todos. Odete não estava. Preocupado, desce as escadas às pressas para procurá-la. Sentada, bem produzida, Odete já os aguardava.
- Assustei-me quando notei seu quarto vazio. O que foi não dormiu bem? Pergunta o pai sem encará-la.
- Dormi muito bem, pai. Simplesmente acordei cedo. Responde Odete com firmeza.
O português desta vez olhou-a de cima a baixo e apenas disse:
- Vamos tomar o café para sairmos.
Chegaram à estação. Odete não quis - contrariando os costumes de outrora - comer pastel. Foi direto para o jardim e Deus ouviu a sua súplica: lá estava Alexandre num terno chumbo e gravata cinza. Ao virarem-se, os olhares se cruzaram; ele abriu um largo sorriso e veio caminhando de encontro a Odete. Sem dizer palavra fitou-a por longo período, beijando-a ardentemente em seguida. Odete entregou-se como sonhado; beijou-o demoradamente.
- Odete achei que você não queria mais me ver? Indagou Alexandre sem desfitar os olhos de Odete.
- Viajamos há três dias. Procurei você por todo este jardim. Diz Odete como se reencontrasse o paraíso.
- Não viajamos. Meu pai tinha afazeres no cartório. Justificou Alexandre.
Viajaram em vagões diferentes. Alexandre passou por duas vezes no vagão em que Odete viajava – queria vê-la, ainda que em silêncio. Odete olhou-o com doçura correspondendo-lhe a ternura estampada naquele rosto juvenil: sentiam-se apaixonados e queriam viver aquela paixão com intensidade. Mas, a paixão e o amor demandavam de ditames dos pais, de aprovação, como se os filhos fossem mercadorias alienáveis.
A mãe de Odete, requintada e observadora, já havia notado as trocas de olhares, até assistiu uma vez, no mesmo jardim, Alexandre tocar os lábios de Odete num beijo demorado. Fingiu não ter visto, procurando evitar complicações com o exigente e incompreensível português. Entretanto, em breve, aliás, o mais breve possível, precisava conversar com a filha. Aproveitou então o dia em que o português disse-lhe que demoraria chegar, pois, iria jogar cartas na casa de amigo.
- Odete – disse a mãe – preciso falar com você de uma coisa que vem incomodando-me muito e não posso mais retardar.
Odete gelou-se toda. Nem terminou o jantar; foi para o quarto, deixando a porta entreaberta para que a mãe não precisasse bater quando subisse. Logo, a porta foi-se abrindo vagarosamente e vislumbrando a imagem de sua mãe.
- Vou direto ao assunto, Odete. Disse a mãe transparecendo tranquilidade.
- O que foi mãe, diga logo, estou aflita! Odete balbuciou com os lábios secos e sem cor.
- É sobre você e o filho do tabelião. O que há?
- Somos amigos, mãe. Respondeu objetivamente Odete.
- Filha, sua mãe teve a sua idade e, claro, também paixões. Não tive seu pai como único amor... Desta vez a mãe mantinha uma voz mais firme e com tom acima do normal. – Digo-lhe mais: amigos não se beijam como os vi se beijando. Estou preocupada com o seu pai quando chegar-lhe aos ouvidos esse namoro escondido e o pior: ele não é muito afeto ao tabelião, o que certamente o fará desaprovar qualquer investida de namoro. Por esta razão aconselho-a o quanto antes se afastar desse rapaz, para o bem de toda a nossa família.
Odete cabisbaixa apenas ouvia, tentando controlar as lágrimas que insistiam em rolar-lhe face afora. Teria que desfazer tudo aquilo que naquele momento era a razão de sua existência – amava Alexandre e não tinha dúvidas, queria-o. Mas lutar contra o pai era tarefa quase impossível; continuar com aquela farsa, encontrando com Alexandre às escondidas e fingindo para todos – principalmente o pai – que não havia nada entre eles também a incomodava. Não queria aquilo. Se pudesse fugiria para bem distante; um lugar que somente Alexandre soubesse para que o quanto antes fizesse o mesmo.
Encontrou-o outras vezes no jardim da estação, com medo redobrado e a paixão e o amor triplicados. Mas não conseguia apenas vê-lo sem que lhe beijasse aqueles lábios carnudos; não o substituiria por nenhum outro, ainda que por imposição do pai. Renunciaria a tudo, menos ao amor de Alexandre.
Meses após, por intermédio de um freguês, o pai descobre tudo sobre os encontros de Odete com o filho do tabelião – o qual tanto odiava. Odete foi levada pelo pai, contrariando as súplicas da mãe, para a casa de uma tia numa cidade distante, dificultando-lhes os encontros. Mas para o amor não há barreiras; os encontros, embora mais difíceis, continuaram. Odete engravidou-se. O pai, áspero, possessivo, jurou matar o filho do tabelião ou a quem o impedisse de fazê-lo. O tabelião ciente da fúria do inimigo português não teve alternativa senão enviar o filho para um estado distante, aconselhando-o – impondo-o, não aparecer mais naquela cidade e não revelar o seu endereço a ninguém, inclusive ao pivô de tudo: Odete.
O filho de Odete nasceu e cresceu sem conhecer um tio, os avós. Já adolescente trabalhava e auxiliava a mãe. Odete envelhecia a cada dia, mas, ainda, esperançosa de um dia receber pelo menos uma carta de seu único amor. Não recebeu.
O sol escondia-se atrás das montanhas, colorindo aquela tarde. Odete de cócoras, olhos grudados no túmulo, perdia-se em pensamentos e emoções, enquanto vem chegando pé ante pé, o filho e carinhosamente diz-lhe:
- Vamos mãe, o trem não tarda!
Odete, em silêncio, levanta-se com certa dificuldade e caminha lentamente até ganhar o portão central de saída. Para, lança a última olhada e diz quase cochichando: “estarei com você em breve...”