A Janela

Ver e ser janela. Única, una... Eu-Janela, presente, uniforme, resumo de algo bom, que fica e protege.
Janela como a mãe, mãe de todas as coisas aqui dentro.Não sair. O mundo lá fora olhando, julgando, sendo, vivendo.
Origens como braços, apertando. Janela como cárcere, doce cárcere, bom cárcere que afasta o que é mal, profano.

Criança assustada e indefesa:
"Não saia daí menino, olhe, se quiser fique aí na janela, porque lá fora está muito frio.

Susto e fome. O mundo é assustador visto de perto. É fácil encontrar fantasmas pelos corredores na ausência da mãe. O parapeito da janela é gostoso, a madeira fere o estômago. Decidir.
Não saber. Nunca o sim ou o não. Concepções filosóficas:
" O homem contra o tudo. Não tomar posição, ficar à margem, julgando... Profeta."

Margem-Janela, pela vida à fora, atrás da janela. Janela-símbolo-proteção=Mãe. Se decidir: Decidir certo. Sim, todos disseram, foi a mais certa decisão que já tomei!

Decidi?

Estou mentindo para mim mesmo, como sempre.

Que bonito o adro da igreja! Cruzes, símbolos. Lá fora tem sol, reflexos nos vitrais das janelas, azul, verde, rosa, branco...

A roupa de Ana é branca. Vestido longo, véu, uma rosa igualmente branca na mão.

Lembrança em Sidnéia. Suja. Na última vez, suja de purê de batatas. O bebê chorando, a televisão ligada.
-Vou casar.
-Eu sei.
-Como sabe?
-Tudo se sabe.

Bebê chorando. É feio bebê chorando, todo enrugado, parecendo velho. "Não gosto de bebês quando nascem, são feios."
"Depois ficam bonitos."

Sidnéia chorando, eu sei que estava. Olhos azuis de céu, cabelos louros, pintados.
"Quero um filho seu." Deixar...
Amigos comentando: "Tá louco? O que sua noiva diria? " "Cuidado Carlos, você sabe o que esta mulher era." "Não deixa Carlos, se ela se pega grávida vai começar a exigir..."

Bebê chorando. Emoção... Não. Janela protegendo contra a emoção.
-Vou dar o dinheiro para a alimentação.

Cabeça baixa, miséria...Orgulho engolido em seco.Sidnéia chorando. Sabia do noivado, sabia de tudo, não a enganou.
-Vou dar o dinheiro.
Dinheiro, não o nome. Por causa dos parentes de Ana. Não iriam entender, fariam alarde, seria um escândalo.

Janela para o mundo. Janela para Sidnéia, tão boa, tão sonhadora. Vítima silenciosa, nunca alardeando seu sofrimento. O corpo magoado, tão doce. Bebê chorando.

Órgão tocando uma canção grave, como um hino marcial.

Decidir. Perguntas simbólicas. Apenas assentir. É claro, assentir! Ana branca e pura. Arrogantemente mostrando ao mundo a sua virgindade. Intocável virgindade, causadora de tantas brigas, de tanta mágoa...

É assim a vida. Ana por esposa, sua mulher para sempre. Eternidade. Nada a decidir. Todos decidindo pelo mais certo. Janelas como as janelas da igreja... Lá fora tem sol.

O bebê deve estar dormindo. Sempre dorme a esta hora. Sidnéia aproveitando para costurar. Mulher honesta, Todos rindo: "Vê se pode! Mulher assim não tem jeito..."

Mulher assim... Sidnéia homesta. pelo filho, honesta, por amor, honesta.

Ana virgem e os vícios... tantos, compensadores da virgindade.

Janela. Perdido. A janela como proteção desaparecendo como por encanto! Nú e indeciso. Vontade de chorar! Nú e perdido... Bebê chorando, chamando?

E quando ele começar a falar, como dizer papai, sem ter? Bebê enrugado, feito velho, sorrindo.
-Olha Néia, ele já sabe sorrir!

Onde está a janela?! Escravo a procura de suas correntes... Não posso. Não sei decidir. Olhar irônico dos presentes. Sentados, apreciando. Hipócritas!

Vontade de fugir. Lá fora tem sol...No primeiro banco estão os pais de Ana, seus pais. Orgulhosos. Vontade de ferir...

"Menino mau só soltou o canário para fazer sua mãe chorar!"

Sidnéia chorando, desconsoladamente chorando. Vazio tolo e idiota, fruto de uma cultura mesquinha, vulgar. Conceitos filosóficos substituindo a janela:

"O homem é o criador do seu próprio destino."
Melhor não pensar...

Órgão tocando. Suor, sente as meias grudndo, os pés molhados. Irritação. Vermelhidão no rosco claro. Sorriso benevolente e brincalhão nos lábios dos presentes...

Sonhar com um mundo sem hipocrisias...

Órgão tocando, música... Samba. Na casa do Arthur. Samba do Paulinho da Viola. Dançou com Sidnéia a primeira vez.
-Gosta?
-Gosto.

Pensa em samba e derrepente sorrí. Percebe como o rosto de Ana e dos demais se desanuviam, sente como seu jeito tenso havia provocado inconscientemente um clima de suspense na igreja. Janela bem longe, cada vez mais longe, infinitamente longe...

Tem vontade de brincar com os cabelos de Ana, parece uma boneca. E os outros? Nossa! Parecem espantalhos! O chapéu de sua mãe? Lembra uma panela. O Padre então, este, parece um boneco de pano ao qual se tenha colocado uma cabeça de abóbora.

Sidnéia chorando, em Inhaúma... chorando.

A cabeça de abóbora se move, fala:

-Senhor Carlos Tavares, aceita a jovem Ana Cláudia de Miranda como sua legítima esposa, prometendo honrá-la e respeitá-la até que a morte os separe?
-Não.

Meia volta. Olhares de horror nos rostos, gritos, choro.

Saindo.

O dia está bonito, tem sol. Inhaúma é longe, tem pressa. toma um taxi.

Regina Racco
26/03/1974