PECADOS...POR AMOR

PECADOS...POR AMOR

II

Como a conversa estivesse a descambar para o enfado, Celeste mudaria o tema para futilidades quotidianas e Faustina, num sinal de olhos, transmitir-lhe-ia anuência. Pelo que foi possível percepcionar, nem uma nem outra estariam receptivas a ouvir tão grandes dislates, quiçá, por inveja mesquinha das duas. Finda a conversa, dispersariam, sendo que Zulmira ficaria feliz pelo encontro e pela forma como ela mesma deu conhecimento às vizinhas da veracidade do namoro. A sós, Zulmira falaria com os seus botões e num desabafo positivo dizia a si mesma: ficaram a saber que a minha neta namora para um doutor.

O regresso a casa far-se-ia com o coração feliz e até o passo parecia mais ligeiro que o habitual. A vontade de contar ao marido o encontro fortuito com as duas vizinhas, aumentava-lhe a ansiedade da chegada.

- Encontrei-me com a s nossas vizinhas e demorei-me um pouco mais.

- Isso não tem nada de estranho... Já o tens feito mais vezes.

- Sim, só que desta vez elas ficaram a saber que a nossa Célia namora um doutor.

- Doutor, doutor.., doutor é um médico.

- Isso é verdade, mas o nosso Leandro também é doutor e nem que não fosse, dizemos que é.

- Deixa-te desses armanços. Não vás agora cair no ridículo e ver a vizinhança a rir de ti. Demais, nem sabes se isso dará casamento…

- Não dá, como não dá?

- Que certeza tens? Nenhuma…

Este diálogo de marido e mulher arrefeceria a vontade de Zulmira publicitar bem alto o idílio da neta, contudo, ela não caberia em si de satisfação mesmo diante do marido e sem deixar morrer a conversa, ainda atirou:

- Sabes com quem se parece o nosso Leandro?

- De momento, não estou a ver.

- Pensa bem. Olha que não é difícil. Tu és pouco de ir à missa, senão já terias adivinhado.

- Que tem a missa a ver com isso?

- Tem tudo. Aquela imagem do Cristo, logo à entrada da igreja, vê se não se parece com Leandro?

- Sim, na verdade há alguns traços gerais. As barbas raras e rosto afilado, fazem lembrar um pouco…

Zulmira, percebera que Adérito não estava para grandes conversas. Ele, mais reservado, não dá importância, ou melhor, não faz passar para o exterior o prazer que o namoro da neta lhe dá e evita falar para não entusiasmar a mulher. Sabe que se se elevar muito alto as expectativas poderá ser mau para a auto estima de todos e muito particularmente de Célia e Zulmira, caso não chegue a bom porto, além de que poderá ser motivo de chacota da vizinhança que, no seu mais íntimo, deseja poder rir-se da imodéstia da babada avó.

A sós, avó e neta ainda não abordaram o namoro. Zulmira, por estratégia, não quis ainda ter uma conversa frontal com Célia, embora esse seja o seu maior desejo. O tempo que medeia entre o jantar de anúncio do namoro e o encontro, está a ser preparado com atenção e entusiasmo pela avó. A primeira grande oportunidade está próxima e a insónia da última noite irá precipitar o encontro. Logo pela manhã, Zulmira bateria suavemente, à porta do quarto da neta.

- Ainda dormes?

Como não tivesse ouvido qualquer sinal de que tenha despertado, não repetiria o batimento. Regressaria ao quarto e deixaria para mais tarde a ocasião. O tempo que se seguiria, serviria para reflectir e preparar a conversa e o modo da abordagem. Um tempo depois, voltaria a bater suavemente, como quem não quer incomodar, mas no desejo de que a neta esteja desperta.

- Ainda dormes?

- Acordei agora mesmo, avó.

- Posso entrar?

- Sim

- Vejo que dormiste bem. O teu bom aspecto não engana, ao contrário de mim, que dormi muito mal.

- Porquê, estiveste mal disposta, ou doente?

- Nem uma coisa nem outra…

- Então?

- Sabes minha querida, não estava a contar com o jantar e muito menos com o que me disseste. Essa de tu me anunciares o namoro com Leandro, deixou-me muito feliz. Já há muito que eu te desejava ver namorada. As moças da tua idade, todas elas têm um namorado, só tu não tinhas e isso deixava-me triste e constrangida diante das mães das moças da tua idade. Nunca havia percebido o porquê de os moços não te procurarem, sendo tu uma moça cheia de encantos.

- Ora, avó, cada pessoa tem a sua oportunidade e a minha ainda não havia chegado.

- Fosse, mas eu já achava que tardava. Agora, sinto-me uma mulher bem feliz, quiçá a mais feliz de todas as mães ou avós da nossa terra.

- Ainda bem, avó…

- E não estou só feliz por te ver namorar, mas também e principalmente, por tu seres a única a namorar um doutor.

- Oh, que é isso avó!!!

- Não é que é isso, não. Tu nem fazes ideia do quanto me fazes feliz. Espero agora que esse namoro seja para levar até ao fim.

- E será avó…

- Oxalá, Deus saiba perceber que o mereces. Sempre foste muito devota da igreja e muito particularmente de Cristo. Ah, por falar em Cristo, Leandrinho parece-se muito com Nosso Senhor Jesus Cristo.

- Acha, avó?

- Então não? Cá para mim, Deus meteu-se nisto e quis presentear-te com o melhor que pôde.

- Seria?

- Tenho quase a certeza. Quando Deus quer, nada deixa de acontecer. A força de Deus é imensa e cá para mim, Ele quis que um milagre acontecesse na nossa casa. Agora, resta-te a ti não esbanjares esta soberana ocasião que Deus pôs nas tuas mãos. Irei pôr a arder junto da imagem de Cristo que tu tanto gostas, tantas velinhas quantos os teus anos, em acção de graças recebidas. Demais, as nossas vizinhas são tão invejosas que até Deus não se esqueceu de nós e particularmente, de ti.

- Deus não entra nessas contas, avó.

- Isso és tu que o dizes… Olha que Deus não dorme. Ele sabe vingar-se na hora certa. Ninguém pode ignorar o Seu poder de vingança.

- Avó, Deus não existe para fazer mal e muito menos para se vingar do que quer que seja. Sei que antigamente as pessoas eram ensinadas a crer nisso…

- Deus não mudou. O Deus de antigamente é o Deus de hoje e se antigamente Ele se vingava, agora também se vinga e ninguém me tira da cabeça que este namorado que tu tens não foi uma vingança Dele para as vizinhas que achariam que tu não arranjarias namoro.

- Tá, avó. É a sua opinião. Não vou contestá-la, senão não chegaremos a lado nenhum.

Célia não se mostraria muito interessada em alimentar as tiradas de fé da avó e deixaria morrer o diálogo. Por sua vez, Zulmira viria materializada a vontade de ter esta conversa com a neta e de sossegar o seu espírito.

O dia e os dias seguintes seriam iguais ou parecidos com os passados, na relação com terceiros, contudo, entre os namorados nada mais voltaria a ser igual. Percebia-se que o amor era notado e os olhos dos mais próximos perscrutavam sinais de fracção entre eles para alimentarem conversas de lana-caprina. Quem estava bem atento a esses sinais era Leonardo que, no seu subconsciente desejava tanto que eles acontecessem como a desejava para namorada. Leonardo, sempre se pautou por um moço simples e tímido, mas de coração enorme, conforme testemunham alguns comportamentos solidários para com pessoas necessitadas. Não fosse esse sinal de inveja por ver Célia nos braços de Leandro, nada de negativo haveria a apontar-lhe. A jovem, intuitivamente, percebera que o colega actor, embora nunca lhe tivesse dirigido palavras de afecto, teria por ela atracção, que relativizaria por não lhe bastarem para preenchimento do seu coração os seus atributos solidários e cívicos e o bom-nome de que gozava na praça. O homem da sua vida havia sido desenhado no seu coração desde muito pequena e que se acentuaria a partir do momento em que definitivamente se apaixonaria pela figura conhecida e pública de Cristo e de que a igreja faz divulgação. Os traços físicos do Salvador passariam a ser em primeira-mão a razão de ser da sua religiosidade a partir da puberdade e do despertar para o amor. Nunca ícone algum, concreto ou fantástico, produziria efeito tão acentuado na decisão futura para a escolha do homem apetecido para abraçar e beijar, e lhe dar o que o imaginário de melhor tem para oferecer. Agora, que isso aconteceu, Célia não irá desperdiçar, nem se vislumbra que isso também aconteça por parte de Leandro, já escaldado de uma amor e paixão não concretizada na pessoa de Leonilde e que demorara muito tempo a digerir. Assim, tudo se conjuga para que o namoro não seja excessivamente prolongado, ora pela paixão de um, ora pelo complexo de falhanço de outro e das correspondentes sequelas psíquicas que isso acarretaria e mais ainda por Leandro já ter experimentado esse lado amargo, o qual o fragilizaria definitivamente.

Ao fim de três meses de assumido namoro, Zulmira já questionava a neta acerca do casamento:

- Célia, já namoras há tanto tempo e ainda não te ouço falar em casamento!!!

- Tanto tempo, avó!!? Ainda só passaram três meses…

- Sei. Três meses tanto pode ser muito, como pouco tempo. O tempo não se mede pelas horas e pelos minutos de um dia ou de uma semana, meses ou anos, mas pelas batidas e desejos do nosso coração. Este é que é o verdadeiro marcador do tempo. Eu quando era jovem como tu, parecia que as horas não andavam, agora na minha idade o tempo não anda, corre e olha que as horas sempre foram de sessenta minutos…portanto, minha querida, quando o que desejamos está tão perto de nós alcançarmos, o tempo e a distância são sempre demorados e longínquos. Não há esperas para se ser feliz. As únicas coisas que podem esperar, é a morte e a doença.

- Avó, que diriam as pessoas se nos casássemos assim tão rapidinho? Ainda iriam pensar que estaria grávida e que casaria à pressa…

- E estás, não estás pois não? Que nos interessa o que as pessoas falem. Bem sei que a vizinhança sempre foi boa observadora e de gostar de falar da vida alheia. Eu às vezes também gosto, mas na verdade teremos de ser superiores a isso e demais também era uma maneira de calarmos alguns vizinhos e de nos dares um “neto” de presente. Estou certa que Leandrinho deverá ser um óptimo neto e um bom marido e futuro pai. Teu avô, embora não se manifeste publicamente, anda muito feliz com o facto de na nossa casa poder entrar um doutor.

Esta breve conversa de avó para neta potenciaria a ideia de casamento, a qual, no íntimo da jovem iria exercer alguns efeitos. Pela primeira, vez iria pô-la a pensar mais maduramente na ideia do casamento e mais ainda a partir do momento em que a maturidade e a sensibilidade persuasiva da avó entrou em campo. Todo o discurso de Zulmira seria inquinado pelos seus próprios desejos.

A jovem está radiante pelo namoro e mais ainda pela receptividade do mesmo, diante dos avós. Desta receptividade dará parte a Leandro, que aliás, nem precisaria, tanta a evidência do seu comportamento de extrema felicidade que aos colegas actores e vizinhos não passa despercebido e muito menos a Leonardo. Este, por sua vez, conjectura a respeito da sua própria passividade quando o coração deu sinal de afecto por Célia. A timidez teve custos irreparáveis para si, mesmo, não sabendo do sucesso ou insucesso do idílio. Este enigma iria permanecer no seu subconsciente por longo tempo e levá-lo-ia a procurar psicólogo para consulta, em razão do seu estranho comportamento, cuja face mais visível se prende com auto-estima, em queda. Os próximos ensaios do Grupo Teatral seriam marcados pela ausência de Leonardo, cuja alteração de rotina levaria a questionar sobre as suas razões. Neste particular, Leandro seria dos que mais se preocuparia em saber as causas, tendo ligado aos pais dele, os quais, responderiam evasivamente, sem que o encenador tivesse ficado esclarecido. Umas vezes, disseram-lhe que tinha ido tratar de assuntos inadiáveis, outras, que se havia deslocado para fora, mas que estivesse sossegado porque nada de especial estaria a acontecer para além do que lhe responderam. Este esclarecimento tranquilizaria aparentemente, mas não convenceria o encenador da sua veracidade. Leandro, cuja sensibilidade é assinalável, já havia notado algo de estranho nele desde o lanche oferecido na Pastelaria Chocolate Negro, onde se anunciaria publicamente o namoro. A habitual vivacidade que Leonardo espalhava quando se descartava da sua costumada timidez, jamais voltaria a ser como dantes. Os constrangimentos associados à sua timidez nunca mais gozariam de liberdade e afunilariam a excelência da sua tranquilidade. Entretanto, os ensaios não se quedariam e continuariam o ritmo habitual enquanto os colegas alvitravam várias razões para lhes explicar a ausência. Leandro seria então questionado por alguns deles sobre se saberia algo de Leonardo, respondendo-lhes de acordo com o que ouvira dos pais, tranquilizando-os.

Ao fim de algumas semanas e sem que fosse previsto, dar-se-ia o regresso aos ensaios, de Leonardo, pelo que a recepção far-se-ia com especial atenção. Uns, conjecturariam acerca das razões da ausência e outros, questioná-lo-iam frontalmente. Neste particular, a mais intrigante das colegas, Clara, numa ocasião mais oportuna e a sós, submetê-lo-ia com várias questões.

- Leandro, que te aconteceu que nunca deste sinal de vida? Não estás com cara de doente, será que estiveste?

- Não, não estive Clarinha.

- Então? Confesso-te que me preocupei no meu íntimo, com a tua ausência. Sei que nada fiz concretamente, para indagar, mas também não o teria de fazer, porque não estava mandatada para isso, não achas? A título particular, já o deveria ter feito, mas acreditei que nada de significativo te tivesse acontecido.

- E nada aconteceu de relevância…

- Sim, estás então a admitir que algo aconteceu.

- Enfim…, coisas a que qualquer pessoa poderá estar sujeita, mesmo contra sua própria vontade.

- Isso é verdade. Todos estamos sujeitos a percalços e nem sempre a nossa mente é capaz de ser superior e ultrapassar por cima. Eu já senti na minha pele coisa semelhante. Semelhante, digo eu, que não sei o que te aconteceu, mas quase arriscaria a adivinhar…

- Semelhante, disseste tu? Não poderá ter sido nem de perto nem de longe semelhante. Cada um tem as suas próprias e só as suas razões e nada será igual. Pareces tão segura da certeza de que adivinharás, queres então arriscar o que se terá passado comigo?

- Arrisco sim e acho que não me enganarei. Bastar-me-á pronunciar uma palavra e perceberei que não me enganarei.

Quando Clara afirmou que apenas com uma só palavra diagnosticaria as razões para o seu comportamento, Leandro revelaria algum nervosismo, tal como inquietação de mãos e pés, baixar de olhos, ligeiro descontrolo respiratório e gestos inconscientes, como engolir em seco e um levar de mãos à boca num breve gesto de roer de unhas seguido de um levar de mãos à cabeça como que a acamar o cabelo ou a penteá-lo. Em face do momento, Leandro procurou serenar-se e corrigir os gestos para não mostrar o nervosismo que o apoquentou e numa atitude de falsa segurança, atirou:

- Uma só palavra, não achas pouco!!!? Já és psicanalista?

- Célia…

Ao ouvir a pronunciação da palavra, Leandro como que ficou vazado por uma lança. A certeza de Clara confirmar-se-ia e o olhar de Leandro voltar-se-ia para baixo e por alguns segundos emudeceu, como que reflectindo sobre a saída, sobre a resposta a dar.

- Desculpa. Não pretendi lembrar-te o que certamente já estarias a esquecer, mas tão-só dizer-te que eu não estaria enganada a teu respeito. Sei muito bem o que isso é e sei-o quando também eu descobri que amava alguém e da qual nunca recebi sinal.

- Na verdade, acertaste em cheio. Só te peço que não tenhas nunca com alguém qualquer conversa acerca do que acabamos de falar. Quero deixar morrer o sentimento que em dado momento senti por essa pessoa e pôr-lhe um ponto final.

- Compreendo e compreendo-te. Também já tive uma fase em que sofri comigo mesma por alguém que nunca me deu qualquer perspectiva. Sei que essa pessoa não terá qualquer culpa. O amor não tem que ser uma obrigação de alguém para com outro, não poderá ser, nem deverá ser, qualquer coisa como uma acção misericordiosa para calar ou satisfazer o ego a alguém. Ele é muito mais que isso e muitas das vezes somos levados a não perceber ou a não querer ver as razões que assistem a cada um. Como poderei culpar ou responsabilizar pelos meus sentimentos, quem não tem culpa?

- Estás a querer dizer que já passaste por situação parecida?

- Sim, semelhante, tal como te falei no início da nossa conversa, recordas-te?

- Nunca me apercebi de nada de diferente em ti. Soubeste camuflar muito bem os teus sentimentos. Eu não consegui, os meus parabéns.

- Parece-te isso, mas não é verdade. A minha vida e muito principalmente, os meus sonhos, sofreram rude golpe. Havia sonhado com coisas tão lindas para mim e para essa pessoa que acho foi o maior logro em que me vi envolvida. Agora, e passado um tempo, despertei para a realidade e só me culpo a mim de andar a desenhar a felicidade como regra aritmética de dois mais dois ser igual a quatro.

- Poderei saber quem desenhaste no teu sonho?

- Leonardo…

O soletrar dessa palavra deixaria o receptor atónito. Leonardo, sempre achou que Clara o tivesse apenas por amigo e colega e que jamais o via como paixão e objecto de desejo e partilha. Toda a simpatia que ela exalava não fora interpretada como afecto nem tão-pouco lhe merecera atenção, quiçá, porque os seus sentidos andassem embriagados por Célia. Agora, que tudo se precipitou numa conversa franca e de coração aberto, os jovens e particularmente, Leonardo, passaria a olhar Clara de modo diferente. O suposto afecto, que ele confundiu com simpatia passaria a ser visto como afecto e jamais os novos tempos se repetiriam com os do passado. Clara, embora nunca tivesse entrado nas contas dele pelas razões óbvias, também nunca fora renegada. Agora, uma chama acender-se-ia para os dois e novos dados estão lançados para que o amor aconteça.

- Clarinha, nunca será tarde para acabares o desenho, que em sonho começaste. Um sonho nunca morre, ele apenas hibernará e o teu sonho não morreu porque o objecto dele está vivo para lhe dar vida e eu quero participar desse sonho e ser seu protagonista.

Com a força e a convicção destas palavras, não estava a contar Clara. Aquilo que lhe parecia perdido, renasceria e ambos se comprometeriam a ser felizes para sempre e assim seria. O namoro viria a ser assumido e referenciado como modelo pelas pessoas que melhor os conheciam, tal a cumplicidade evidenciada. Ficaria claro para Leonardo que a paixão não correspondida por Célia não teria passado de um devaneio sem pernas para andar. Clara, que no anonimato sofria pelo homem que agora tem nos braços, veria materializado o sonho e Leonardo, veria ser apagado da memória o nome de Célia e com retorno positivo, colheria o amor de e por Clara.

Entretanto, o namoro de Célia e Leandro continuaria pujante de empenho e amor. Ambos parecem ter encontrado a pessoa certa e disso não restam quaisquer dúvidas aos olhos de terceiros. A verdade, é que nos meandros do “diz que disse”, não falta quem conjecture datas para casamento e até os mais ousados aventuram a fazer premonição, adiantando nomes para o apadrinhar. Este namoro, que num passado recente tirava o sono a Leonardo, não passa agora de um acontecimento social sem qualquer importância para ele. Não lhe é objecto de qualquer comentário, tal o modo como está envolvido no seu próprio namoro. Pelo facto dele também ter encontrado a pessoa certa, não lhe sobram minutos nem atenção ao que se passa com o coração dos namorados mais falados da pequena terreola. Estas atenções gerais inclinam-se mais para Célia que para Leandro, quiçá, por a jovem ser natural da terra e por isso, bem conhecida por todos e ainda pelo facto dela poder desposar um doutor, como gosta de frisar a avó. Sabe-se pois, do gosto que o poviléu tem por esta temática social e mais ainda quando são observados juntos. Uns, atiram que Célia terá muita sorte ao casar com um doutor, outros, que o moço deve ser boa pessoa a ajuizar pela cara parecida com as imagens públicas de Cristo e outros ainda, os mais derrotistas ou mais invejosos, que ela não mereceria coisa tão boa. Seja como for, para gáudio de uns e inveja camuflada ou descarada de outros, eles respiram saúde afectiva.

Numa das últimas vezes que foram vistos juntos, teriam vindo da residência paroquial e supostamente, de falar com o padre, quiçá, acerca de casamento. Quem os viu não guardaria segredo e na melhor oportunidade, interpelaria Zulmira, numa de querer saber algo mais e confirmar a suposição.

- Vamos ter casamento breve, não Zulmira?

- Porque dizes isso, mulher?

- Então não é que vi a tua neta e o namorado, a vir da residência!!!

- Como sabes que foi da residência, eles podiam vir de dar um passeio pela terra…ou será que eles não podem passear? Olha, Olívia, quando for anunciado casamento eu dir-te-ei, porque sei que ninguém ficará sem saber, está bem?

O tom jocoso de Zulmira não agradaria nada a Olívia, de cuja fama de mulher miscradeira não se livrará. Olívia, mora de frente à residência paroquial e todos os movimentos de e para a residência não lhe escapam. O seu dia-a-dia é passado na maior parte do tempo junto à janela do seu quarto, muito por culpa de uma paralisia que teve em criança e que a incapacitou para trabalhos forçados, e onde, pode receber luz directa para fazer bordados ou costurar, no que diga-se em abono da verdade, goza de fama e algum proveito. Olívia casaria tardiamente com um viúvo, a ponto de ainda vir a ter uma filha, esta, já casada e emigrada nos Estados Unidos. Os seus ouvidos e olhos vivem em permanente atenção, mais aqueles que estes, quando alguém passa próximo ou por baixo da janela. A máquina de costura pára para poder perscrutar algo que lhe preencha as atenções. Esta faceta é bem conhecida de todos, ainda assim, os menos avisados já terão deixado passar algumas inconfidências, para seu gozo pessoal.

- Olha Zulmira, desde que a tua neta começou a namorar com esse moço, nunca mais foste a mesma. Acho que te subiu algo à cabeça e quanto a saber do casamento da tua neta, isso é coisa que tu não irás esconder, sabes porquê? Tu não precisarás da Olívia para nada. Tu mesma encarregar-te-ás de fazer boa e exaustiva publicidade.

Zulmira perceberia a “charutada” e abreviaria a conversa. O momento não propiciaria uma conversa agradável às duas e despedir-se-iam com um até breve.

Pelo caminho e a sós, Zulmira teceria alguns impropérios e juízos de valor a respeito da curiosidade doentia de Olívia, desculpabilizando-a ao mesmo tempo com a precária mobilidade, que faz ela ter esse jeito de ser. Porventura, dizia para si, se ela fosse uma pessoa sem incapacidade, não teria explorado esse lado mexeriqueiro…

A observação de Olívia era pertinente e era-o porque o seu sexto sentido revelaria a habitual acuidade de quem já perscrutou tantas e tantas vezes os mesmos passos de namorados que, vindos da residência paroquial, sinalizariam o casamento como acontecimento a breve tempo. De um modo geral, raras vezes se enganaria e quase sempre seria a primeira testemunha a dar notícia do que vira às amigas tidas por confidentes. Bernarda, uma invisual de nascença e pouco mais nova, vivia paredes-meias com Olívia e muitas vezes passava parte do seu tempo junto desta, o que diga-se, convinha às duas. Ambas, com evidentes limitações de natureza física, buscavam entreajuda, ora preenchendo as horas do dia cavaqueando, ora executando algumas tarefas. A complementaridade de interesses era comum e se Olívia era útil a Bernarda, o contrário, também era verdade. Bernarda gostava de andar informada acerca do seu pequeno mundo e nada melhor que a amiga para a colocar diante dessa realidade. Olívia lia-lhe o jornal da paróquia para a informar acerca do horário das missas e pela alma de quem eram rezadas e também, o jornal regional, particularmente a página de necrologia, no fundo, o que mais a interessava. Outros temas que também gostava de conhecer andavam à volta da página central e dos artigos acerca dos cuidados de saúde, do horóscopo, da meteorologia e o anedotário. Televisão não tinha, porque dizia: para que quero a TV, se a não posso ver? Rádio não dispensava e quando este não dava programa que lhe agradasse, ligava o velho gira-discos. A cegueira nunca foi um drama para si e muito menos assumida publicamente. E se em alguns momentos sentia tristeza, disfarçava-o, cantando velhas cantigas populares que transitavam de boca em boca, há longos anos. A companhia de Bernarda nunca importunou Olívia, em tempo algum. Ela gostava de lhe prestar atenção às necessidades confidenciais que os olhos e ouvidos apanhavam e que lhe alimentavam a mesquinhez. Bernarda nunca foi mulher para dar grande atenção à vida alheia e tudo o que vinha de Olívia era questionado. Verdadeiramente, só gostava de tomar conhecimento de factos que de algum modo pudessem ser entendidos como coisas boas e que inspirassem felicidade e nem o facto de gostar se andar informada acerca da página de necrologia, demonstraria o contrário. Esta conduta, dizia, era para que pudesse rezar uns Padres-nossos pelos defuntos conhecidos e falecidos fora da terra e que por esta ou outra qualquer razão não lhes podia assistir aos seus funerais.

- Ontem, vi uma coisa e cá para mim, não devo andar enganada… Qualquer dia vai haver mais um casamento...

- De quem?

- Ora, de quem? De quem haveria de ser…então tu não sabes do namoro da neta da Zulmira com aquele moço do teatro, o Leandro?

- Já ouvi falar, mas nem o conheço, ou melhor, nunca falei para ele.

- Eu também nunca o tinha visto. Se não fosse pela moça, eu não saberia que era ele. Mal saio daqui, a não ser para ir a médico ou levantar a minha reforma.

- Sim, mas tu ainda podes ver, mas eu nem isso. Como é ele, é bonito?

- É bonito… é um homem, só com uma particularidade; pareceu-me a figura de Cristo, daquele Cristo que aparece nas imagens.

- Eu, infelizmente nem isso posso ver. Então, usa barbas e cabelo grande?

- Achei-o parecido na figura e nas barbas. Não, o cabelo é curto, senão era um Cristo chapado.

- Onde os viste?

- Ora, vinham da residência e certamente de falar com o padre Justino.

- Pode ser… tu raras vezes te enganas.

- Olha minha filha, o ditado é bem antigo: “Quando as pegas gaguejam, há ninho perto”, percebeste?

- Se não fosses tu, eu quase nada saberia... A mim não me chegam novidades ou melhor, quando chegam, já não são novidades para ninguém, a não ser para mim.

- Sabes que a Zulmira não se cansa de dizer que o Leandro é doutor!!! Onde se viu um doutor de teatro, só mesmo na cabeça dela!!!

- Por mim, o que desejo é que sejam felizes. Ser doutor ou não, pouco importa. Não viste o caso da filha da Leontina, que casou mesmo com um doutor de medicina e o casamento durou o tempo de esfregar um olho?

- Ah, lembro bem. Cá para mim, Leontina foi culpada disso, ou então a filha já não era, percebes…?

- Não, não creio que fosse por isso em que estás a pensar. Deve ter sido algo que não nos interessa e que só eles sabem as razões. Eu nunca casei, mas acredito que não seja coisa fácil duas pessoas diferentes comungarem da mesma ideia de vida. Lembro-me bem das desavenças que havia em minha casa com os meus pais e que muitas vezes nasciam de coisas insignificantes. Ás vezes, perguntava a mim mesma, como é possível terem-se zangado por “merdices”…?

- Tens razão. Eu casei-me já tardiamente e só agora é que a nossa vida anda mais entendida. Não foi fácil…Voltando à vaca-fria; tu verás se dentro de dois a três meses eles não estão casados...

- Acredito. Tu és muito perspicaz…

Como tivesse chegado a hora do lanche, Olívia não deixaria a amiga ir embora sem que ambas lanchassem juntas. Preparou um café bem forte para si e uma chávena de leite com bolachas para Bernarda. No final, lembraria a amiga para que não fizesse alarde da conversa havida, a qual lhe retorquiria: já alguma vez te deixei ficar mal? Em abono da verdade, ter-se-á que louvar a atitude correcta de Bernarda que, em tempo algum terá posto em cheque, a confessora. Esta amizade e confiança têm sido duradoiras, muito por culpa de Bernarda, que inteligentemente sabe satisfazer as suas necessidades informativas.

O futuro iria dar razão a Olívia. Na verdade, os jovens namorados vinham mesmo de ter uma conversa com o padre Justino, onde abordariam a disponibilidade de se casarem no dia de aniversário de casamento dos avós de Célia e que ocorrerá daí a três meses. Padre Justino, muito próximo de festejar as bodas de ouro sacerdotais, pautou sempre a sua vida pastoral com discrição, com excepção de um período menos bom da economia há umas décadas atrás, no período negro, mais negro do fascismo, que originaria desemprego maciço e que por via disso haveria arrastado muitas famílias para a pobreza. Nessa altura, faria valer a sua voz com intervenções públicas de afrontamento ao poder político, que quase lhe valeriam a prisão, não fora um seu amigo de infância que era influente na área do poder e que o aconselharia a ser mais discreto nas críticas, sem contudo deixar de dizer o que pensasse, por essa ser também uma missão evangélica, dizia.

- Ora vivam os jovens namorados… Então, a passear por estas bandas?

- Olá senhor Padre Justino. Não propriamente a passear, Sr. Padre…

- Não, então em que vos posso ser útil?

- Não será difícil adivinhar…

- Eu quando sou procurado, será para funerais, casamentos, baptizados e pouco mais… Antigamente, ainda me procuravam para se desobrigarem de pecados…chamavam pecados ao tempo da miséria em que ás vezes roubavam umas couves, batatas ou frutas…bem sei que, melhor seria pedir, mas o acto de pedir por vezes parece-me mais constrangedor que o roubar essas pequenas coisas para sobreviver. Tantas e tantas vezes, eu não sabia o que lhes dizer quando as bocas famintas dos filhos se abriam para pouco mais lhes entrar o ar que respiravam, o ar que Deus nos deu, que deu a todos em partes iguais e para servir as necessidades de cada um. Pena que os alimentos e todas as outras necessidades básicas não tenham a mesma justa distribuição. Bem, certamente vocês não vieram aqui para me ouvir sobre esta temática.

- Sim, não viemos, mas não invalida que possamos conversar sobre esse tema ou outros, como agora se diz: temas “fracturantes”.

- Não sei qual é a vossa pressa, por mim …

- Não temos pressa nenhuma. O que temos para falar, também não irá ocupar-nos muito tempo. É por causa do nosso casamento. Nós muito gostaríamos que fosse o Sr. Padre Justino a casar-nos e se possível, no dia de aniversário do casamento dos meus avós.

- Muito bem…eu também farei gosto nisso. Aliás, eu tenho para com os teus avós muita consideração, como contigo, também. O teu noivo é a primeira vez que o conheço pessoalmente e devo-te dizer que não me parece nada estranho. Essa cara acho que já a vi muitas vezes…Falando sério, isso será quando?

- É precisamente para daqui a três meses.

- Muito bem. Vou dar uma espreitadela à minha agenda, mas julgo que não terei nada para essa altura. Curioso, lembro-me que os meus pais também se casaram no mesmo dia. Digamos que a festa também sobra para mim.

- Ah, também fazemos gosto que o Sr. Padre Justino marque presença na nossa boda.

- Não digo que não. Mas, mais lá para a altura falaremos melhor acerca disso. Já não sou homem para grandes jantaradas, nem nunca fui, ao contrário da fama que os padres gozam. A minha idade e uma saúde a entrar em fase mais precária, exige que eu tome acrescidos cuidados. É dever de cada um cuidar do dom da vida e delapidar a saúde é, direi, tão grave como cometer o maior pecado. Deus deu ao homem a possibilidade de ser feliz e esbanjar essa oportunidade não me parece coisa certa. Bem bastam os imponderáveis para nos fazer infelizes, quanto mais, buscar a infelicidade. Eu ainda sou mais velho que os teus avós uns anos e lembro-me bem deles terem a idade que tu tens hoje. Tudo foi muito rápido e hoje, retrospectivando os tempos, guardo algumas saudades da pureza das pessoas. O mundo hoje é mais agressivo, materializou-se e quase vale tudo para ser e ter. Ser mais e ter mais. Os corações dos homens de hoje são insaciáveis e não olham a meios para obter os fins. Há responsáveis que deveriam ser julgados e na minha opinião, nem a igreja estaria a salvo. A criminalidade daqueles tempos era quase lírica, puro amadorismo comparada com a que se pratica hoje. Nada tem a ver… agora assiste-se a cenas de violência cujas palavras quase faltam para lhe descrever a malvadez. Mas nem tudo está mal. Algumas coisas melhoraram, mas na minha opinião era assim que deveria ser sempre. Destas, destaco o avanço da medicina que permitiu às pessoas terem uma vida mais longa e menos dolorosa. – Não sei se estou a ser chato…desculpem-me por isso.

- Não, não está…pelo contrário, retorquiu Leandro. Aliás, não é comum um sacerdote ter uma conversa tão aberta e para mais com uma pessoa que acaba de conhecer pessoalmente, agora mesmo. Eu aprecio os clérigos que têm coragem para dizer verdades, porque acredito, que não seja nada fácil…

- Tem razão. Não é, nem nunca será fácil dizer verdades. Tomemos o exemplo de Cristo. Todos sabemos que Ele foi entregue pelos supostos amigos à presença do procurador romano Pôncio Pilatos para ser julgado e condenado à morte. Ele o que queria? Apenas lutar por justiça, não era? A história tem conhecido milhares de Cristos que por ousarem falar e lutar pela verdade e justiça acabariam mortos. Aqui, neste pequeno país isso também aconteceu e não será preciso recuar muitos anos na história para encontrarmos esses exemplos deploráveis da injustiça praticada por quem tem poder e ódio para governar. Lamentável, muito lamentável…

- Somos jovens e nossa vivência ainda curta ainda não nos permitiu ter uma visão tão pormenorizada como o Sr. Padre Justino, contudo há coisas que ainda não enxergamos e que tem a ver com uma desadequada posição da igreja perante alguns temas. Peço desculpa por ter dito desadequada, mas é assim que interpreto. Refiro-me a temas como o celibato, divórcio, aborto, uso do preservativo, homossexualidade e outros que, modernamente, chamam fracturantes.

- A palavra desadequada tem propósito. É mesmo esse o vocábulo certo para definir o não acompanhamento dos tempos e a sua evolução. Sabeis, a estrutura da igreja não caminha à mesma velocidade da sociedade civil e na minha óptica, é aqui que falha. A igreja é uma sociedade demasiado fechada e que tem receios de se revelar, de se abrir. Acho que teme ser devassada por correntes comportamentais e de opinião que a pudessem minar e desacreditar. Visto por essa perspectiva, eu acho que a igreja tem razão, contudo também acho que não deveria evitar a realidade da sociedade civil porque é com ela e nela que tem de viver. Daí eu ser um crítico, mas um crítico construtivo, que já experimentou alguns dissabores por expressar a minha sincera opinião. Esses dissabores nunca me vieram de fora, nunca vieram dos meus paroquianos, nunca vieram da chamada sociedade civil, mas dos meus pares, de sacerdotes que nem sempre têm condutas correctas e que as escondem por trás de opiniões alinhadas com dogmatismos e servilismos intemporais. Esses temas que falastes, na minha opinião, deveriam ter amplo debate público e com intervenção da igreja, sem complexos de os debater e aprofundar, adequando-os aos tempos. Não fará qualquer sentido a igreja assistir e nada fazer ou assistir pela negativa. “Meter a cabeça na areia” não devia ser prática. Intervir e mostrar que quer participar, seria um sinal muito forte de vitalidade e supostamente um travão ao avanço de seitas ou falsas religiões. O tema mais antigo e que toda a gente questiona, está ligado ao celibato. Nunca vi negativamente que um padre pudesse contrair matrimónio. Em tempos recuados isso era natural e nos tempos de hoje é absolutamente proibido. Até parece que a história regrediu… Deixar ao livre arbítrio de cada um seria o modo mais correcto e seria ao mesmo tempo uma porta aberta para as vocações sacerdotais conhecerem novo fôlego. Esta questão é interna e que em cada concílio parece acender-se uma chama para o seu debate. Na verdade, a expectativa morre sempre à nascença e mais uma vez fica adiada sine die. Uma outra questão que contribui, acho eu, para que as mudanças não ocorram, tem a ver com a forma como é escolhido o Papa. Se estivermos atentos, a escolha resulta de um conclave de cardeais e só de entre estes poderá sair o Papa. Isto é: não pode ser Papa quem quer, não se pode candidatar e ser Papa quem acha que tem perfil ou condições. Isto é uma completa ausência de democracia. Logo, à partida, a escolha está manipulada e jamais poderemos ver a Papa um homem jovem e com ideias novas. Eis uma das razões para que a igreja padeça de inércia e dificuldades em compreender a velocidade a que a sociedade civil anda.

- Curioso, nunca tinha pensado nessa ideia de poder por via referendária na comunidade pastoral, haver um Papa ainda jovem. Na verdade, essa ideia até me parece como angular para haver mudanças substanciais na forma e interpretação da sociedade civil. Se estivermos atentos, os Papas sempre foram homens já idosos ou muito perto disso e quem sabe, um entrave às mudanças.

- Parece coisa de somenos, mas não é tanto assim, Sr. Dr. Leandro.

- Pelo menos, com um Papa ainda relativamente jovem, e por jovem falo de um homem entre os quarenta e os cinquenta anos, as expectativas poderiam ser outras, digo eu…

- Também creio nisso. Outra coisa com que discordo, é o carácter vitalício da eleição. O último Papa já não tinha condições de saúde físicas e mentais e a sua substituição era, na minha óptica um acto de misericórdia e a que assistimos?

- Não assistimos s nada…

- Pois não, a não ser à sua continuidade infinita e até ao último suspiro. Se ele não foi capaz de renunciar, o mesmo conclave que o elegeu devê-lo-ia poder destituir por não reunir as condições que o levaram à eleição. Isso teria sido uma atitude correcta, justa e de respeito por ele e pela igreja, mas a minha opinião vale o que vale…e mais, se a tornasse pública, o que seria de mim?

- É…muitas das vezes é preciso engolir em seco para que o “feitiço não se vire contra o feiticeiro”.

- A sociedade está estruturada para a cobardia e para a hipocrisia. Estes valores, falsos valores, não teriam que existir, não fosse a perfídia do homem, mas…

- Pois…olhe Sr. Padre Justino, eu gosto de me questionar acerca do homem, da vida, de Deus e quando leio que o homem foi feito à sua imagem, fico tão descrente…

- Não são só vocês a terem dúvidas. Eu, como já vos disse, sou mais velho que os vossos avós e portanto, já tenho muitos anos de vida pastoral e nunca deixei de as ter. À medida que os anos avançam ainda tenho mais e esta descrença é resultado da prática do homem, no seu geral, mas também de quem tem responsabilidades públicas, seja a nível governamental ou religioso. Há coisas tão evidentes que não precisariam de ser questionadas para termos opinião favorável. Neste particular, a igreja consegue estar pior que a sociedade civil.

- A que se refere em particular, Sr. Padre Justino?

- A que havia de ser? Ao divórcio, ao aborto em certos casos e não de modo generalizado como algumas pessoas acham que devia ser, ao uso do preservativo como meio de combater a proliferação do vírus da SIDA, à homossexualidade, à eutanásia, às relações de facto, aos meios anticoncepcionais, isto para falar dos temas a que a igreja mais tarde ou mais cedo não poderá esquivar-se de os debater, de os aceitar e de os assumir como factos que unem, que libertam e responsabilizam. Sei que não será fácil falar de alguns destes temas e não será fácil mesmo para o cidadão comum, quanto antes para uma instituição fechada e ortodoxa como a igreja. Reconheço que o mundo chamado ocidental ou o velho mundo, este onde vivemos, está à frente de outras civilizações que enfermam de políticas persecutórias e primárias que nós já abandonamos há muitos anos, mas se não se fizer nada, o outro mundo também não avançará. Alguém terá de rebocar, de ser a locomotiva, de ser a ponta avançada para a satisfação das necessidades de sustento físico e interior do homem. Afinal, nasce-se para se ser feliz e não para fazer da terra, o Inferno.

- Isto que o Sr. Padre Justino está a dizer, já alguma vez o fez nos locais certos ou em reuniões com a sua hierarquia, ainda que de modo informal?

- Já, já tentei, mas a resposta era de que deixasse isso para quem tem responsabilidades. Matava-se à nascença o direito de opinião e de poder intervir numa causa pública. Cansei disso e agora e na minha idade, também não tenciono bater-me por causas. A minha vida está a prazo e em consciência, não sinto que não tivesse tentado participar dela…

- Concordo que um anónimo padre de uma pequena paróquia, não tenha força para ser ouvido e pior ainda, que possa ser interpretado como ridículo ou acusado de estar à espera de protagonismo, se até isso já aconteceu com um bispo.

- Pois, meu caro jovem… Nos tempos mais recentes não aconteceu apenas com um bispo, mas dois. O Eminente Bispo de uma diocese do Norte teve sérios problemas e outro mais recente e também não menos Eminente, haveria de ficar a falar para a Lua.

- É lamentável…

- Peço-vos desculpa por vos ter tomado tempo útil. A minha solidão faz-me sentir o prazer de conversar e este prazer é tanto maior quanto o faço com gente jovem, que representa o futuro e que serão aqueles que poderão mudar o mundo para melhor. Esta minha concepção de vida aberta à sociedade civil e aos novos problemas que o mundo tem em mãos relacionados com a sua natureza sócio-cultural não é fácil de transmitir a pessoas da minha idade. Estas, irão morrer sem questionar e pior ainda, sem as querer questionar.

A conversa já ia longa e a vontade de continuar ainda não se tinha esgotado, contudo, o Padre Justino acabaria por lhes dizer que a porta estaria aberta para continuarem a falar destes e de outros temas sérios ou corriqueiros e também lhes sugeriria que aparecessem sempre que quisessem até para falarem do casamento e das vicissitudes que ele mesmo, pode acarretar.

Findo o encontro e a menos esperada conversa, despedir-se-iam com um até breve. Pelo caminho, os jovens comentariam o encontro com o Padre Justino e Leandro manifestaria alguma estranheza pelas palavras tidas por revolucionárias do velho padre cujas ideias não é habitual ver presentes na boca de clérigos. Pessoas assim, dizia ele, são tidos por comunistas, logo, contrários às habituais práticas da igreja e ao seu espírito dialéctico de interpretação da vida e do seu “modus vivendi”. Este epíteto, é, dizia ele, o pior que a instituição igreja pode fazer para se proteger das “infiltrações” dos não-alinhados, contudo, continuava, tem de haver pessoas que saibam e tenham coragem para dizer não ao unanimismo, pois só assim será possível aprofundar e melhorar as boas causas que a inspiram. Leandro, não tem nem teve propriamente cultura religiosa, mas tem abertura à igreja, a qualquer igreja, por no entender dele, se afirmar como uma necessidade a que só cada um saberá responder. Continuando, acrescentaria; não fora a má conduta de muitas das pessoas que a servem e que levam ao afastamento de muitos potenciais seguidores e a igreja até poderia ser a tábua de salvação para os infortunados, para os resignados e conforto para os cidadãos em dificuldades. Pena que, continuava, a igreja não tenha ambição para mais e que se esgote numa instituição que conforta e promete a felicidade para outra ocasião. Célia, questionava-se menos sobre princípios que norteiam a filosofia da igreja ou porque tenha tido educação religiosa tradicional ou porque nunca sentiria necessidades de obter respostas a perguntas que nunca formulou. Digamos que para ela, a religião está bem como está. Esta maneira de encarar a religião não é em si divergente da maioria dos seguidores e nem Leandro pretende mudar-lha, antes respeitá-la. O sentido acrítico pode até nem ser a melhor via para melhorar ou para dar sentido temporal à missão evangélica, mas será sempre a que menos perturbará. A necessidade de paz interior leva a que não se discuta Deus, especialmente nas pequenas comunidades de crentes e daí uma das razões porque o Padre Justino aproveite certas ocasiões, como a que teve com Leandro e exponha pontos de vista tidos por avançados, por vanguardistas. Ele sabe que, se publicamente dissesse o que diz em privado, perigaria a unidade pastoral da sua pequena comunidade e ele isso não quer, e não quer porque resultaria infrutífero, além de que seria apontado como mau padre, até pelos seus pares. Fosse como fosse, Leandro juntar-se-ia à pequena legião de pessoas que lhe apreciam os seus pontos de vista e lhe exaltam a coragem, ainda que esta seja resguardada da comunidade.

Dado o primeiro passo pelos namorados para o casamento, a avó Zulmira não cabe em si de contentamento, tendo-lhe o marido sugerido que moderasse a satisfação de modo a não cair no ridículo.

- Que queres homem, então não hei-de estar feliz pela nossa neta? Olha que no casamento da nossa filha não estava tão feliz e tu sabes bem porquê. Nosso filho havia morrido há pouco tempo e aquele dia foi uma tortura que não esquecerei tão cedo. Hélder, era uma jóia de moço, uma preciosidade, uma coisa rara…que nos deixava ficar bem em qualquer lado…

- Tens razão. Esta é uma oportunidade para fazermos uma festa que foi adiada por razões óbvias.

- Sinto-os tão empolgados que adivinho que eles devem estar a pensar em casar brevemente. Aquele namoro já me parece muito consolidado e irreversível. Nossa neta amadureceu bem. No início ainda temi a sua inexperiência. Era a primeira vez que namorava…, digamos que ainda lhe faltavam anos de namoro para perceber a relação homem/mulher, mas felizmente ela teve a sorte de conhecer um jovem ajuizado. Ele, pelos vistos, já havia passado por desgosto de amor e talvez isso o tenha ajudado a ser mais seguro de si, mais confiante e a passar também segurança, a Célia.

- O namoro, é o que tiver de ser. Não há ciência para o levar até ao fim se as vontades não se combinam…

- Isso é o que tu dizes. As vontades também se educam. Olha que se ele não tivesse sido mal sucedido no anterior namoro, não sei se a esta hora estaríamos a falar disso.

- Ai não estávamos, não. Ele teria casado com a outra.

- Pois…, essa é a tua opinião. Eu ainda acredito que isso só aconteceu pela muita fé que a nossa Célia tem. Sei lá se ela suplicava a Deus por um namorado com o perfil deste Leandro e Ele lhe fez a vontade. Repara que Leandro até é parecido com Jesus…

- Sim, é parecido, mas isso não prova coisa nenhuma.

- Pois não, na tua cabeça, que sempre foste um homem de pouca fé…

Adérito, pautou sempre pela discrição o namoro da neta e nem mesmo quando lhe perguntavam se Célia iria casar com um doutor, o galvanizava. Não dava nunca azo a que a conversa se esticasse, ao contrário de Zulmira que, de cada vez que a interpelavam, os olhos lhe luziam. Nunca ninguém soube pormenores de Leandro, pela boca de Adérito. Ele estava muito à vontade se as coisas corressem mal e por receio de que pudesse acontecer, procurava travar e sensibilizar a mulher para essa possibilidade.

- Tu andas para aí com tanto entusiasmo com o namoro da moça, que não sei…

- Ó homem, sou avó, duas vezes mãe e não havia de andar feliz? Qual é a avó que não se entusiasma com o casamento de uma neta e para mais quando é a primeira a casar e mais ainda, que é criada por nós, desde pequenina.

- Sim, certo, mas…

- Não há mas nem meio mas. A vizinhança tem de saber que ando feliz. Para tristeza, já me bastou a morte do nosso filho. Deus é que me dá este entusiasmo e se o dá, Ele sabe muito bem porque o dá…

Adérito, definitivamente perceberia que não adiantaria estar a sensibilizar a mulher para se conter no entusiasmo. A fé, de que essa alegria lhe fora dada por Deus, fá-la ignorar tudo o que é dito pelo marido.

É visível a paixão com que Célia se entregou a Leandro. A sua primeira experiência amorosa incendiar-sa-ia definitivamente na última semana passada a sós, quando resolveram passá-la numa região bucólica onde a natureza se espreguiça entre o leito de dois pequenos rios, dando cama aos mesmos e a casais apaixonados. Nas suas margens, não raro se estabelecem pequenos agregados de campistas que se retiram das residências habituais para sentirem paz e tranquilidade e reforçarem o amor. Nunca antes Célia havia saído com o namorado para um cenário tão apelativo à paz, à tranquilidade, à reflexão, à entrega, à dádiva e ao puro amor, ao amor livre que fez escola na década de sessenta do século passado. Por sorte, o local escolhido não albergava vivalma humana e os pressupostos para o êxtase estavam definitivamente criados. Não lhes faltavam enquadramentos para sustentarem o êxtase, desde o rumor das águas à orquestração dos diversos chilreios das pequenas aves. Pintassilgos, tentilhões, toutinegras e a pequena carriça, com os seus melodiosos cânticos, faziam-se sobressair aos demais. Ao cair da tarde e noite dentro, essas vozes calar-se-iam até à aurora. No lusco-fusco sobressairia o melodioso cântico do melro e já noite dentro e madrugada, subiria ao palco do mundo o melancólico rouxinol, quiçá, o tenor dos tenores, que sem aprender solfejo não se enganaria na articulação dos sons e produziria a mais perfeita melodia que a natureza criaria para suprir a falta de palcos e sua descentralização, até aos mais recônditos lugares. O pastor e o camponês gozariam o prazer que nunca o homem da cidade alguma vez teria se não ousasse descer ao mundo rude do campo ou montanha. Mas num cenário tão rico de momentos e improvisos não seriam só e apenas, as aves a dar colorido aos sentidos. Em fundo, ouvia-se o eco das mulheres a falar enquanto lavavam nas margens a jusante dos rios, de ambos os rios, peças de roupa de cama; cobertores, colchas ou lençóis, e que os dias de primavera ou verão invariavelmente animariam num ritual que tem séculos. Durante o dia, à orquestra de sons juntar-se-iam outros músicos e sons. Os pedreiros a picarem a pedra, tlim, tlim, tlim, o ferreiro a aguçar picos, pum-pum, pum-pum, pum-pum, o pastor a assobiar aos cães, fiu, fiu, fiu, para virarem as ovelhas ou nos tempos mortos a tocar flauta, as crianças a emitirem vozes de contentamento no intervalo da escola ou nos tempos que precedem ou pós-cedem a doutrina, as pinhas a abrirem, a casca do pinheiro ou do eucalipto a racharem por efeito do muito calor, eram os únicos sons que embalavam a serenidade dos namorados. Os dias iam-se preenchendo com diversas actividades de lazer e lúdicas. Entre estas, as caminhadas pelas margens, gozando o prazer das sombras projectadas por choupos, freixos ou ulmeiros, a observação de rústicos valados cujas paredes forradas por heras davam um especial graciosidade visual, a observação atenta de um casal de chascos em cuidados com a construção do ninho, numa giesta, as flores silvestres, particularmente, narcisos, roseiras bravas, flor de mato, de giestas, de carqueja, rosmaninho, lírios, alecrim ou alfazema, inundariam o ambiente em cor e perfume. Tudo isto contribuiria para criar ambiência à consolidação dos afectos enriquecendo-os com os mais inusitados carinhos. Numa dessas caminhadas seriam surpreendidos por uma lavrador que andava a guiar águas para regar o extenso milheiral.

- Bom dia. Desculpe, este caminho onde vai dar?

- Bom dia. Ora, onde vai dar…vai dar à coisa mais bonita que há por aqui, na zona.

- Sério?

- Vocês já ouviram falar da Piconha e do Pêgo Negro? Pois se nunca ouviram também não devem perder. Fica já ali acima, um a dois quilómetros, não mais. Vocês vão sempre na margem do rio até chegarem a uma cascata e a uma lagoa natural. É aí. Olhe que é muito visitado por gente da cidade, que eles lá não têm nada disso…

- Pois não…

- Coisas como estas, só no campo ou montanha. Qualidade de vida é aqui. As pessoas pensam que por nós vivermos na aldeia somos uns coitados, que estamos longe da civilização. Chamam civilização aos prédios altos, às discotecas, aos cafés cheios de senhoras pintadas e homens ataviados. Bem se enganam…aqui temos as melhores orquestras, interpretados pelos melhores músicos; os pássaros, as melhores piscinas, como a que vocês agora vão conhecer, de águas correntes e cristalinas e também as mulheres mais bonitas…

- Muito obrigado. Iremos seguir o seu conselho.

- Divirtam-se. Tenho a certeza que irão gostar...

O inusitado encontro despertaria reflexão nos jovens namorados e apreço pelo discernimento do lavrador acerca dos conceitos de civilização e qualidade de vida. A caminhada continuaria com os jovens de mão-dada, entrecortada por beijos escaldantes ou pueris, até ao destino aconselhado. Lá chegados, sentiriam a respiração suspensa pela beleza encontrada. Célia, mal chegada, não resistiria a entrar na água e molhar os pés.

- O homem sempre tinha razão… Isto é muito bonito!!! Já viste a paz de espírito que este local transmite!!!?

- Verdade. Estas penedias sobrepostas fazem um enquadramento muito bonito e a cascata, então, é tão linda!!! …Foste muito feliz na escolha destas mini férias, Leandro. Já tinhas ouvido falar deste lugar?

- Já tinha ouvido falar, mas nem fazia ideia que fosse um cenário tão aprazível.

- Parabéns pela escolha. Nosso amor tudo merece. Acho que sairei, que sairemos, daqui mais enriquecidos.

- É um facto, embora não nos fosse necessário recorrer a este expediente. Nosso amor foi lapidado nos nossos corações e segue seu caminho.

Depois de exaustivamente terem explorado a área, regressariam à base onde haviam assentado. O sol ainda estava alto e o calor não dava tréguas. Não fossem as sombras projectadas pelas árvores marginais e o regresso seria penoso. Aqui ou ali, colhiam amoras silvestres das silvas que pendiam para o carreiro e que os hidratava e ao mesmo tempo, lhes dava acrescido humor por as línguas ficarem pintadas de negro. Célia, levaria a boa disposição mais longe ainda, ao pintar um bigode com amoras. Leandro, riria do improviso e abraçá-la-ia, cingindo-a contra si pela cintura, ao mesmo tempo que se sufocavam de beijos. Chegados, Célia sugeriria um banho nas águas cristalinas do rio.

- Que tal um banhinho, agora, Leandro?

- Dizes bem. Estou ardido…olha que nem as amoras me hidrataram…

Recolheriam à tenda, vestiriam os fatos de banho e de mão-dada entrariam suavemente pelas águas dentro até um penedo que emergia no meio do rio. Na profundidade máxima, as águas não iam além da altura dos seios de Célia. Os momentos que se seguiriam seriam únicos e inolvidáveis. Os corpos nunca antes haviam estado tão próximos da verdade, da mais pura verdade. Ali e com um mundo todo por conta deles, os sentidos despertariam intensamente. As palavras de carinho e de exaltação ao amor ou os afagos e os gestos que em silêncio as substituíam, inebriariam os protagonistas de uma verdadeira e sã história de amor. Célia e Leandro prometeram-se possuir, apenas faltando o momento certo para acontecer. Até lá, as brincadeiras envolviam-nos no meio do rio e debaixo do céu, tendo por testemunhas apenas os pássaros e os peixes, com o sol a dar brilho ao encontro. Encontro, também ele visitado pelo coaxar de rãs que ao maior sinal de aproximação ou perigo, mergulhariam nas águas, desaparecendo até que os perigos se afastassem. Este ritual dos batráquios e a sonoridade do coaxar repetiam-se invariavelmente a partir de Abril e até meados do Outono, especialmente a partir da manhã e depois do sol-posto, fazendo-se companheiros dos rouxinóis durante a madrugada, num desafio de sons que despertavam os insectos de fraque para um gri-gri continuado num jogo de sedução às suas noivas. Ambos, nunca se tinham deparado com a pureza do cântico dado pelos ilustres orquestradores.

- Leandro, ainda que este não fosse o nosso primeiro encontro a sós, ele já teria valido a pena pelo encontro com a natureza, com a natureza na sua pureza, na sua virgindade. Acho que este cenário se aproximará do que teríamos visto se o tivéssemos vivido há séculos. Aliás, fica-se com a ideia que o mundo parou e nada aconteceu à sua volta. Sem dúvida que preservar a natureza é fundamental. Certamente, muita gente nunca terá visto o que os nossos olhos contemplam.

- Dizes bem. Há muita gente para quem a natureza é ignorada e esquecem-se que a qualidade de vida é permitir conciliar cidade com campo. Desta simbiose resultaria um homem mais feliz. Fica-se com a sensação de que há muito para fazer e que é possível fazer mais e melhor. Haja boa-vontade.

Depois de um banho de águas mansas e cristalinas, os namorados subiriam para cima de um penedo expondo os corpos à torreira. Só as cabeças permaneceriam protegidas por toalha enrolada em volta. Ao fim de algum tempo, Leandro adormeceria para um sesta e Célia aproveitaria a ocasião para o contemplar e tecer juízos sobre o amor que a liga e sobre os tempos vindouros. Num monólogo de pensamento e palavras, Célia exteriorizaria graças divinas pelo namorado, o qual encaixaria na perfeição naquilo que era o seu imaginário de homem. A marca da sua cultura religiosa levá-la-ia ao culto de Cristo, do Cristo Filho de Deus, do Cristo salvador da humanidade e ao Cristo homem, carnal, palpável. Era perante este último Cristo que agora e ali estava a mulher que se dizia querer ser a sua “Maria Madalena”. Célia sente que está próximo o momento, a hora da verdade, da entrega e que o seu amor já não terá margem para esperar mais tempo. Enquanto estes pensamentos plenos de sensualidade lhe fluíam, Célia acarinhava-o doce e suavemente com silenciosos beijos. Aqui ou ali, lançar-lhe-ia salpicos de água como que a retemperar o corpo da torreira. Leandro acordaria com os afagos, embora discretamente, fazendo passar a ideia de que permanecia em sono, só para não interromper os mimos de que estava a ser alvo. Não podendo e não querendo disfarçar por mais tempo o sono, foi então que Leandro despertaria definitivamente para ele mesmo se tornar o afagador da sua jovem namorada como tributo aos carinhos até então recebidos.

Chegados à margem decidiriam pensar no que preparar para jantar. A sugestão que viria a materializar-se, sairia de Leandro. Acenderiam uma improvisada churrasqueira entre dois penedos já com evidentes sinais de ser utilizada no passado e grelhariam peixes que foram pescando com um ganapão velho e abandonado nas margens.

- Como se chamam estes peixes, Leandro?

- Pouco percebo de peixes de rio, mas acho que são achigãs.

- Hum, são bons…

- São óptimos. Já tinha comido há muito tempo…

No fim do jantar, deitar-se-iam numa manta estendida no relvado junto às margens, a contemplar a noite, a lua e as estrelas. Em dado momento, Célia sugeriria uma actividade lúdica.

- Leandro, vamos ver quem descobre mais rapidamente as constelações? Hoje está uma noite maravilhosa; céu limpo, a deixar ver com clareza as estrelas. Está tudo montado para nos divertirmos.

- Boa ideia, só não sei se ainda me lembro do nome de todas as constelações que aprendi e da forma com se dispõem.

- Eu ainda me lembro bem. Quando aprendi na escola, chegava a casa e andava sempre de nariz empinado ao céu. Até minha avó dizia: “vais ganhar um torcicolo que nunca mais te vai apetecer olhar para as estrelas”. Ganhei medo e demais eu nem sabia o que era isso de torcicolo. A verdade é que nunca me esqueci e quando olho o céu, ocorrem-me sempre as palavras dela. Bendita inocência…

- Minha mãe dizia coisa pior: “não andes a contar as estrela que ganhas cravos nas mãos”. Comigo também acontece o mesmo: nunca mais me esqueci do que ela me dizia.

- As constelações principais que vamos tentar descobrir são: Ursa Menor, Ursa Maior, Cassiopeia, Orion e…acho que me falta mais uma. Tenho a ideia que eram cinco, não eram Leandro?

- A Andrómeda.

- Isso mesmo. Afinal sabes... E eu a pensar que te iria avivar a memória…gosto desse teu jeito discreto de mostrares sabedoria. És o maior, meu Leandrinho querido.

- Há muito que não fazia evocação desses nomes mas com um pouco de esforço lá chegarei. Aliás, ainda me lembro do nome das principais constelações vistas no Hemisfério Sul.

- Dessas também me lembro: Centauro e Cruzeiro do Sul.

- Parabéns. Vejo que estás com a memória muito boa.

- E ainda temos a Estrela Polar e o planeta Vénus. Vai ser muito divertido relembrar a nossa adolescência na descoberta das constelações e agora sem medo de torcicolo ou de ganhar cravos nas mãos…

- Agora, acho que irei, que iremos ganhar torcicolo de tantos beijos dados por cada estrela contada.

- Falas bem querido. Estou mortinha que comecemos o jogo. Quem se atrasar a descobrir a constelação paga com beijos por cada estrela que dela faz parte, certo?

- Concordo. Ah, uma curiosidade: ainda te lembras dos outros nomes por que é conhecido o planeta Vénus?

- Então não lembro: Estrela Alva, Estrela da Manhã e Boieira. Acho que foi o que aprendi mais rapidamente. Gostava de enumerar os nomes todos e achava tanta graça quando dizia à minha avó: “anda ver a Boieira”. Sabes o que ela fazia? Olhava para o chão e eu para o céu. - Ela perguntava: onde está a Boieira, que não a vejo? - Eu respondia-lhe: olha lá para o céu. - Para o céu, retorquia. - Sim, para o céu. Não vês aquela falsa estrela, ali sozinha, avó? É o planeta Vénus. – Não percebo nada disso. Para mim a Boieira é um pássaro. Só depois é que percebi porque ela olhava para o chão…

- Já estava a adivinhar o final da história. Boieira ou Lavandisca, são aqueles pássaros muito elegantes, de cor predominantemente cinzentos, cinzento-azulados, alguns com o peito amarelo e que andam muito próximo dos lavradores quando estes lavram as terras, para se alimentarem dos insectos que aparecem.

- Vejo que sabes de tudo…

- Vou sabendo algumas coisas…

- Sempre discreto. Gosto de ti assim. Vamos ao joguinho?

- É para já…

Na verdade, o jogo ganharia importância acrescida pelos beijos que por “castigo” ou “prémio” teriam de ser dados ou recebidos. Pouco importaria por isso, quem descobriria primeiro a constelação. O jogo era não mais que a introdução, que o aperitivo para uma noite de amor. O expediente encontrado por Célia visaria o objectivo final de se entregar ao namorado e de preparar uma entrada triunfal dos sentidos, da sensualidade, do desejo, do amor carnal.

Descobertas as constelações e não havendo nada mais a localizar no espaço celeste, os corpos fervilhavam de erotismo. Célia sentia e desejava que o momento de se possuírem já havia tomado conta dos dois e apenas um ligeiro nervosismo pela sua primeira vez, a constrangia. Ao contrário, Leandro não era propriamente iniciante sexual. A sua condição de experimentado iria contribuir para mitigar o perceptível nervosismo da namorada e iria saber conduzi-la ao prazer do desfloramento. A manta que os acolhera para perscrutar as constelações seria a mesma que os envolveria desnudos num clima de paixão e assaz desejo. Leandro, tranquilamente e sem pressas, cuidaria dos preliminares e quando percebeu que Célia se desejou possuir, avançaria delicadamente e em movimentos firmes para a consumação do amor. Célia, envolta num misto de prazer e dor, cingiria o namorado contra si num evidente sinal de gozo e mais gozo ainda quando sentiu Leandro realizar-se. Estava consumado o primeiro acto efectivo de amor carnal e outros e outros se seguiriam. O amor e o êxtase dos prazeres sublimar-se-iam. Esgotados fisicamente, combinariam um banho nas águas aquecidas pelo sol e ainda tépidas do riacho, cujo rumor de águas haviam embalado os namorados nos movimentos de entrega carnal.

Os momentos seguintes não seriam menos empolgantes e se Leandro possuiu Célia e Célia, Leandro, as águas tranquilas sentiriam também os prazer de os sentir e possuir. Desnudos, as águas tocariam tão suavemente os seus corpos e os beijariam, contornando-lhes as curvas. Os seios de Célia envolvidos pela delicadeza das águas retesar-se-iam e experimentariam gozo como que afagados pelas mãos e beijos de Leandro. De longe e ao longe chegava o eco do canto de um galo madrugador a cortar a serenidade da noite e a abrilhantar-lhes o encontro, encontro este, aqui e ali também testemunhado por estrelas cadentes que num facho incandescente lhes iluminavam os rostos e os tiravam da penumbra do luar, por uns breves instantes. A lua pareceu também mostrar vontade de parar para os contemplar mas não o podendo fazer porque àquela hora e algures noutros lugares do planeta outros namorados e amantes também se entregavam, seguiria lenta o seu caminho para lhes adoçar as noites de amor.