PECADOS...POR AMOR
PECADOS...POR AMOR
III
Inolvidáveis momentos estes, iriam ser guardados no memorial das coisas boas da vida. Agora, que o tempo se apressa para o final das férias, das idílicas férias, a saudade começa a desenhar-se e se Célia e Leandro começaram a intui-la, a avó Zulmira desde o primeiro minuto que a sente, mas por razões bem diferentes. A neta nunca se havia ausentado de casa tanto tempo e embora saiba que está bem acompanhada, precisa de retomar as rotinas quotidianas. Zulmira todos os dias mostrava preocupação e conjecturava com o marido se a neta estaria bem.
- Estou preocupada. Célia nem por uma única vez telefonou. As férias deles estão a chegar ao fim e nada... Não sabemos se estão bem, se não estão e o que eu acho mais estranho, é que tu nem por uma única vez mostraste preocupação!
- Ora, ora…Se estivessem mal, já há muito se teria sabido. Eu só me queria na idade deles e nas mesmas condições…Quando éramos novos a juventude era vivida com muito mais discrição e até repressão quando se beliscavam os valores defendidos à época e oportunidades como a que eles estão a viver, quase nem existiam. Eu, pelo menos nunca a tive, nem tu. A educação de pais para filhos não tinha nada a ver com a de hoje e se observares o nosso passado de namorados, nós só nos encontrávamos enquanto havia sol acima do horizonte. Nosso primeiro beijo aconteceu já namorávamos há uns meses e foi tão fugidio que mal ficou a lembrança. Recordas-te?
- Até as pernas me tremeram quando mo pediste…
- Sol-posto e a tua mãe já manifestava preocupação. Hoje é tudo mais permissivo. Terá vantagens e desvantagens. Os pais tutelavam os filhos demais, creio, e não lhes sobrava um mínimo de liberdade de acção ou escolha. A maioridade chegava muito mais tarde e toda a responsabilização pela sua conduta caía nas costas dos educadores em vez de incidir no próprio. Os conceitos de educação de agora autonomizam e responsabilizam os filhos e acho isso bem. Os filhos não são de ninguém. Para bem, deveriam ser os educadores a fazer a transição pacífica das responsabilidades e nunca estas acontecerem por conquista dos educandos. Eu hoje tenho um conceito de educação com abertura e por isso nunca mostrei preocupação. Acredito na nossa neta e no namorado. Cabe-lhes saberem conduzir a sua juventude do jeito que mais gostam sem abdicarem de serem responsáveis. Liberdade com responsabilidade é o meu lema, embora reconheça que não se pode aplicar a toda a gente, porque o conceito de responsabilidade é muitas vezes tão volátil que a mesma descamba para desmandos. Acho que é aqui que está a maior dificuldade da educação, a par de outras não menos importantes e que os educadores relativizam. Percebeste agora porque nunca, mas nunca, estive preocupado com a nossa neta?
- Gostaria de ser como tu despreocupado, mas acho que talvez nunca o chegue a ser. Minha mãe não me ensinou a ser responsável e pelo que ouvia dizer-lhe, a minha avó ainda teria sido muito mais repressiva. Na verdade, sentia-me amordaçada e verdadeiramente liberdade só a tive quando nos casámos. Até aí, senti muitos constrangimentos. Recordo-me da primeira vez que fui menstruada. Senti tanta vergonha que não contei nada à minha mãe. Ela não me preparou para isso e eu já tinha catorze anos…cheguei a ter medo e contei à minha prima Tita que me tranquilizou por ela já ser menstruada há mais de um ano e me dizer que agora iria ser assim todos os meses. Foi um alívio que nem queiras saber… Não fosse ela, e não sei como iria sair daquilo. Na primeira vez que me aconteceu não foi abundante mas ainda assim deu para me preocupar e para esconder da minha mãe. As cuecas deite-as fora para que ela não soubesse, mas no mês seguinte e já informada da Tita, deitei as cuecas ensanguentadas na bacia da roupa suja para que a minha mãe as visse e sabes o que ela me disse? - Zulmira, tu agora já és uma mulher, doravante não te podes aproximar de homens ou rapazes, percebeste? Foi esta a educação sexual e íntima que levei até ao casamento. Felizmente, hoje tudo é diferente e eu mesma preparei a nossa neta para estas realidades. Mas não se ficaram por aqui os sinais de repressão ou constrangimento. Mesmo na cozinha, a minha mãe nunca me preparou para a vida de casada. Faltavam para aí duas ou três semanas para nos casarmos quando ela entendeu que era chegada a hora de aprender o básico. Parecia que não confiava nas minhas capacidades para desempenhar como ela, as tarefas domésticas. Que conceitos tão mesquinhos!!! Com a nossa neta, nada da educação que me foi passada se transmitirá e por ti, ainda seria mais permissiva, mas também não a quero nas bocas do mundo. Sabes como é o povo e especialmente a vizinhança…dar-lhe dicas até onde pode ir, acho que a ajudará a conter desejos e impulsos mais avançados. Também não gostava de ver o nosso nome badalado na praça, pela negativa.
- Cada um responde por si. Tudo o que ela fizer de bom ou mau, será da sua responsabilidade.
Posto que a conversa sobre conceitos de educação não vislumbraria um fim, Adérito resolveria atalhá-la, direccionando-a para banalidades do dia-a-dia.
Sem notícias dos namorados, a chegada será sempre uma surpresa mas o tardar dela angustia Zulmira, nada habituada a ausências tão prolongadas da neta. As únicas ausências e de apenas dois dias estiveram relacionadas com um passeio de fim de ano quando Célia finalizou o nono ano e uma outra num passeio organizado pela comunidade religiosa e patrocinada pelo clero local, extensivo a todas as catequistas e coros, que os levaria até Santiago de Compostela. Fora isso, a neta esteve sempre muito perto o que, em abono da verdade, nunca trouxera vantagem alguma, às partes. As dependências e os dependentes fragilizam os egos, manietam a mobilidade e estrangulam o desenvolvimento. Neste particular, Adérito era sensível ao crescimento generoso da personalidade da neta e não o era por ter bebido dessa educação, mas por a não ter tido. Sentiria na pele mordaças de ressentimentos quando retrospectivava a sua adolescência. Algumas actividades de jovens, nomeadamente jogar futebol, era severamente reprimida pela mãe, alegando esta que lhe faria mal por se cansar. Quando ia a festas o regresso far-se-ia em função de horário pré-marcado. Enfim, a sua educação fá-lo-ia sentir-se tão amordaçado que a mãe já não precisava de lhe fazer recomendações porque ele mesmo já as havia intuído. Foi quiçá, por ter tido uma educação apertada sobre coisas tão simples como jogar futebol ou ir a festas, que ele não prescreve para a neta recomendações a cumprir, mas apenas sugestões e responsabilidade. A sua serenidade e estado de espírito perante a neta são já consequência da certeza do sentido de responsabilidade de Célia. Zulmira ainda está num processo de aprendizagem de como deve ser ministrada a educação e o bom exemplo do marido tem-na ajudado a interiorizar as novas ideias.
Finalmente, eis que chegam os jovens das idílicas férias. Ares de satisfação invadem os rostos felizes. Emoção no rosto de Zulmira não contiveram lágrimas de felicidade.
- Tanto tempo fora e nem um telefonema!!!
- Avó, ficámos sem bateria no telemóvel e não podemos falar. No sítio onde estivemos não havia electricidade…
- Que raio de terra era essa? Nem electricidade para carregar um telemóvel!!!
- Sério... Avó, nem fazes ideia do quanto era lindo o sítio onde estivemos. A electricidade era a que vinha da lua e das estrelas. Tudo natural. Ali sentimo-nos como se estivéssemos no princípio do mundo, eu feita Eva e Leandro, feito Adão.
- Cruzes…para mim acho que já não me dava sem ter Televisão para ver, quanto mais sem electricidade...
Feitas as recepções, Zulmira convidá-los-ia para lancharem, o que prontamente seria aceite. Generosa mesa seria colocada à disposição e saciadas fomes e sedes e aprontadas as conversas, os dias vindouros retomariam as rotinas. Esta, seria marcada pela má notícia recebida de um amigo via telemóvel para Leandro e que dava conta da inesperada viuvez de Leonilde, sua última namorada. Eduardo, o homem que a seduziria, viria a ser vítima de um estúpido acidente de viação que o colocaria em coma profundo e irreversível durante três dias. Leandro nunca mais soubera nada de Leonilde desde que esta se ausentara para Inglaterra. A sua memória viria a ser reforçada pela estratégia de esquecimento, contudo, uma nefasta e inesperada notícia voltaria a trazer à mente aquela que teria sido a sua primeira grande paixão. A sós, Leandro recordaria vivências vividas e mentalmente chegava a reconstruir cenários de vida a dois, logo reprimidos pela fidelidade com que se entregaria a Célia. A regressada imagem de Leonilde duraria esse pouco tempo, quase só o tempo de saber da notícia da viuvez e de um rebobinar rápido das memórias. Jamais voltaria a tê-la na sua mente e deliberadamente assumiria essa vontade porque percebe que não seria nada positivo para si e para a relação que iniciou e que proximamente se formalizará por casamento. Leandro quando recebeu a notícia não tinha ninguém por perto e por isso só ele foi sabedor. Não daria conhecimento à namorada e nem motivos para ela perceber que algo estranho o abalara no cerne do seu subconsciente. Saberia contornar e guardar para si a má noticia. Sabe também que se contasse esse episódio da viuvez de Leonilde iria ser bombardeado com perguntas, quiçá alguma incómodas e de reposta difícil ou titubeante. Célia iria querer saber quem é essa Leonilde, de onde a conhece, como a conheceu e por aí… Alimentar ciúmes descabidos e primários não estaria no programa de Leandro e daí o ter ocultado a notícia. Dinis, o amigo de faculdade que lhe deu a notícia, é agora uma porta aberta para poder acompanhar de perto a vida próxima e futura de Leonilde. Quando sentir desejo e vontade de se inteirar de pormenores acerca dela, será a ele que recorrerá.
Dinis não chegaria a acabar o curso e regressaria à sua terra para tomar conta do negócio do pai, na área da construção civil e que por motivos de saúde declinaria no filho. Este, embora episodicamente contacte Leandro, continua a ser uma ligação ao passado académico. Os raros contactos ganham oportunidade sempre que algo de estranho acontece e que é das relações comuns. Este, teria sido aquele que menos interesse havia em conhecer, pelas razões óbvias, mas Dinis não poderia ignorar e de transmitir ao amigo. Leandro, por sua vez, embora lhe tivesses sido penoso receber a notícia, agradeceria ao amigo, em nome do passado e da relação especial que tivera com Leonilde.
Zulmira, desde que a neta regressara, só ocupa o pensamento com a formalização e marcação de data para casamento. Este representará para si um dos maiores acontecimentos, senão o maior da sua vida, quiçá, mais que o seu próprio, cuja memória dele se vai perdendo no tempo.
- Célia, no meu entender estão reunidas as condições para avançares para o casamento… Leandrinho será um valor seguro. Não tem nada que o desabone. É bonito, é doutor, que mais lhe falta para fazer de ti e já agora, também de mim, duas mulheres felizes…
- Tens razão avó, mas não é preciso pôr celeridade. As coisas acontecerão com naturalidade…
- Um dia destes vou falar com o Sr. Padre, para saber se vos poderá casar no dia do meu casamento… seria giro e mais do que isso, uma festa dupla. Ah, também é a data de casamento dos meus falecidos sogros. Seria uma data importante na história da nossa família.
- Não tem que ser nesse dia, avó. Bem vistas as coisas, só faltam três meses e obrigar-nos-á a apressar tudo. Não gosto de pressas em assunto tão sério.
- Qual apressar…, três meses é tempo mais que suficiente para tratar de tudo sem precipitação. Queirais vós…
- Deixa isso connosco. Leandro terá sempre uma palavra importante a dizer. Não quero que ele sinta que há da minha parte pressão, porque não há. Nós amámo-nos o suficiente para estarmos confiantes e se as coisas falharem, será melhor antes que o casamento aconteça. Não seria drama nenhum…mas não irá acontecer, está descansada avó.
- Nem me fales disso, que até me tiras o sono. Teu avô, que não saiba desta conversa. Seria um desgosto para ele…
Acabada a conversa e porque Célia não estivesse disponível para alimentar as pretensões da avó, ambas ficariam a matutar no que cada uma dissera à outra. Se a neta havia relevado o que a avó lhe dissera, o mesmo não se aplicaria a Zulmira. Esta intui-la-ia pela negativa e com mágoa e algum pessimismo. Célia percebera o novo estado de espírito da avó e dera conta a Leandro.
- A minha avó anda muito estranha desde uma conversa que tivemos hoje de manhã.
- Ofendeste-a?
- Não. Sabes o que ela me disse? – “Célia, estão reunidas todas as condições para avançares para o casamento”. Que tens a dizer a isso?
- Bom, se calhar até terá razão…
- Terá, mas isso é assunto nosso e não dela, não achas?
- Isso é verdade, mas o coração de avó…
- Ok. Na verdade, não será fácil sentir o que ela sente e talvez eu também não tenha sido justa, com ela. Acho que agi friamente, mas na altura, nem me dei conta. Quando voltar a abordar o tema já estarei preparada para lhe alegrar o coração. Deduzo que não irás contra o que lhe vou dizer…
- E o que lhe vais dizer, posso saber?
- Claro. Não farei nada sem que antes tenhamos acertado. Quero que o nosso casamento respeite sempre essa regra. O que lhe vou dizer, perguntas tu: – Tão só, que o nosso casamento estará a caminho, que achas?
- Fazes bem. Na verdade, o nosso casamento será um acontecimento importante para nós, mas não o será menos, para a tua avó. Dar-lhe esse prazer é quase uma obrigação e nós não iremos fugir a isso. Também acho que estão reunidas as condições para nos casarmos e nada adianta protelar. Sabemos o que queremos…Amanhã, irei formalizar o pedido de casamento aos teus avós e não irei precisar de o formalizar com etiqueta. Eu mesmo, o farei em discurso directo.
Depois da convicção das palavras de Leandro, Célia abraçá-lo-ia demoradamente, trocando beijos plenos de amor e sensualidade. Definitivamente, o casamento iniciaria a sua marcha, faltando apenas a prometida conversa com os avós de Célia, que diga-se, já está preparada na cabeça de Leandro. Na primeira oportunidade, não deixaria fugir a conversa do tema central, para gáudio de Zulmira e marido, mas mais particularmente para a vóvó, como era tratada por Célia na sua meninice.
- Sr.ª Zulmira...
- Diga Leandrinho.
- O dia de hoje amanheceu bonito, estranhamente bonito…
- Desculpe, mas para lhe falar com franqueza, não notei nada. Tu notaste alguma coisa, Adérito?
Adérito encolheria os ombros como sinal de que também nada havia estranhado, enquanto a conversa seguiria seu curso, mas agora também com a sua redobrada atenção.
- Era essa a resposta que eu estava à espera, Sr.ª Zulmira.
- Desculpe, então porque perguntou?
- Não notas nada em mim, avó?
- Já nem sei o que te dizer. Uns dias acho-te mais feliz, noutros nem tanto…
- Pois, digo-lhe, o dia amanheceu bonito mas irá anoitecer ainda mais bonito.
- Estou curiosa, Leandrinho. Agora, você não me vai deixar a curiosidade a meio. Quero saber o que quer dizer com isso e já, se possível.
- Hoje, Célia…
- Diga, diga…
Leandro olhou a namorada, esta piscou-lhe como sinal para avançar rapidamente para a mais esperada notícia.
- A partir de hoje já não somos mais namorados…
- E você, Sr. Leandro, acha isso uma boa notícia? Longe de mim algum dia ter um desgosto tão grande…
- Calma. Ainda não disse tudo.
- Porquê, há coisa pior para me dizer?
- Não mais seremos namorados, mas…
- Mas…?
- A partir de hoje, seremos noivos e muito proximamente, seremos marido e mulher.
- Que alívio…você podia-me ter poupado, Leandrinho. Esta era a notícia que eu mais desejava ouvir, mas nunca da forma como foi dada. Você gosta de brincar, mas não esqueça que já não sou muito nova para brincadeiras dessas. Meu coraçãozinho sofreu muito…
- Desculpe. Realmente, pretendi criar suspense. Vá-se habituando a este meu jeito meio irónico, meio humorado, Sr.ª Zulmira.
- Irei habituar-me, sim, mas não esqueça que o Sr. Leandro ainda mal me conhece. Quero também surpreende-lo com o meu jeito.
- Espero bem que sim…
De facto, a tão esperada notícia seria finalmente conhecida por Zulmira. O pedido de casamento da neta, ainda que tivesse sido informal, foi de encontro ao desejado. Agora, só lhe restam razões para ser feliz e para contagiar os demais com o seu estado de espírito. O marido, será o que mais eco receberá dela, mas a sua falta de optimismo e o realismo com que sempre aborda as questões, não o aconselha a esposa a entusiasmar-se. Ele sabe que na vida nada é facto adquirido e que nem sempre o que parece, é. Zulmira, é permanente advertida pelo marido para não passar para o exterior o seu estado de espírito. Na verdade, o casal tem jeitos antagónicos de estar na vida e na sua forma de os exteriorizar. Se para ela é importante fazer sentir a sua felicidade nos demais, ele reserva-se, cuida-se, com receio de se sentir constrangido.
- Ó homem, que tens? Até parece que isto não é nada contigo. Leandro pediu a nossa neta em casamento de um jeito tão lindo e tu…
- Eu ouvi como tu e não me parece que seja motivo para festas. Aliás, já era esperado, mas também te digo que se por um lado é motivo para estar feliz, por outro, nem sei. Não há bela sem senão…
- Não fales assim, que até me entristeces. Nossa neta vai casar com um doutor, homem. Isso por si só, já é o bastante para estarmos felizes. Somos de condição humilde e ter um doutor na nossa família...
- Não penses assim. Ser doutor não é razão para estares feliz. Os doutores são pessoas como as outras, com virtudes e defeitos. Leandro, é certamente uma pessoa normal e portanto, com virtudes e defeitos. Não há razão para pensares o contrário, só que tu…
- Está bem, seja. Mas, há uma coisa em que ele é diferente; é muito lindo…
- Lá estás tu a confundir as coisas. Beleza, não é virtude, senão onde estariam os feios? Olha, ser doutor e lindo, não bastará para Célia ser feliz e muito menos tu. O tempo se encarregará de nos dizer a pessoa que ele é. Deixa que isso aconteça…
- Também tu…ao fim deste tempo todo que o conheces, ainda não viste que ele é uma jóia de pessoa e que melhor, seria impossível?
- Já vi boas pessoas, passar a más pessoas. Cada um poderá ser uma caixinha de surpresas e nada nos garante que Leandro não seja um enigma no futuro. Pelo presente, eu daria nota positiva, mas pelo futuro, não sei responder, mas parece que tu não tens dúvidas acerca disso.
- És sempre o mesmo. Quanto mais velho, mais pessimista. Parece que não aprendeste com a vida…
- Pois, foi com a vida que aprendi a ser pessimista. Ela, demonstrou-me que optimismo a mais poderá ser sinónimo de desilusão e desilusão é sinónimo de frustração. Não quero nunca sentir frustração. A que tive, bastou-me para estar de pé atrás com o optimismo.
- Esquece isso. Até parece que Leandro, também será desses…
- Nunca se sabe…O tempo, encarregar-se-á de me contrariar ou de me dar razão.
Do diálogo havido não sairia nenhuma conclusão. Cada um encarará as coisas segundo a sua maneira de ser. Zulmira, tem vontade de se expor e expor a alegria que a consome, enquanto o marido sofrerá por cada exposição pública da neta, que a mulher pretende fazer. Adérito nunca foi homem de se impor perante a mulher e as suas palavras de moderação e ponderação nunca foram tomadas a sério por Zulmira. Esta, foi sempre muito determinada nos seus objectivos e consequente nos seus desejos. A paz naquele lar nunca seria posta em causa, mais por culpa de Adérito, o qual trocava sempre a confrontação pela tranquilidade. Zulmira sabia bem da maneira de ser do marido e por isso desenvolveria uma personalidade forte, determinada e liderante. Esta maneira vincada de ser, iria fazê-la sentir junto dos noivos e muito particularmente desde que os jovens se anunciaram noivos. A sua vontade de participar activamente no casamento não é do agrado do marido nem tão-pouco se saberá se os noivos estarão receptivos à intervenção, contudo, Zulmira, em mente já planifica os pormenores do casamento, fazendo-se valer da sua vivência para satisfação do seu ego. As noites a seguir ao anúncio do noivado seriam passadas em claro e as aparentes preocupações que os namorados deveriam ter, seriam assumidas por si e por inteiro, independentemente de saber se isso os magoaria ou não. Célia, aceitaria sem questionar a intervenção da avó, vendo nisso mais um acto de amor, que intromissão indevida, enquanto Leandro, embora não afrontasse Zulmira, porque a queria entender, também não manifestaria oposição descarada e iria aceitando as orientações e sugestões. A primeira grande preocupação seria a escolha do dia de casamento e a abordagem do padre. Quanto à data desejada por si para o consórcio, já havia sido ventilada em tempos e não teria sido motivo de questionamento por a mesma trazer à lembrança outras memórias de casamentos: o seu próprio e o dos sogros. Neste particular, a comunhão de interesses estava consertada. Onde se adivinha poder haver alguma confrontação não será no local da boda, mas na futura residência dos jovens. Sabe-se do interesse dos noivos quererem construir seu próprio lar e do interesse da avó os querer albergar na sua própria casa. Muito do empenhamento de Zulmira no casamento esconde esta intenção. Ter criado a neta desde tenra idade e vê-la partir, fá-la sentir-se marginalizada e subestimada. Em tudo o que faz, leva em conta o que a vizinhança poderá pensar, ainda que nem a vizinhança perca qualquer tempo com a sua vida. Esta mania de pensar que está a ser observada, fá-la constranger-se, mesmo perante factos fúteis, mas que na cabeça dela ganham dimensão. O marido passa à margem de tudo e não perde tempo com ninharias ou coisas que não são directamente da sua responsabilidade. Zulmira tem andado um pouco mais excitada por se pensar com responsabilidades que deveriam ser divididas com Adérito e este por sua vez, já a alertou para que ela não se meta onde não é chamada.
- Noto que andas diferente; mais agitada que o habitual e por culpa própria. Não deverás meter-te nessa coisa do casamento. Eles são maiores e vacinados. Nós quando nos casamos também não gostámos que a tua mãe metesse nariz. Depressa te esqueceste disso? Lembro-te que até te chegaste a zangar com ela por causa da suposta intromissão e no mais, não foi assim tão intrometida como tu agora estás a querer ser.
- É verdade o que dizes, mas eu agora sou diferente na maneira de ver as coisas. Naquele tempo achei que a minha mãe não deveria meter-se na nossa vida e agora que sou avó, penso como pensava ela. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades… Sei o que queres dizer, mas nossa neta é tão jovem…ainda está a vir para o mundo…e acho que a nossa experiência de vida deverá obrigar-nos a intervir, ainda que eles discordem.
- Pois aí é que está o teu grande erro. Com esse teu comportamento estás a passar-lhes um atestado de incapacidade e pior ainda, a cometer invasão da vida privada. Ninguém gosta de ser menorizado, subestimado. Tu nunca foste de seguir os meus pareceres e acho que deverias atender ao que te digo. Dizes que o fazes em nome e por amor à neta e disso não tenho dúvida, mas poderias fazer tudo isso, mas se fossem eles a solicitar-te ajuda e nunca a tomares a iniciativa de o fazeres por tua conta. A animosidade com a tua mãe e que nunca se recomporia foi resultante de teres interpretado a intromissão dela como invasão da tua vida privada e nunca como acto de amor. Agora, fazes ou queres fazer à tua neta, o que não quiseste para ti. Deverás meditar no teu comportamento ainda que a tua intenção seja a melhor. O teu melhor sinal de amor com Célia seria dado ao ofereceres-te para apoio, mas e só, na condição de ser aceite por eles. Não te atropeles na vontade de fazer bem porque os resultados poderão ser de efeito contrário. Não penses que Leandro seja acéfalo. Acho que a atitude de aparente passividade é apenas para não conflituar. A minha experiência de vida diz-me que esse tipo de pessoas não é o mais aconselhável para lidar: aparentemente parece que está tudo bem com eles, mas na verdade, são panelas de pressão em risco de explosão. Seria de mais confiança para ti se ele fosse homem do tipo sim-sim, não-não. Eu não estaria agora com esta conversa contigo porque ele se encarregaria de te pôr no lugar certo. Assim, estás a pensar que vais ter com ele o mesmo comportamento que tens tido comigo e tudo poderá não passar de um logro para ti. Oxalá, não me engane.
- Também, homem…julgas que eu não sei ocupar o meu lugar? És o pessimista de sempre. Para ti, tudo o que faço está condenado ao fracasso. Nossa neta é muito jovem e ainda imatura e Leandro, não há-de ser muito mais responsável. A juventude de hoje…
- Depois, não digas que não te avisei…
Seja como for, não parece que as palavras ponderadas de Adérito algumas vez venham a ser ouvidas. A vontade de Zulmira é superior à força da razão do marido e dela própria e tudo irá gravitar em torno de si: compra do vestido de noiva, escolha do restaurante, e até a compra das alianças e os convidados, teriam sugestões “vinculativas”. Ao marido dizia: se somos nós a pagar tudo, porque também não havemos de ser nós a escolher o que queremos para o casamento? E a casa para viverem, será a nossa e não outra, acrescentava, portanto…
Leandro, depois da conversa havida sobre os pormenores do casamento e das imposições ou sugestões “vinculativas” de Zulmira, sentiria um calafrio no entusiasmo, o qual, procura esconder de todos, inclusive de Célia. O mal-estar interior em que as movimentações pré-nupciais o estão a deixar, fazem-no meditar sobre como será o seu dia-a-dia de casado a viver em comunhão de espaço com os futuros avós da jovem. Para si dizia: - por Adérito, tudo bem, ele é homem que sabe respeitar, mas Zulmira… é intrometidíssima e não saberei como e até que ponto aguentarei viver sob esse cenário. Num dos seus momentos mais reflexivos, perguntava-se: como seria o casamento se fosse com Leonilde? Por certo, seria outro bem diferente…Leonilde, teve o mérito de me apaixonar e homem apaixonado não reflecte sobre pormenores de casamento. A noiva, é tudo o que se quer…e o resto nada conta. Na verdade, ainda não a esqueci de todo e julgo que a imagem dela irá permanecer em mim por muitos e longos anos, ainda que nunca mais a veja. Agora, que a sei viúva, ocorrem-me pensamentos que já estavam meio arquivados e que me confundem nas minhas opções, nas minhas decisões, contudo, Célia, que nada tem a ver com estes pensamentos, poderá ser vítima deles…sem que tenha qualquer culpa. Quando o coração entra em contradição com a cabeça muitos disparates ocorrem e do qual resultam, vítimas inocentes. O meu coração está assim, confuso, confessava a si mesmo. O meu amor por Célia nunca atingiu a loucura do amor que tive por Leonilde e ultimamente, a chama que o alimentava, está a perder força. Sinto isso e quero tanto escondê-lo de todos e de mim mesmo, mas cada vez está mais difícil. A minha relação com Célia, parece ser agora, mais de amizade que de amor e isso é pouco para se construir casamento sólido e duradoiro. Estou, confesso, como nunca, baralhado nas minhas ideias e indeciso para tomar firmes as vontades que antes pareciam ser tão fáceis, mas também não as quero partilhar com mais ninguém. Irei ter de enfrentar com coragem o que vier a ser decidido, para que não fique arrependimento. Uma certeza, eu tenho, dizia: irei reflectir maduramente no meu futuro e mesmo assim, acredito que nem tudo será equacionado. Este episódio de afrouxamento no meu entusiasmo para o casamento não quero que seja perceptível a ninguém e muito especialmente, a Célia e a Zulmira, acrescentava.
Enquanto isso, Leandro irá cumprir quase à letra as sugestões da entusiasmada avó Zulmira ainda que, a sua vontade não reflicta esse procedimento. As horas de sono perdidas em reflexões não irão condicioná-lo. A aceitação tácita tem a ver com um teste às suas capacidades para interiorizar o procedimento dela e para se testar a si mesmo sobre as suas capacidades de adaptação.
No próximo encontro, em que o tema do casamento se abordará, Zulmira já levará consigo muitas ideias novas, no estilo, facto consumado.
- Leandrinho e Célia, tenho pensado muito no vosso casamento. Ontem, por acaso, encontrei o Sr. Padre e até lhe falei. Disse-lhe que queria o casamento no dia que havíamos falado e ele disse-me que pela parte dele não haverá inconveniente, de modo que já é um assunto arrumado. Agora, ides precisar de falar com ele, para vos tratar dos pormenores da igreja, mas quando for isso, também quero ir convosco. Ah, também já escolhi as alianças na Ourivesaria Pacheco; só precisais de ir lá para tomar a medida ao dedo. São muito lindas. Quanto à boda, o melhor serviço será o apresentado pelo restaurante Canto da Sereia. Foram eles que serviram o almoço de casamento da filha do Sr. Professor Hilário e olha que se serviu para eles, também serve para nós, demais, o noivo dela também é doutor. Com esta coisa do casamento, não tenho parado um segundo. Isto são coisas que dão muito trabalho... O Leandrinho não diz nada?
- Depois do que você falou, já nada resta para dizer. Falou com o Padre, foi à ourivesaria, escolheu o restaurante, só falta escolher os padrinhos e os convidados.
- Não falta, não. Os padrinhos vão ser os meus cunhados que vêm cá de propósito, da América e quanto aos convidados, também já tenho uma lista deles, só não sei quem o Leandrinho quer convidar, à sua parte.
- Os meus convidados vão ser poucos. Meus pais e pouco mais. Não quero dar-lhe muito trabalho a organizar a boda, nem despesa, uma vez que vocês querem suportá-la.
- Não precisa de cortar aos seus convidados. Faço muito gosto que eles venham em quantidade, afinal, a festa é mais vossa que minha.
- Não parece. Nós ainda não emitimos qualquer opinião ou participamos em alguma decisão. D. Zulmira tem tomado toda a dianteira e não tem sobrado nada para nós.
Célia, interviria depois de escutado o desabafo do namorado:
- Não sejas assim, Leandro. Olha que a minha avó é pelo nosso bem, que o faz. A experiência dela deve ser aproveitada e rejeitá-la seria um erro. Minha avó gosta demais de nós para que penses mal da sua atitude.
- Ok. Se achas…
Zulmira, gostou de ouvir e atirou:
- Parece-me que o acho um pouco estranho ou estarei enganada, Leandrinho?
- Estranho!!!!? Não…que coisa. Apenas dei uma modesta opinião. O que vocês fizerem, estará bem feito…
- Vou precisar quanto antes da listagem final dos convidados para negociar preços com o Sr. Leonel do Canto da Sereia. Quanto mais cedo, melhor. Não esteja com poupança no número de convidados, viu Leandrinho? Você tem carta-branca para tudo.
Esta conversa a três, confirmaria a forma intrometida de Zulmira participar no casamento. Leandro, por sua vez, julgará o que foi falado e o que ainda se falará, na certeza de que o sonho que o embalou para o casamento já não é o mesmo que o espera no futuro. A sua personalidade não lhe permite afrontar Zulmira, como aliás, ele mesmo reconhece, contudo, e por via disso, poder-se-á esperar qualquer reacção menos racional, tão própria das pessoas reservadas e que se escusam a partilhar os seus problemas, quaisquer que eles sejam. A cabeça fervilha-lhe e nem mesmo Célia saberá o que nela vai. A arte de enganar ou tentar enganar os próximos, faz com que os mesmos ainda não tenham percepcionado que na cabeça dele germinam ideias e, nem sempre as mais recomendáveis. O nome de Leonilde está-lhe cada vez mais presente e o desenterrar de uma paixão adormecida, está em vias de ganhar maior presença. O conflito instalado na sua cabeça e alma, está aceso como nunca e, nem ele mesmo sabe como sair dele. Sabe-se apenas que tudo parecia esquecido na cabeça de Leandro e nem mesmo os melhores momentos passados com Leonilde lhe eram lembrados. Mas, tal não se afirmou verdade definitiva e o cada vez mais aproximar da data do casamento trá-lo ainda mais meditativo e pior ainda; sente-se amordaçado pelos seus próprios actos e decisões. A esperança de que esta fase difícil passe é tudo quanto deseja, mas também reconhece que terá de ser ele a resolvê-la e mais ninguém. Zulmira, e o protagonismo que está a exercer no casamento e hipoteticamente, na sua vida, irão merecer da sua parte mais atenção e melhor interpretação. - Poderei não estar a ser honesto ao ajuizar, e Zulmira, na sua simplicidade poderá também não ter o propósito de ser manipuladora, dizia para si. O meu maior problema, continua, não será nunca a avó, mas a neta, e agora que o cenário do casamento havia começado a tomar forma, eis que notícias de Leonilde e da sua disponibilidade para voltar a amar me veio reacender a paixão por ela. Quero crer que, o que me pareceu poder vir a ser um amor para toda a vida, está a mostrar-me que deveria ter sido encarada como uma amizade para toda a vida. São coisas diferentes e que confundi. Confundi-me e ao mesmo tempo terei enganado Célia. Irei tomar conselho com o travesseiro e o que ele decidir, farei. Não irei procurar ninguém para obter conselho, nem mesmo um psicólogo, porque quero chamar a mim e só a mim as consequências daquilo que eu próprio decidir. Ainda que erre, irei dormir tranquilo sobre o meu erro e sem encontrar bode expiatório para o insucesso, se é que irá haver insucesso. Comigo, não haverá culpados.
Na verdade, um conjunto de circunstâncias vulnerabilizaria a insegurança e pouca certeza de Leandro, contudo, e a sós com o seu travesseiro, tomara a decisão de levar até ao fim o casamento com Célia. Aparentemente, tudo parece definitivo e irreversível. Continuar os preparativos para o enlace irão ter da sua parte mais empenhamento e motivação e a elaboração da sua lista de convidados irá ser pensada com atenção. Os poucos convidados que inicialmente tencionava listar irão ser alargados e nem Dinis irá ficar de fora, pese embora a distância que os separa. Com o ex-colega de curso mantém uma ligação de amizade que perdura desde o início da faculdade, além de que é a ponte de conhecimento para Leonilde, sendo que esta, continua a representar para ele uma saudável saudade.
O casamento entraria em velocidade de cruzeiro e a ansiedade instalar-se-ia mais em Zulmira que nos noivos, deixando de fora o indiferente Adérito. Célia, via o casamento como conto de fadas e o namorado ainda o via como um passo confuso ou então como um passo sujeito à imponderabilidade, contudo, a decisão tomada indicava-lhe o caminho do casamento. Na sequência disso, iniciaria os convites para o mesmo. Os inevitáveis convites e apenas estes, estariam presentes na sua cabeça. Atempadamente, convidaria Dinis através de e-mail e posteriormente fá-lo-ia por voz, via telemóvel. Dizia o e-mail:
“Meu querido amigo Dinis, como sabes, na vida não há um único momento de paragem e os aparentes recuos, também estes, não são mais que alavancas ou calços de descanso e reflexão para avanços mais seguros e consolidados e as nossas vidas também não fogem à regra. Quis o destino que a tua vida te fizesse regressar à terra, ao contrário de mim, que tive de buscar noutras paragens o meu curso de vida, contudo, nossa amizade sempre soube superar estes devaneios, nunca se deixando fragilizar. As distâncias físicas que entre nós existe são-no apenas em quilómetros, porque na verdade, as distâncias afectivas me parecem ainda mais curtas do que nos nossos tempos de faculdade. A esta hora, já estarás a perguntar onde quererei chegar com esta conversa. Pois bem: no contexto de amizade que comungámos, tenho o prazer de te convidar para o meu casamento que se virá a realizar no último domingo do próximo mês. Sei que sentirás o grato prazer de receber o meu convite e que apenas algo de muito impeditivo te fará estar ausente. Também sei da tua certeza na seriedade do meu convite. Lembro que tu serás o único convidado a quem enderecei convite, com a excepção dos meus familiares mais próximos e isto por si só dirá muito da amizade e apreço que me liga à tua pessoa. Agradeço-te que me confirmes da tua possibilidade para estar presente, para que possamos ter certezas acerca do número de convidados presentes. Certo de que a minha vontade passará pela tua presença, recebe um abraço fraterno.
Ps:
Oportunamente, ligar-te-ei para o telemóvel a indicar-te pormenores que ainda faltam “afinar”.
Seria esta a primeira comunicação que entre ambos aconteceria no âmbito das notícias do casamento. Não teve em Dinis qualquer motivo de espanto por saber que o amigo já mantinha um namoro com algum tempo. Este, continua a ser pedra angular e charneira de informação para Leandro em relação a acontecimentos de ex-alunos da faculdade ou de outros casos que interessem aos dois. O facto de Leandro ter passado a viver distante, levá-lo-ia a perder informação, não fora o amigo. Aliás, seria este a dar-lhe a informação da viuvez de Leonilde e será o mesmo que, informalmente, comunicará a Leonilde, o casamento do ex-namorado. Dinis mantém contactos privilegiados com a jovem viúva através do Messenger e mais ainda, desde que o marido falecera. A necessidade a que a solidão a encurralou, levá-la-ia a avidamente se entregar a contactos virtuais, e, se uns são de pessoas que conhece pessoalmente, outros, fê-los em salas de conversação, vulgo “chat”. A inesperada viuvez haveria de lhe deixar pendentes por resolver na sua estada na Inglaterra e, enquanto não os tiver resolvidos não arriscará a fazer o regresso pátrio. Entre estes, conta-se a indemnização de um seguro de vida do falecido marido e que lhe irá garantir confortável subsistência. Mas, como a vida não se esgota em materialidade, agora, mais do que nunca, reflecte muito sobre o seu futuro e a incógnita que a espreita. Em momentos mais tristes e solitários já se tem dado a reflectir como teria sido a sua vida, acaso não tivesse cortado o namoro com Leandro e se a sua decisão não teria sido um equívoco. Reconhece que a vida lhe fora madrasta, numa altura em que o sonho ainda era uma constante nas suas vidas. Os projectos implodiriam de forma trágica e irreversíveis e cairiam, qual bomba. Nada podendo fazer pelo regresso do passado, restar-lhe-ia readaptar-se à nova realidade e esperar o momento certo para reanimar a vida e encetar novos projectos. Do solo pátrio não tem recebido notícias de Leandro e muito menos do casamento que se avizinha. Ultimamente, não tem encontrado Dinis no Messenger e por via disso, não está actualizada com as pequenas e sempre apetecidas notícias, contudo, no pretérito dia tinha uma mensagem do amigo a justificar-se pelo seu impedimento momentâneo, com promessa de regresso para breve. Raramente, Leonilde lhe falava de Leandro, em vida do marido, mas agora, sente curiosidade de saber “coisas” dele e Dinis é nem mais nem menos que o melhor veículo de informação. Daí, uma certa ansiedade pelo próximo contacto. E este, aconteceria mais breve que o esperado e numa altura em que a ansiedade, ávida de notícias, precisava de alimento.
- Olá Leonilde. Desculpa não ter tido ocasião para falarmos no Messenger, mas na verdade, o impedimento justificou-se por falta de oportunidade e não por falta de desejo. É sempre um prazer conversar contigo e disso não terás dúvidas…e agora, mais do que nunca. Prezo poder contribuir para mitigar a tua solidão porque não será fácil a ninguém estar fora da pátria e ter de gerir estados de espírito difíceis, como os que estás a viver ultimamente.
- Obrigado. De um homem como tu, sensível, apenas se poderia esperar essa compostura. Por tudo quanto tens feito por me ajudares a ultrapassar este momento, guardarei para sempre a tua disponibilidade como um sinal de verdadeira amizade. Gratidão eterna te deverei. Aliás, outra coisa não seria de esperar de mim para ti. A nossa amizade não é palavra vã e está escrita a palavras saídas do coração. Bom, agora mesmo o que importa, é falarmos se tens novidades para me dares. Estou sempre ávida das boas notícias que de más, tu sabes disso. Nunca me sinto cheia de te ouvir. Falas-me de coisas que me ajudam a ser feliz, que me ajudam a erguer do lodaçal em que me encontro. Agora, estou numa fase pior do que nos dias a seguir ao falecimento do marido. Ouvia falar que uma viuvez é mais sentida nos tempos vindouros e na verdade, pressinto que me estou a afundar aos poucos. Tenho-me agarrado à Internet e particularmente, ao Messenger, para ludibriar a minha angústia, a minha tristeza e a minha solidão e faço-o até com pessoas que nunca vi e que nunca verei. Sabes, tenho encontrado pessoas com problemas análogos e que também viveram experiências semelhantes e que me ajudam a confortar. A Internet também tem as suas vantagens, saibamos tirar dela aquilo que nos pode ser útil. Mas, a tua companhia ainda continua a ser a mais apetecida, a mais desejada, a mais ansiada, por razões óbvias. Poder expor-me e desabafar e até chorar diante de ti, liberta-me e dá-me a seguir algumas horas de aligeiramento do peso da solidão.
- Que é isso…eu não faço mais que a minha obrigação. Também reconheço vantagens da Internet, mas algum cuidado deverás ter em conta. Por vezes aparecem pessoas que acabam por seduzir pela palavra e que escondem segundas intenções e que perante pessoas fragilizadas, acabam por conseguir os seus objectivos. Quanto a novidades, tenho uma.
- Sim? Conta. Espero que se enquadre nas boas notícias…
- É sobre uma pessoa nossa conhecida…
- Sério? Agora, aguçaste-me a curiosidade. Não me digas que a Mila Trindade, já foi mãe…
- Não, nem sabia que ela estava grávida. O Leandro…
- Que aconteceu ao Leandro?
- Não aconteceu nada. Ainda vai acontecer.
- O quê, diz.
- Vai casar no final do próximo mês, mas ainda não sei pormenores. Recebi um e-mail dele a convidar-me e disse-me que depois me ligaria a dar informações mais detalhadas.
- Hum…ele já namorava há uns tempos. Sabes alguma coisa acerca da noiva?
- Sei muito pouco. Nunca fui de alimentar grandes curiosidades e ele também nunca se expôs. Leandro, é muito bom moço, mas um pouco introvertido.
- Confirmo. Leandro é uma jóia de homem, mas esse seu jeito fechado…não ajudou nada a que hoje eu pudesse estar no lugar dessa moça. Enfim…
- A vida é feita de coisas assim. Já experimentei semelhante. Lembras-te da Maria Rita, uma moça que frequentava o Café Papagaio e que às vezes se juntava a nós para conversar?
- Lembro-me vagamente.
- Namorei com ela e o namoro acabou, por eu pensar que não teríamos compatibilidade para um casamento bem sucedido. É um erro pensar que as pessoas por serem diferentes, ou muito diferentes, terão incompatibilidades insanáveis. Pura ilusão. Na verdade, o amor é, e será sempre a razão mais forte para vencer. Todas as diferenças são apenas a matriz que nos define e que fazem de nós pessoas singulares. Possivelmente, no teu namoro com o Leandro também equacionaste erradamente as dissemelhanças e as confundiste com incompatibilidades. Não foste a primeira nem serás a última. Eu mesmo, conforme te disse, também interpretei assim.
- Juízo sagaz, o teu. Tudo isso agora tem contornos de passado, de um passado que gera alguma nostalgia, sobretudo, por nunca se vier a saber como teria sido a vida ao lado dessas pessoas que confundimos. Por curiosidade, diz-me, essa tal Maria Rita já casou?
- Já, já…com o Chico Viúvo, lembras-te dele?
- O nome não me parece estranho. Ele já era viúvo?
- Não. De viúvo, apenas a alcunha, que lhe veio de andar sempre vestido de preto. Foi o Jaime Lisboa que o apelidou numa ocasião em que já estava a caminho de uma boa embriaguez na festa de anos do Hipólito.
- Ah, agora me lembro. Esse Jaime era um pândego e grande observador. Ele era especialista a alcunhar pessoas. Um dia pôs a alcunha de “Arestas” ao Nuno Bragança e sabes porquê?
- Lembro-me desse Nuno e já agora o “Bragança” também era alcunha, por ser a origem dele, lá do planalto nordestino. Quanto ao “Arestas” não sei donde lhe veio a alcunha.
- Pois então vais ficar a saber. O Nuno costumava marcar encontros com os amigos à esquina do Café Avenida, no cruzamento da Rua do Feitiço com a Rua do Mal-Amado e dizia-lhes: - eu espero-vos na aresta do Café Avenida. Manias de matemático, que o Jaime não deixava passar e vai daí, ficaria a ser o “Arestas”. Lembro-me que no início ele dava uma “casca”, mas por fim, até achava graça a ponto dele mesmo se intitular o Nuno Arestas, para os amigos ou para identificação mais específica.
- Como é agradável recordar tempos idos e que vivenciamos na fase mais bonita das nossas vidas. A academia deixa marcas perenes a quem por lá passa. Trazê-las à memória, de tempos a tempos, faz-nos sentir mais jovens. Adoro estes momentos…
- Comungo da mesma opinião. Por hoje, matei saudades da tua ausência. Muito sinceramente, ficaria aqui a teclar contigo horas a fio, mas um compromisso meu obriga-me a pararmos por aqui, na certeza de que outros momentos virão. Foi um prazer. Até breve. Um abraço de amizade. Sempre que tiveres boas notícias, não te esqueças de mim e se souberes algo de Leandro…
- Ok. Xau.
Na verdade, Leonilde não tinha qualquer compromisso para tratar, mas apenas vontade de estar só, de se isolar, de poder reflectir sobre Leandro e o seu casamento. Queria muito lembrar-se dos momentos trocados entre si, do que disseram, do que ficou por dizer, do que fizeram e do que ficou por fazer. Esta necessidade patológica iria ocupar-lhe horas de meditação, de reflexão e de alguma angústia, muita tristeza e lágrimas vertidas no colo. Em tão pouco tempo perderia dois homens e isso fazia-a viúva duas vezes, na certeza de que a “viuvez” de Leandro lhe iria provocar no futuro, maior melancolia. Em relação a Eduardo, por nada poder fazer, já iniciara a conformação, mas Leandro, vê-lo nos braços de outra, sendo que ela fora seu primeiro amor, iria corroê-la de ciúme. Por vezes, pensamentos malévolos ocorriam-lhe, muito por culpa da inveja, do ciúme e do desejo de materializar os seus próprios. Sinistramente, acalenta ainda a possibilidade de reconquistar para si, o coração de Leandro, mas apenas no domínio da alienação porque no uso da sua melhor razão, quer para ele e namorada, o melhor. Conflitua consigo mesma e, encontra em si a razão para o seu estado, ilibando de culpas quem não as tem e nunca as teve: Célia. Mesmo não a conhecendo e nada sabendo dela, quer-lhe bem, e os assomos de ciúme são interpretados como positivos. Sorte irá ter essa jovem, dizia para si, mas certamente também fez por a merecer, acrescentava. Eu, não terei feito tudo, ou melhor, não terei feito quase nada para o conquistar. Sabia que ele me amava loucamente e não retribui a afecção. Agora, lamento-me duas vezes: sou viúva de morto e viúva de vivo. Estou num impasse de vida, que não sei até onde me irá levar. Terei de arrostar com o que o futuro me destinar. Em tão pouco tempo, tive duas más notícias, sendo que a do casamento de Leandro apenas se tornou má, por efeito do falecimento de Eduardo. Até aí, nunca me lembrava dele. A minha vida fluía bem. Era feliz e pronto…
Terminaria deste modo a primeira reflexão, a quente, sobre a notícia do casamento do ex-namorado. Pensamentos estranhos confundiam o seu estado vulnerável e a reflexão nem sempre era conseguida sem conflito interior.
No outro lado da “trincheira” havia um homem que também reflectia sobre si, sobre o seu futuro e sobre o futuro da ex-namorada. Seu nome: Leandro. Sensível à notícia do falecimento de Eduardo e mais ainda, à viuvez de Leonilde e à redisponibilidade desta, para amar, deixava-o a fazer “contas”. Na verdade, perante o dilema de ter de escolher entre razão e coração, isto é: manter-se fiel a Célia ou optar por Leonilde, ia uma tão curta distância, a distância de uma decisão, decisão que temporalmente se apertava a cada dia que passava.
Distante destes conflitos e animada pela proximidade do casamento, Zulmira exalava perfume de felicidade. Em qualquer encontro de mulheres, não deixava cair a oportunidade de falar dele, do noivo, da neta e dos pormenores do evento. Então, quando balbuciava o nome de Leandro os olhos esbugalhavam-se de brilho. Àquelas pessoas que pouco, ou nada sabiam do noivo, era incansável a exaltar-lhe as características e as qualidades, ora físicas, ora académicas ou de personalidade. Num encontro fortuito, com uma amiga que não via há muito tempo, encharcou-a de notícias, a ponto de a deixar boquiaberta com tanta informação.
Célia, com uma avó tão interventora, confiava nela e depositava-lhe as suas próprias obrigações. A sua juventude e inexperiência condicionavam-lhe e condicionavam-na a ponto de o casamento lhe parecer mais um conto de fadas que uma coisa séria. O futuro é pensado com brilho e a cores alegres e nem por uma única ocasião reflectiu sobre o peso de uma relação partilhada com realidades tão diferentes de uma namoro breve e feliz. De toda a logística do casamento a sua maior preocupação não ia além do destino para a lua-de-mel.
- Leandrinho querido, a nossa lua-de-mel tem de ficar memorável. Toda a gente fala das suas como o momento mais lindo das suas vidas e eu não queria nada que a nossa fosse diferente.
- É... Na verdade, as pessoas que se amam perdidamente têm na lua-de-mel o seu momento alto. Pena que a crise financeira não ajude nada. O meu emprego não está ainda consolidado e será preciso ter contenção nas despesas.
- Despesas!!!? Quais despesas? A vóvó paga tudo, basta eu falar-lhe e até nem precisarei porque ela já estará a pensar onde iremos passá-la. Vóvó, é muito responsável…
- Sem dúvida…aliás, até me parece responsável demais a ponto de nós termos pouco voto na matéria.
- E não achas bem? Assim não temos com que nos preocupar. Ela faz isso com gosto e não será bom contrariá-la.
- Sei…
- Já convidaste os teus amigos para o casamento ou queres que fale à vóvó para ela lhes mandar os convites?
- Que achas, devo fazer?
- Se fosse eu a ti, não hesitaria um minuto. Ela fá-lo-ia com muito gosto. Eu vou-lhe falar, queres?
- Não, deixa isso comigo. A tua avó já tem tarefas demasiadas para ainda ficar com mais uma.
- Ela faria com gosto…
- Sei disso, mas preferia que ela fosse como o teu avô…
- Se ela fosse como o meu avô, sobraria tudo para nós…
Leandro deixaria morrer a conversa por não lhe estar a agradar a subserviência de Célia em relação à avó. Está a atravessar uma fase em que tudo lhe desagrada, muito por culpa de esvaziamento da ilusão inicial do namoro, a que agora se juntaria o conhecimento da disponibilidade de Leonilde e o reavivar da memória. A razão deverá estar exclusivamente na perda de amor, porque de contrário, a leitura que faz de Zulmira e do seu modo de encarar o casamento, até poderia ser elogiosa. Certo de que o casamento é um dado adquirido, irá voltar a contactar Dinis para o inteirar de alguns pormenores, conforme lhe havia prometido. E, se da primeira vez o contactou por e-mail, agora, fá-lo-ia por telemóvel. Porém, das quatro tentativas nenhuma surtiria efeito e resolveria enviar SMS para marcar hora para falarem. Então e de acordo com o combinado, falaram com mais detalhe acerca do casamento, numa longa conversa que viria a derivar para curiosidades que Leandro gostaria de ver satisfeitas, tais como o paradeiro de alguns colegas comuns ao período académico, entre eles Luciano Ralha, Ricardo Cardoso e Leonor Vieites. Claro que Leandro não poderia deixar escapar a oportunidade para lançar à conversa, Leonilde. O interesse em saber novidades dos referidos colegas, serviria apenas para preparar a introdução do nome da ex-namorada. Procurou assim, esconder de Dinis, o verdadeiro móbil para a conversa ir longa. As questões levantadas não foram de molde a que o amigo percebesse que havia grande empenho em saber coisas dela. Em remate final, a conversa terminaria assim:
- Com certeza e em jeito informal, já terás falado a Leonilde do meu casamento, não?
- Como sabes, nós mantemos contacto próximo e depois dela enviuvar, reforcei-o por uma questão de amizade e de solidariedade. Num desses contactos falei-lhe, de modo superficial. Aliás, nem que quisesse dar-lhe pormenores também não os sabia, uma vez que me falaste dele sem grandes referências e quem sabe, convicção. Desculpa esta minha observação. Achei-te “frio”, ou estarei enganado?
- Não. Pura especulação da tua parte.
- Resumindo: - o casamento está agendado definitivamente para o último sábado do próximo mês. Quanto a isso não tens dúvidas, pois não?
- Não, e se houver qualquer alteração de última hora, serás conhecedor.
- ok. Então, dá-me por certo no teu grande dia. Não poderia faltar, tu sabes.
- Falando de Leonilde. Sinto-me em falta com ela. Não para a convidar para o casamento, mas para lhe endereçar os meus pêsames.
- Estás sempre a tempo. Mais vale tarde, do que nunca. Acho que ela saberá perceber a tua falta e que muito gostaria de ouvir a tua voz. Ela, para ti, não é uma pessoa qualquer. Fostes namorados muito tempo e naturalmente, se não ficou amor, ficou amizade. Ela não se importará nada que eu te dê o número de telemóvel. Toma também nota do endereço electrónico. Duas ferramentas de comunicação que te ajudarão a encurtarem as vossas distâncias.
- Ok. Obrigado. Obrigado por tudo e pela tua amizade. Oportunamente voltarei a contactar-te. Um abraço.
O objectivo principal havia sido conseguido. Os contactos estavam agora na mão de Leandro e a oportunidade de fazer aproximação a Leonilde poderá acontecer a qualquer momento, bastar-lhe-á um apelo da consciência ou subverter corajosamente a sua reserva moral. Quiçá, seja esta a primeira grande barreira a vencer. Na encruzilhada de um amor mal conseguido, na pessoa de Leonilde e de um amor platónico, ainda não esquecido ou enterrado, balançam todas a futuras e grandes decisões. Certamente, muitas insónias estarão pela frente a perturbar o normal descanso nocturno, enquanto o tempo caminha célere para a data do casamento. Nunca um dia foi tão pouco desejado como o que impende sob a sua responsabilidade. A oportunidade de voltar a poder falar com Leonilde, agora que tem os seus contactos e o temor de que ressuscite o seu amor por ela, coabitam em si e pressionam-no, contudo, a força de vontade para lhe falar, superará a inércia. Pretextualizando a apresentação de condolências pelo falecimento do marido, Leandro iria contactar Leonilde via telefone. Num primeiro e segundo contacto a chamada não surtira efeito, ora porque o telemóvel não estivesse junto de Leonilde, ora porque não atendesse por não conhecer o número que chamava. Seja como for, Leandro não esmoreceria e uma terceira tentativa viria a surtir o desejado efeito. Finalmente, a conversa desenrolar-se-ia.
- Leonilde?
- Sim. Quem fala, Leandro?
- Sim. Ainda te lembras da minha voz? Boa memória auditiva!!! Parabéns.
- Como a poderia esquecer? Afinal, foram muitas as horas, os dias, os meses e os anos que nos escutámos e desses tempos ainda guardamos boas lembranças ou será que tu já esqueceste e me esqueceste?
- Não, não esqueci. É impossível esquecer-te e impossível esquecer os bons momentos que partilhámos. Sobre isso, tenho a certeza que nunca se apagará nada do que marcou um tempo das nossas vidas. Bom, desculpa não ter tido esta conversa contigo há mais tempo. Sinto-me em falta com a minha obrigação cívica de partilhar contigo o infortúnio que se abateu em ti com o falecimento do teu marido. Na verdade, soube-o há muito pouco tempo e não tive meio de fazer-te chegar a minha mensagem e toda a minha solidariedade. Na primeira oportunidade, estou a fazê-lo. Por isso, as minhas desculpas.
- Obrigado. Não tinha feito reparo nisso. Sei que nem sempre é possível mostrarmos os nossos melhores sentimentos, mesmo com as pessoas que queremos bem. Não há lugar a pedido de desculpas vindo de quem vem. Conheço-te bem demais para saber-te solidário. Bom, sobre isso pouco ou nada há a fazer e se isso foi uma má noticia, outro tanto não se poderá dizer da que me chegou ao ouvido. Refiro-me ao teu casamento para breve. Fala-me dele. Estou expectante.
- Como soubeste?
- Foi fácil, como adivinharás. Dinis, serviu de “correio”.
- Ah…Bem, falaste-me de casamento e eu pouco te poderei adiantar que não seja a marcação para daqui a pouco mais de um mês.
- Sinto-te pouco entusiasmado…ainda estás indeciso? Nesta altura as indecisões já não cabem, já não há espaço para elas.
- Sabes, a intemporalidade prega-nos surpresas que nos deixam a reflectir sobre matérias que até então pareciam definitivas. Eu estou a viver um tempo desses…
- Não percebi…
- Pode ser que ainda venhas a perceber. Na vida nada é definitivo. O “hoje” e o “amanhã” podem ter as interpretações que lhe quisermos dar. O meu “hoje” é diferente do meu “hoje” de há uns tempos atrás e o meu “amanhã” também é diferente do “amanhã” que havia pensado nessa mesma ocasião.
- Tens razão. Também já tive “hojes” e “amanhãs” que se mudaram da noite para o dia. Estou a viver um “hoje” e um “amanhã” que não estavam nas minhas previsões. Certamente, é a esta intemporalidade a que te querias referir. Concordo em absoluto contigo. Nada nos é definitivo mesmo quando tudo nos parece o seu contrário.
- E o pior ainda, é que a vida se faz de equilíbrios. O que falta a um, outro pode ter. Nunca ninguém estará só na vida para se realizar. O que faltam são oportunidades para fazer o equilíbrio, para compensar as faltas, as ausências, os vazios…
- Estás muito reflexivo!!! Não conhecia essa tua faceta de questionamentos.
- Não conhecias porque nunca me deste ocasião a tê-los. Eu, quando namorava contigo sempre acreditei que serias a pessoa certa para mim, o tal equilíbrio que falámos há pouco, por isso, não havia lugar a tiradas reflexivas ou de questionamentos do “hoje” e do “amanhã”. O futuro mostrar-me-ia outra verdade. Afinal, há “hojes” e “amanhãs”, todos os dias.
- Comungo da tua reflexão. Eu mesma, já dei comigo em aturadas reflexões que nunca imaginava. Nunca fui de “perder” tempo a pensar, acreditando mais que o futuro deva ser deixado a si mesmo e que pouco adianta fazer “programas” porque a imponderabilidade se encarrega de nos trilhar o caminho, por outro lado, também admito que nós poderemos domesticar os imponderáveis naquilo que eles são ponderáveis.
- Concordo e verifico que afinal também estás mais reflexiva do que imaginas ou que eu próprio imaginaria, mas há sempre um tempo para reflectir sempre que as nossas vidas se têm de confrontar com situações novas. Eu estou perante um facto que mudará a minha vida, para o bem ou para o mal e as dúvidas da decisão estão mais densas do que nunca. Não sei como cheguei a isto…
- Parece-me que a vida tem prazer em testar-nos, em pôr-nos à prova as nossas capacidades de decisão, de escolha…
- Se a vida tem esse prazer, então verificarei em mim esse testemunho. Eu mesmo terei de provar-me sobre o meu futuro e o que quero dele. Na verdade, não me resta muito tempo para tomar uma decisão concreta.
- Se achares que te poderei ajudar com a minha modesta e longínqua prestação, não hesites.
- Obrigado. Tu como sempre, solícita. Agora, que tenho o teu contacto, poderemos falar mais amiudadamente e não deixar que sejam necessários acontecimentos “especiais” para reatarmos a nossa amizade. Doravante, quer pelo telefone quer por e-mail estaremos próximos e em contacto. Foi um prazer muito especial falar hoje contigo. Um abraço de amizade e de conforto pela tua “sorte”.
- Obrigado. Retribuo o teu carinho e solidariedade. Um beijo. Até breve.
Finalizou deste modo o primeiro contacto entre ambos e que se havia perdido desde o tempo em que foram namorados. Por ironia do destino, “estão pessoas livres”, sendo que Leandro tem um compromisso com Célia, que em face da nova situação de Leonilde se parece fragilizar a cada dia, desde que a soube viúva. Do outro lado há uma mulher que suspira por amor mais que de saudade. A viuvez segue seu caminho apostando nela a razão sobre a paixão e agora com acrescidos motivos. Ter Leandro ainda solteiro abriria uma porta a novas fantasias e ao imaginário em tempos vivido por ambos, mais por ele, que por ela. Se o amor que viveu por Leandro não fora uma acesa paixão vinda do fogo do peito, também nunca hostilizaria ou subestimaria. Sabia ser amada e tantas vezes dava consigo a lamentar não lhe corresponder como ele gostaria. Viria o casamento com um homem que amou fruto de uma paixão emanada numa sedução natural. Eduardo era um sedutor nato, aliado a boa figura, que faziam dele um homem apetecido. Mas, nem tudo eram virtudes. Vaidoso, gostava de se sentir publicamente desejado e chegava a humilhar a mulher com o seu espírito conquistador ganho nos bares britânicos onde fazia garbo das origens latino-árabes. Convencido da excelência do seu porte físico, caracterizado por estatura média-alta, ombros largos, olhos negros como breu, pele de tez morena, cabelos castanho escuros, lisos e exuberância de linguagem, colhiam em certos círculos do mundo feminino britânico, atracção. Por via disso, Leonilde veria a sua ilusão pelo marido cair. O amor inicial perderia força. Eduardo apreciava a “noite” Londrina e gostava de se reunir com amigos feitos ao longo da sua permanência na Inglaterra, beberricando até altas horas, especialmente, aos fins-de-semana. Leonilde não tinha apreço nenhum por este estilo de vida e não o acompanhava, mas também não o conseguia dissuadir de ir. Esta conduta de Eduardo deixava-a triste. As sugestões para ficar em casa ou em alternativa ir ao cinema ou ao teatro, não colhiam atenção do marido. Rapidamente, Leonilde se aperceberia que os caminhos do alcoolismo se aproximariam do marido e se agora só o fazia aos fins-de-semana, no entender dela, outros dias viriam. Na verdade, não era isto que ela havia imaginado quando se apaixonou por Eduardo. Muitas vezes se havia questionado como teria sido o seu casamento com Leandro. E muitas vezes se havia questionado também sobre se se deve valorizar a paixão cega ao amor ou à amizade. Sabia que Leandro não a terá apaixonado, mas tinha a certeza da paixão dele, certeza que ela não tinha em relação a Eduardo. Este, desde que passaram a viver em Inglaterra passaria paulatinamente a demonstrar alguma indiferença pela mulher, a qual trocara por amizades de bar. O desencanto instalara-se em Leonilde e Leandro viria a ocupar-lhe o subconsciente. Nessas reflexões ficava com a certeza de ter uma vida mais segura, pacífica e tranquila nos seus braços. Mas agora, nada podia fazer. O casamento com Eduardo ainda estava de pé e a esperança de vir a ser como o tinha idealizado também não morrera. Acreditava muito sinceramente, que Eduardo, pelo seu próprio pé, revertesse o caminho traçado e que tivesse nela o seu centro de atenções. Acreditava que depois de não o ter dissuadido, ele viesse a ter a força e a consciência para fazer o caminho inverso. Tal não aconteceria de modo consciente, mas por infortúnio. A morte trágica e prematura de Eduardo mudaria repentinamente o curso da sua vida e encurtaria a distância com Leandro. Segura de que se voltasse a seduzi-lo, o teria de volta, Leonilde, iria fazer a aposta adiada. Os telefonemas, mensagens e e-mail seriam a forma encontrada para à distância se comunicarem. Leandro, embora desejasse que a comunicação tivesse outra forma, que a mesma fosse presencial, não a enjeitava, mas resguardava-se, não fora Célia se aperceber.
A situação financeira de Leonilde, ao contrário de um revés, catapultou-se, fruto de uma avantajada indemnização recebida. Não tendo ficado com filhos da anterior ligação, parece que o destino lhe pretende prestar vassalagem para dar essa oportunidade a Leandro. Em sonhos, Leonilde refaz a sua vida ao lado dele e experimenta o embalo de filhos não tidos, mas desejados, agora de uma relação desejada e ainda não retomada. O tempo para a reconquista estreita-se, aperta-se e só uma investida muito forte a fará vencedora. Célia, nem por sonhos imagina ingratidão em Leandro e muito menos que alguma traição venha a caminho. Por isso, nada no seu comportamento terá mudado, ou mesmo, vislumbrado qualquer sinal que indicie alteração comportamental de Leandro. A proximidade deste a Leonilde tem sabido ser cuidada, omitindo qualquer indicador do seu contrário. Em todas as conversas havidas entre estes, Leonilde sempre soubera ser cuidadosa no uso da palavra, nunca se lhe tendo declarado, nem mesmo Leandro, o fizera. Ambos têm alguma dificuldade para o fazerem, por razões óbvias. Ele, porque tem um compromisso assumido e casamento marcado e ela, porque socialmente se sente constrangida para o fazer.