Rumores sobre Anjos - II
Catherina sempre fora uma mulher forte, de corpo bem talhado e braços bons para o trabalho. E nem o suor das tardes de labor sob o sol lhe tiravam a delicadeza dos traços do rosto, e muito menos a beleza dos olhos azuis. Mas até mesmo as mais fortes das mulheres sucumbem quando as provações da vida se mostram injustas e insuperáveis.
O que havia feito ela para merecer tantas desgraças?
Três gestações, três meninas. Seu marido, revoltado e humilhado –pois camponeses também possuem honra, acreditem- passou então a tomá-la violentamente a cada noite, na esperança de que a força empregada em seu ato se transformasse em masculinidade e fosse transferida ao ventre daquela mulher.
Aparentemente funcionou, e depois de algum tempo nasceu um menino.
A felicidade daquela família seria enorme, se não fosse pela saúde aparentemente tão fraca daquele bebê. Nascera pequeno demais, prematuro e com o cordão umbilical enrolado no pescoço. A mulher que ajudou no parto foi rápida em seu veredicto: Não duraria nem cinco dias, o coitadinho.
Mas o pequeno Miguel sobreviveu graças a um legítimo milagre, pois a mãe muito havia orado e pedido aos anjos pela vinda daquele menino.
O pai estava apenas relativamente satisfeito. Como aquele garoto tão pequeno conseguiria ajudar nas plantações?
“Ah, ele vai crescer e ficar forte.” –Diziam-lhe, querendo acalmar-lhe.
Mas Miguel não crescia quase nada, nem em corpo, nem em mente.
Aprendera a falar apenas com seis anos, a mesma idade em que finalmente conseguiu andar sem ajuda. E quando tudo parecia finalmente estar caminhando de maneira correta, nota-se a desgraça definitiva: aquele menino não era normal.
Miguel vivia encarando o vazio e falando com seres que não estavam lá. Dizia que eles eram belos, brancos, brilhantes e tinham asas. Imaginação de criança, pensou-se a princípio. Mas logo o conformismo foi substituído pela preocupação: mesmo com doze anos, o garoto continuava com a mentalidade de uma criança, repleto de inocência. E para piorar, continuava a se comunicar com o nada.
“Demônios!” –Gritava Catherina desesperada, toda vez que flagrava o filho em sua loucura. –“Demônios perseguem meu filho!”
O pai daquela família não mais suportou tanta vergonha, e numa noite sem lua, simplesmente sumiu, deixando a mulher, as três filhas e o menino alucinado.
E como era de se esperar, Catherine, a coitada, não resistiu. Em meio a um desespero sem fim, sua mente adoeceu, assim como a de seu filho. Se ela não chegou a cometer o mais imperdoável dos crimes, foi apenas porque seu irmão, apiedado, mandou um de seus cinco filhos varões para ajudá-la na colheita.
Agostino era o nome daquele rapaz robusto, que com seus quase dois metros de altura, e com os braços que conseguiam carregar duas vezes o próprio peso, salvou aquela família desgraçada. Sozinho ele fazia o serviço de três homens, e garantiu assim a comida para sua tia e para seus primos, além dos tributos que deveriam ser pagos ao senhor daquele feudo.
Mas apenas aquilo não resolvia todos os problemas de Catherine. Os boatos não demoraram nada a surgir. Seu único filho virara, de acordo com o povo, um legítimo filho do diabo. E como os boatos eram tão fortes, e como aquela mulher estava tão perturbada, ela se esqueceu de todas as promessas que havia feito a todos os anjos, e começou então a acreditar no que as pessoas diziam.
Criou pelo filho um repúdio sem tamanho, evitando-o como podia, sempre negando-lhe colo, carinho e comida. Se Miguel não morrera, fora apenas pela piedade das irmãs, que sempre que podiam, davam-lhe comida escondidas.
Mas o fato era que, apesar de todos os pesares, Catherine era mãe, e como mãe, no fundo ainda amava seu filho. Amava-o tanto que provavelmente não descansaria até expulsar os demônios que o atormentavam. E por isso, em seus momentos mais lúcidos, ela o chamava para seu colo, com aquele sorriso gentil que apenas as mães conseguem mostrar. Com sua voz doce ela lhe oferecia comida e colo. E com suas mãos fortes, ela então o espancava.
“Anjos?!” –Gritava ensandecida, e então desferia mais tapas e pontapés no filho, na vã esperança de que aquelas surras expulsassem da pele do seu pequeno todos os diabos que habitavam e roubavam a força daquele corpo tão pequeno.
“Vão embora, demônios!” –Ela prosseguia em seu exorcismo quase diário, enquanto prosseguia também com os espancamentos. -“Voltem para o inferno de onde vieram!”
E como o menino nada fazia senão chorar, ela acabava se dando por vencida, e com uma última pancada, mandava Miguel dormir no cubículo isolado da casa que ele ocupava. Sem jantar, é claro. E enquanto ele seguia, encolhido e tomado pelo soluço da angústia, ela ainda gritava.
“Demônio dos infernos!”
E assim ele ia dormir, chorando, ao som apenas do ronco doloroso do seu estômago.
Há algum tempo suas irmãs haviam parado de lhe dar comida escondidas. Judite, a mais velha, fora como uma verdadeira mãe para Miguel. Enquanto Catherine matava-se de trabalhar na lavoura com o marido, Judite cuidava dele e das duas irmãs mais novas. Era uma moça muito sensível e carinhosa, com bom trato para crianças. Daria uma ótima mãe, não havia dúvidas quanto a isso.
Mas agora ela tinha 26 anos, e ainda estava solteira, apesar de sua beleza e seus préstimos. Uma desgraça, era verdade. Mas uma desgraça compreensível, afinal, quem haveria de querer se casar com a irmã de um demônio?
E cada vez que pensava nisso, o coração da já não tão jovem moça enchia-se de um ódio pesado, sem tamanho e sem forma. Nesses momentos não havia nada que ela desejasse mais do que a morte do irmão que por tanto tempo fora como um verdadeiro filho para si.
E pior era que, graças a isso tudo, nem se sentia culpada por proibir as irmãs de alimentarem Miguel.
O primo, Agostino, era um caso a parte. Um tópico que Miguel sempre evitava, e era bom que ninguém nunca perguntava por quê.
E com uma vida assim tão repleta de desventuras, tão repleta de dor e ódios, não era de se espantar que o único conforto que o menino louco tivesse fosse a igreja e seus amigos anjos.
-Eu queria ser padre... –O menino comentou numa tarde qualquer, enquanto seus olhos inocentes viajavam despreocupados pelo teto da igreja.
Carter sentiu um certo aperto em seu peito. Como explicar àquela criança que ela jamais poderia seguir o sacerdócio? Como se não bastasse a doença de sua cabeça, ainda era camponês... Resolveu poupar o pequeno daqueles detalhes, e deixá-lo sonhar, ao menos.
-Por que queres ser padre? –Perguntou bondoso, passando seus dedos pelos finos fios dourados da cabeça de Miguel. Gostava muito da textura macia daqueles cabelos.
-Porque se eu fosse padre, as pessoas haveriam de acreditar em mim quando eu falasse sobre os anjos...
-Por que tu fazes tanta questão de acreditarem no que falas? Não seria melhor guardar essas palavras apenas para ti?
-Eu já expliquei, Padre Carter... Falar sobre os anjos e sobre Deus é o meu dever... Foi Gabriel que me disse! –Miguel explicava um tanto exaltado, gesticulando sem parar, a fim de fazer-se entender melhor. –Sonho em ser como o Padre, pois o Padre conhece alguns dos tantos caminhos de Deus, e os mostra aos homens da Terra. E isso é maravilhoso. –Terminou sua breve e inocente fala com um sorriso.
-Sim, de fato é, mas é por causa de tuas palavras que estão sempre a te bater, tu sabes.
-Sim... E é por isso também que dizem que eu sou louco... –O garoto completou tristonho. Seus belos orbes azuis pareceram apagar-se um pouco ante aquela constatação. –O Padre também pensa que eu sou louco? Acha que são ilusões os anjos que apenas eu vejo?
-Não, meu pequeno. Não és louco. Apenas enxergas o mundo de uma maneira só tua, que ninguém mais seria capaz de compreender.
-Ninguém além do Padre Carter. –Corrigiu-o, com o rosto mais uma vez iluminado pelo sorriso infantil.
-Acredito que nem eu compreenda, meu pequeno.
-No fundo, compreendes sim... –O rapaz falou com uma serenidade até então desconhecida pelo padre ou por qualquer um que convivesse com ele, tanto que Carter chegou a se espantar, e, aproximando-se mais de Miguel, colocou-se a observá-lo, a fim de ter certeza que era mesmo aquele garoto que sempre buscava por seus braços, chorando como uma criança indefesa.
E olhando para aqueles olhos tão puros, não tinha como ter dúvidas, afinal, aquele garoto era único.
-Miguel, notei que estás mais magro... Estás te alimentando direito.
O pequeno encolheu-se instintivamente, e então desviou o olhar, para depois virar-se e caminhar um pouco para longe, debruçando-se sobre o batente da janela.
-Quando será que vai chover? –perguntou em uma ridícula tentativa de mudar o foco daquela conversa.
-Responda, Miguel.
O mais novo sentiu-se estremecer, e sem olhar para Carter, respondeu com sua voz vacilante.
-Olha para meus braços, Padre... Diz se consigo carregar uma enxada? Nem um balde com água, Padre. E como não chove, o trigo não cresce... E como Agostino é quem nós mantém, ele precisa mais da comida do que eu... Foi o que Judite me disse...
-E o que a sua mãe diz?
-Mamãe? Ah, Padre... Não vá dizer que eu lhe disse isso, mas o fato é que minha mãe sim está louca... Ela diz que os anjos são demônios, acreditas? Ela diz que se o padre não me exorciza, ela o fará. Podes acreditar nisso.
Carter ficou algum tempo em choque. Não, não podia acreditar, mesmo sabendo que provavelmente era verdade. Não conseguia sequer imaginar uma mentira saindo dos lábios daquele garoto... Mas o fato era que talvez aquilo fosse fruto da doença daquele rapaz, assim como os anjos...
O padre suspirou, e foi atrás de um pedaço de pão. Havia apenas um em sua despensa, já duro, mas que haveria de servir. Como vivia basicamente das doações feitas pelos camponeses, não tinha como acompanhar tão bem os problemas causados pela falta das chuvas, mas já começava a senti-los.
Entregou o pão para Miguel, que o comeu sem cerimônias, satisfeito.
Por um instante, Carter cogitou a ideia de chamar o pequeno para morar consigo, mas o fato era que já estava sendo difícil mantê-lo durante as tarde na igreja, que dirá cuidar dele.
E vendo-se sem alternativas, assim que o sol começou a se por no horizonte, Carter o mandou para casa, onde suas únicas companhias seriam as surras, a fome, e os anjos de que tanto falava.