A Mais Pura Forma de Amor - III
Muito embora estivesse até gostando desse negócio de ‘vida selvagem’; e muito embora a companhia do lobisomem não fosse tão ruim – mesmo que fosse no mínimo perturbador ouvi-lo enquanto conversava com os espíritos - Carlo estava se sentindo bem próximo da loucura, e por isso não tardou a se arrepender de dizer que ficaria até que o outro melhorasse da perna.
Precisava de sangue – sangue de verdade, de gente, e não do sangue de coelhos e cervos.
Precisava ir urgentemente para uma cidade, achar um humano, ou quem sabe...
Balançou a cabeça negativamente. Águia certamente se ofenderia se fizesse um pedido daqueles... Uma pena, pois pelo pouco que provara, o sangue do lobisomem era delicioso...
Três dias, e nada da perna do Águia ficar boa... Bem, pelo menos não tinha infeccionado. Isso já era um grande avanço... Mas ele sinceramente havia pensado que a cicatrização seria mais rápida.
E por causa dessa demora toda, ele ainda tinha que aturar o lobisomem de péssimo humor, maldizendo a prata a todo instante... A prata e o maldito caçador que havia armado aquela armadilha.
-Caçadores de lobisomens? –Perguntou com um descaso não intencional.
-Sim, geralmente humanos corrompidos pela Wyrm.
-O que vem a ser isso de Wyrm?
-No princípio, o mundo era regido por três forças que mantinham o equilíbrio de tudo. A primeira era a Wyld, a qual representa a mudança em estado puro, o caos e a criação. A segunda era a Weaver, que simboliza a razão. A Weaver seria a aranha que tece a teia da padronização, da definição de tudo que a Wyld cria. E por último vinha a Wyrm, a espiral da destruição que servia para manter o equilíbrio, evitando que o mundo ficasse cheio demais de novas criações.
-Mas então a Wyrm é boa, não?
-Ela era, antes de enlouquecer. Um dia, não se sabe quando, a Weaver tentou padronizar a Wyld, mas isso era impossível, pois a Wyld é o caos, a criação eterna, e portanto não tem forma definida. A Weaver perdeu a razão e começou a tecer descontroladamente suas teias. A Wyrm deveria destruir esse excesso de criação, aquilo era demais para o seu poder de destruição, e em vez de destruir a teia, acabou se enroscando nela, e também enlouqueceu. Tentando se libertar, começou a destruir tudo loucamente e acabou criando gosto pela destruição... Ou pior, se corrompeu. E o que era equilíbrio, tornou-se pura corrupção: a destruição desnecessária. E desde então ela tenta destruir a maior de todas as criações, Gaia.
-Então a Wyrm quer destruir o mundo?
-Exato. E o dever de todo Garou é combater a Wyrm, impedir que ela quebre ainda mais o equilíbrio.
-Entendi... E como que vocês a combatem?
-De várias maneiras. Alguns atuam como ativistas, protegendo a natureza, outros literalmente lutam contra as manifestações da Wyrm, matando malditos e vampiros.
-Por que vampiros? –Perguntou incomodado. Ele era um, afinal...
-Vampiros são uma afronta ao ciclo natural da vida. Seres que não morrem são uma abominação, além de que a maioria de você controla as cidades, as fazem se expandir, destroem a natureza, ou seja, agem de acordo com a Wyrm para satisfazer aos seus intentos egoístas para conseguir sempre mais poder e sangue.
-Se você acha isso tudo, porque não me matou quando teve a chance? –Havia se ofendido.
-Eu não precisaria de chances para te matar, você sabe...
-Que seja. –Respondeu emburrado, revoltado com Águia. Tinha praticamente salvo a vida dele, e agora ele vinha dizer que vampiros eram malvados, que mereciam morrer e que podia matar-lhe a qualquer instante? Ingratidão tinha limites!
-Não te matei apenas porque não senti a Wyrm vinda de você. Além disso, você me ajudou.
-Oh, quer dizer que nem todos os vampiros são caras maus, é? –Comentou com sarcasmo.
-Eu não senti más intenções vindas de você... Além disso, meu antigo mestre me dizia que deveria evitar o derramamento de sangue sempre que possível, procurando maneiras mais pacíficas para alcançar a paz.
-Mas eu sou um vampiro, uma afronta ao ciclo de vida... –Provocou sarcástico. Não tinha gostado mesmo daquela conversa. Já não bastava ter os seus ‘irmãos’ dizendo que ele era um mau presságio, um ser que merecia apenas a morte final, agora o lobisomem também vinha com esse papo? Francamente... –Acho que você tem que me matar, companheiro.
O Garou, embora ainda na forma hominídea, rosnou. Não estava gostando nada do atrevimento de Carlo.
-Provoque-me, e eu te mato mesmo. –Ameaçou.
-Oh, e o que aconteceu com o ‘não derramamento de sangue’, heim?
-Esse é o dogma da minha tribo, mas eu fui expulso dela por quebrá-lo, matando o Alfa da minha matilha... Imagine o que eu poderia fazer com um vampiro. –Comentou maldoso, entretanto não exatamente orgulhoso de suas palavras ou ações.
-Com essa sua pata fodida aí? –Zombou. –Duvido que você me alcance na corrida assim.
-Você poderia até fugir de mim, mas essa região é cheia de Garous. A primeira matilha que te encontrasse teria muito prazer em te despedaçar. Tenha em mente que você só está inteiro porque caiu no meu território, cadáverzinho...
-Oh, obrigado então por não ter matado o maldito vampiro que te salvou. –Falou com cinismo, se levantando e batendo nas calças para tirar a terra.
-Eu paguei minha dívida de vida quando salvei a tua também, apresentando-te um abrigo contra o Sol. Consegui até sangue para ti! Tens noção de como foi para mim sacrificar um animal puro por causa de um vampiro? –Perguntou em um tom de voz mais perigoso e alterado.
-Eu não pedi nada, você pegou o Flik porque quis! –Respondeu ofendido, também se alterando.
-Eu o fiz porque estava sentindo a sua aura faminta, e ela estava me incomodando.
-Ah, é? Se é tão bonzinho assim, por que não deixou eu tomar o seu sangue ao invés de me dar o pobre do coelhinho, heim? –Perguntou com a voz maldosa, aproximando-se de Águia por trás e passando sensualmente sua mão pelo pescoço dele, sentindo a pulsação. -Tem idéia de como foi cuidar dessa tua perna esses dias sem beber uma gota sequer?
-Você é mesmo um ser desprezível... –Vociferou, afastando de maneira agressiva a mão de Carlo.
-Só porque eu preciso de sangue? Eu não fiquei nessa condição porque quis, sabia? Eu não disse para nenhum vampiro “Hei, vem aqui, me morde!” Não foi me dada escolha... E por isso que eu não aceito que você fique me julgando por algo que eu não pedi e por algo que não determina meu caráter.
-Vai dizer que se alimentar de humanos não degenera o caráter de ninguém? Francamente, você me acusou por não ter te dado meu sangue!
-É só um gole, você não ia nem sentir... –Falou manso mais uma vez, tentando se aproximar novamente do lobisomem, dessa vez chegando a encostar seus lábios na pele dele.
-Você só pode estar ficando louco! –Gritou, empurrando o vampiro. -É essa luxúria por sangue que enlouquece e corrompe vocês! Aposto que cedo ou tarde você vai se entregar para a Wyrm!
-Olha quem fala! Você acabou de dizer que quebrou o dogma da sua tribo e matou o seu líder! Belo exemplo de caráter e comprometimento com a Wylda.
-É Wyld! –O grito saiu na forma de um rosnado gutural, e Águia, agora na forma da grande fera de mais de dois metros de altura, pulou contra o vampiro.
A pata dianteira, repleta de garras afiadíssimas, jogou-se com violência contra o não tão frágil pescoço daquele vampiro, o qual foi automaticamente ao chão, sendo esmagado e subjugado pela força absurda daquela criatura.
Nesse momento, apenas nesse momento, sua maldição havia se provado uma benção, pois a desnecessidade do ar não o impediu de soltar um comentário sarcástico. A imortalidade lhe garantia certa confiança e petulância, mesmo ele sabendo que aquele bicho estava prestes a tirar sua cabeça de cima dos ombros.
-Que belo exemplo de como manter a paz e a estabilidade... –Comentou com um sorriso cínico. A vida, tão dura, ensinara-lhe que ele não poderia jamais se rebaixar, e nem a eminência de sua segunda morte ele haveria de beijar os pés de alguém.
Não... Ele tinha que se manter altivo, e assim alcançar sua meta: seu sonho era morrer sorrindo, cínico, como apenas ele poderia ser.
Mas talvez sua maior benção fosse mesmo o fato dos olhos aquele Lobisomem serem vazios, impedindo-o então de contemplar aquele sorriso desafiante e desdenhoso.
Se Águia o tivesse visto, provavelmente não teria conseguido conter o acesso de fúria que o tomava.
O Garou bufou, querendo restabelecer sua ligação com a própria consciência; Odiava quando pedia a razão. O maior erro de sua vida fora cometido durante um ataque de fúria, e por isso ele havia jurado a si mesmo que jamais se desligaria da sua consciência de novo.
E não haveria de ser aquele vampiro o motivo da ruptura de tão importante promessa.
Respirou fundo, tentando normalizar o seu ritmo cardíaco, enquanto aos poucos ia tirando a pressão de sua imensa mão sobre aquele pescoço fino.
-Não sujarei minhas garras com o sangue de mais ninguém que não valha a pena... –Disse serenamente, com a voz grave, antes de assumir a forma mais semelhante ao lobo, o Hispo, e então caminhar manco para o interior da sua toca.
O vampiro permaneceu um bom tempo ainda deitado no chão, observando com atenção a Lua que já se encontrava quase cheia no céu.
“É, não foi dessa vez...” –Pensou um tanto melancólico, passando sua mão direita por seu pescoço.
Levantou-se sem pressa e olhou para a entrada da toca que lhe servira de abrigo por três dias. Sentiu certa angustia acumular-se no peito, ao mesmo tempo em que seu sangue frio parecia se aquecer no interior de suas veias por ação exclusiva da raiva.
Era impressão, é claro; mas isso não o impedira de gritar.
-Tomara que esse barranco desmorone e te enterre nesse buraco! –Fez birra, tal qual faria uma criança.
E ele de fato era uma criança. Não tinha a sabedoria de Gaia, da Lua, algo do qual aquele lobisomem se orgulhava. Da mesma maneira, não tinha o Tempo de um ancião vampiro.
Era apenas uma criança, rejeitada e indesejada, e por isso, revoltada.
Não recebeu resposta alguma. O lobisomem havia lhe ignorado por completo, e aquilo doera mais do que as garras dele ameaçando adentrar sua garganta.
Vendo-se sem muita escolha, descontou um pouco da sua raiva chutando uma pedrinha do chão. “Toma, Gaia!”
Foi em vão. A raiva continuava lá.
Pelo jeito ele teria que se conformar e seguir acompanhado dela, pondo-se a vagar pela floresta.
Pelo menos não estaria sozinho, por mais nefasta que fosse sua companhia.