A Moça da Janela

Já se passaram muitos anos e confesso, até hoje, não consigo me esquecer daquele rosto, daquele olhar faceiro. Os cabelos semi-soltos jogados ao ombro, o sorriso de mulher e menina que se compunham em total harmonia, os lábios carnudos e bem pintados, contrastando com a pele clara. Parecia mais um anjo, era assim que eu a imaginava. Nunca descobri seu nome, embora todos os dias a visse na janela do pequeno sobrado onde morava. Foi paixão a primeira vista.

Eu vivia atrasado para o trabalho, era um belo dia de primavera, o sol já ardia no céu, peguei minha bicicleta e sai louco como sempre. Ao chegar à metade do percurso o furo no pneu me fez parar, fiquei nervoso e chateado, creio que comecei a falar umas asneiras, olhei pra cima pedindo ajuda divina, e lá estava ela. Falei alto:

—Deus como o Senhor foi rápido em me ouvir desta vez. Obrigado pelo envio desse anjo.

Por instantes, fiquei parado olhando aquela linda criatura, quando nossos olhos se encontraram senti uma estranha sensação, foi mágico. Ela me cumprimentou com um sorriso e lhe retribui com um aceno de cabeça. Sai dali leve como uma pluma. Subi o morro tranqüilo e conduzi a bicicleta até o borracheiro, um velho conhecido que disse algo, eu, sequer lhe respondi de volta. Chegando ao trabalho, fiquei a suspirar pelos cantos, meio que sem graça, porque o senhor Quinzote era um homem bom e generoso, nunca havia me falado nada sobre meus atrasos cotidianos. Naquele dia quase não abri a boca, o que fazia sem parar em dias normais, vendo que estava suspirando e rindo à toa, o senhor Quinzote me indagou:

—Que tem Antônio, chegou calado e ainda passou a maior parte do tempo a suspirar, quando não a rir?

Eu mais que depressa o respondi:

—Nada não, senhor Quinzote, o que haveria de ser?

—Parece-me enamorado, meu bom rapaz.

—Que isso, que nada. Só tô aqui pensando com meus botões, homem de Deus.

—Está certo, Antônio. Só pensando com seus botões. Pensa que me engana? Não nasci ontem.

Bem realmente não havia como omitir a verdade do senhor Quinzote, era um velho danado de esperto, ninguém o passava pra trás, muito menos eu, um jovem sem muita experiência de vida.

—Tem razão senhor Quinzote, hoje pela primeira vez vi um anjo. Como era linda aquela moça. Estava na janela de um pequeno sobrado próximo a minha casa. Fiquei fascinado por ela, mas só isso.

O velho sapateiro me olhou nos olhos e disse:

—Só isso é suficiente para deixar um homem parecendo um tolo.

Confesso, naquele instante me corei de vergonha. Já estava quase na hora de fecharmos a sapataria, não falei mais nada com o senhor Quinzote, apenas terminei o meu serviço e pela primeira vez na vida me senti realmente um tolo, porque não conseguia deixar de pensar nela. Eu iria pela mesma rua, faria novamente aquele trajeto e meu coração começava a palpitar pelo desejo de vê-la novamente. Antes porém o senhor Quinzote me advertiu:

—Antônio, cuidado para não se deixar enfeitiçar. A verdade meu bom rapaz é que a maioria das moças, têm ares de anjos mas por dentro são grandes feiticeiras. —Depois disso deu uma gargalhada e meu deixou apreensivo. Quando tomei a direção de volta pra casa, fiquei pensando nas palavras do senhor Quinzote, pois eu morria de medo de bruxas e feitiçarias. Logo, logo o medo passou, ao chegar próximo do sobrado, mirei a janela onde eu a tinha visto pela primeira vez e para minha felicidade lá estava ela, linda como sempre, usava um vestido de um azul intenso e suas mãos finas e delicadas seguravam um leque preto. Fui andando devagarzinho, para poder apreciá-la melhor, quase trombei em um poste, porque precisava olhar pra cima. Parei na pracinha e sentei por alguns instantes em um banco. Nem percebi que já era noite, precisava ir pra casa, com certeza minha mãe estava muito preocupada. Quando me fiz menção se menção de sair, ela me sorriu e com o seu leque me cumprimentou discretamente. Lhe retribui os cumprimentos e sai feliz da vida.

Ao chegar em casa como havia dito lá estava mamãe no portão e quando me avistou saiu correndo, me abraçou e foi logo dizendo:

—Antônio, onde esteve meu filho? Pensei que tivesse acontecido algo com você. Você está bem?

A tranqüilizei lhe respondendo:

—Mamãe, não se preocupe estou bem, apenas parei um pouco para conversar com uns amigos.

—Tudo bem filho, mas quando for demorar me avise.

—Pode ir se acostumando, porque de hoje em diante vou me demorar um pouco mais.

—Então a partir de hoje também não me preocuparei mais.

Aquela noite dormi embalado pelo som de um violão e sonhando com a moça da janela. Em meu sonho eu ia ao encontro dela e quando ela foi dar um beijo acordo desesperado com minha mãe me chamando:

—Acorde Antônio, já está na hora de ir trabalhar.

Dei um pulo da cama me arrumei o mais rápido possível, peguei uma torrada e sai correndo. Só ouvi minha falando do portão:

—Juízo Antônio, juízo.

Passei pelo sobrado olhei em direção à janela e desta vez minha doce e angelical menina, não estava lá. Corri para o trabalho, enfrentei o dia, preguei solas de sapatos e cantarolei com o senhor Quinzote algumas músicas que ele gostava. Estava feliz naquele dia.

—Vejo que hoje está mais feliz, meu caro Antônio.

—Sim, estou mesmo, ontem a vi novamente. É realmente a mais linda de todas as mulheres que já conheci.

Assim passou o dia, eu feliz da vida e o senhor Quinzote a me dar conselhos. Eu contava às horas que faltava para sair do trabalho e ir vê-la, cada minuto era como se fosse uma eternidade. Quando o relógio começou a dar as badaladas sai voando, nem me despedi direito do velho Quinzote que ouvi apenas resmungar qualquer coisa.

Já próximo do sobrado meu coração começou a me delatar, senti minhas pernas tremerem e ao longe pude perceber a silhueta delgada de encontro à janela. Lá estava ela, mais bela que nunca, num vestido branco e nas mãos o mesmo leque preto a contrastar com a cor do vestido. Ah! Como era bela, belíssima eu diria. Quando nossos olhos novamente se encontraram pude perceber que ela me olhava com admiração, afinal, eu era bem apessoado, meus olhos verdes e minha pele morena deixava qualquer mulher a meus pés. Voltemos ao assunto, não é o momento para falar de mim e sim dela. Naquela noite demorei mais do que de costume, quando sai da praça em direção a minha casa já era bem tarde, mas desta vez mamãe não me esperava. Entrei tomei meu banho, só não quis jantar. Fui direto pra cama, o corpo cansado, mas a mente e alma em paz, porque aquela moça me deixava assim, com a sensação de estar no céu.

Pois bem, mais de um mês havia se passado, e todos os dias o meu ritual era o mesmo. Casa, trabalho e passar alguns momentos da noite na pracinha em frente ao sobrado olhando a moça da janela. Aos domingos como não trabalhava ficava quase que o tempo todo na pracinha esperando a janela se abrir e ela aparecer. Já estávamos até íntimos, ela por vezes me mandava uns beijos, acenava e fazia certo charme. Eu por minha vez não cansava de sorrir e fazer alguns gracejos pra ela.

Em um desses domingos, eu havia tomado uma séria decisão, iria falar com ela de qualquer jeito. Levantei mais cedo, tomei meu café calmamente, coisa que há anos não fazia, peguei umas rosas vermelhas do jardim de casa, sai a pé e fui planejando meu discurso pra ela. Quando cheguei próximo ao sobrado, meu coração como sempre começou a disparar, corri um pouco. A janela estava fechada, era cedo, claro, ela devia estar dormindo ainda, pensei comigo. Esperei um pouco, fiquei sentado no banco da praça por algumas horas, e nada, a janela não se abriu. Era quase meio-dia, resolvi ir até em casa para almoçar com a família. Sai dali, porém não parava de olhar pra trás pra ver a janela. Naquele domingo quase não toquei a comida, fiquei pensativo e por alguns instantes tive medo. Voltei pra pracinha, a janela continuava fechada. Ela deve ter ido passear com seus pais, pensei. Fiquei por ali até altas horas da noite e não ouvi nem um movimento próximo ao sobrado. Fui embora chateado e triste. Quase não dormi à noite. E por vezes acordava assustado em meio a pesadelos.

O dia mau amanheceu, me aprontei pra ir para o trabalho, esse dia minha mãe nem precisou me chamar, o que era uma novidade. Ela apenas falou assim:

—Antônio o que tem menino? Tá doente? Hoje nem precisei te chamar!

—Tô bem mamãe, não se preocupe. Tenho que ir mais cedo porque fiquei de arrumar uma quantia de maior de sapatos hoje.

—Tudo bem. Então vá, trabalhe direitinho.

Quando cheguei próximo ao sobrado, não acreditei no que meus olhos estavam vendo, na janela onde ela ficava, tinha uma placa dizendo que o sobrado estava à venda. Esfreguei os olhos, me belisquei, olhei novamente. Atravessei a rua a galopes e percebi que a porta do sobrado estava aberta, entrei, e vi um senhor ao qual interpelei:

—Meu senhor o sobrado está à venda?

—Sim meu jovem. Acabei de colocar a placa na janela. Você gostaria de comprá-lo?

—E as pessoas que moravam aqui? Pra onde foram?

—Bem, não os conhecia, o que sei é que vieram passar uma pequena temporada aqui.

—Como se chamava os donos?

—Não sei o nome deles. Quando trataram de comprar este imóvel quem o fez foi um advogado. Não sei de mais nada. Mas quanto ao sobrado não lhe interessa comprá-lo?

—Não meu senhor, muito obrigado.

Então desci as escadas, com os olhos cheios de lágrimas e uma vontade enorme de voltar pra casa e me enterrar no meu quarto. Como não podia, cheguei ao trabalho branco como um papel e o senhor Quinzote veio até mim e me amparou:

—Antônio, o que tem? Você está pálido pareceu até que viu um fantasma!

Entre soluços e sem nenhuma vergonha comecei a falar:

—Ela foi embora. Ela me deixou. Como pode fazer isso comigo? Eu sequer sei o seu nome. O que vou fazer agora?

—Ela quem? O que está dizendo? Fala com calma.

—Ela, senhor Quinzote, ela. A moça da janela, a que vivia no sobrado perto de casa.

Então naquele dia, meu coração ficou partido pela primeira vez e ouvi alguns conselhos daquele velho espertalhão.

Fiquei cabisbaixo por muito tempo, e quando passava próximo ao sobrado, meu coração gelava e me via pensando na moça da janela.

Ah! Nunca me esqueci e nunca me esquecerei, daquele anjo sem asas que um dia eu vi no sobrado.

Helena, minha esposa conhece toda a história, nunca teve ciúmes, a não ser no início de nosso namoro. Quanto ao sobrado eu o comprei muitos anos depois, nunca morei nele, apenas subia e ficava por horas ali parado olhando da janela a velha praça e pensando nos bons tempos.

Sou muito feliz com minha doce Helena, esta sim, é mulher de verdade, de carne e osso que com seu jeito meigo e encantador teve a maior paciência comigo. Quanto à moça da janela não posso dizer o mesmo, porque nunca envelheceu, sempre quando a vejo em meus sonhos, está como da primeira vez, bela e majestosa.

Vania Morais
Enviado por Vania Morais em 21/12/2009
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