Tróia de asfalto
Minha história não se passa em um lugar qualquer, se trata da cidade que nunca dorme e com meu olhar de detetive particular em missão ultra-secreta é preciso confessar que me deparei com um foco de observação muito mais interessante do que o original.
Não há nada de novo no meu trabalho, é lugar-comum buscar infidelidade conjugal nos fins de tarde e o grande bônus de tudo isso é que ao observar de perto o comportamento de uma pessoa inevitavelmente nosso olhar cruzará com o de outras, e numa dessas, ao acaso, encontrei uma figura espetacular no maior estilo herói de HQs.
Ao grampear o telefone de uma suposta infiel , fui conduzido a observar mais atentamente um rapaz chamado Ulisses, atendente de uma ONG conhecida por seu nome popular “Te ouço, logo, te ajudo”, e que salvara a vida da minha “investigada” inúmeras vezes, pois, ela dizia que ia tomar veneno de rato, enfiar uma faca no peito ou tomar vários tipos de calmantes de uma só vez.
Percebi não se tratar de dramalhão mexicano quando certa vez a observava pelos binóculos e ela andava de um lado para o outro com um secador na mão e pela escuta pude ouvir sua conversa com Ulisses, em que dizia que se suicidaria por conta do fracasso no casamento e jogaria o secador ligado dentro da banheira para que morresse eletrocutada deixando uma “agradável” lembrança para seu cônjuge.
Ulisses imediatamente colocou-se a argumentar, disse que ela era uma pessoa muito especial e que era capaz de fazer tudo por ela. Pareceu clichê a princípio, porém havia algo de genuíno naquela voz nervosa de sotaque paulistano.
Estava ali o meu novo desafio, conhecer com acuidade o samaritano que tanto insistia por uma vida de quem sequer conhecia.
Ulisses não era alto nem baixo, tinha uma beleza comum e um andar simples e tímido. Trabalhava na ONG diariamente (incluindo os domingos) por seis horas consecutivas e sempre que saía do trabalho buscava atividades altruístas para seu lazer.
Nas madrugadas era possível vê-lo em viadutos ou portas de igreja levando cobertores, bebida quente e um bate-papo animado.
Os invisíveis moradores de rua, prostitutas do baixo meretrício, travestis da Augusta, velhinhos solitários das praças eram seus grandes escolhidos. Todos contemplados com uma conversa bem-humorada e carregada de esperança.
Quantas vidas nosso heroi já salvara? E por que escolhera essa profissão e o generoso hábito de ajudar pessoas nos seus momentos de folga? Decidi apurar. Comecei a buscar as origens de Ulisses, jovem que em seus trinta anos de idade pouco saíra de São Paulo, no máximo para um feriado no litoral.
Era filho único e seus pais haviam falecido em um horrível acidente na Avenida Marechal Tito em 1997, uma das campeãs em atropelamentos na zona leste.
Desde então, Ulisses tornara-se voluntário no GreenPeace, Cruz Vermelha e na ONG em que trabalhava. Vivia modestamente em pequeno apartamento próprio, tinha dois gatos, um cachorro, plantas e nenhum carro. Não gostava de carros, nem de aviões e menos ainda de motos ou caminhões.
Era um obcecado pela vida e pela simplicidade, jamais compreendia como pessoas que têm irmãos, maridos e filhos podiam atentar contra suas próprias vidas.
Mas Ulisses era só e o grande paradoxo era se vir em meio a multidões quando estava em ação, sentia-se útil e assim fazia amigos, mesmo que em muitas ocasiões sequer desse seu nome verdadeiro, gostava de manter a sua identidade secreta. E seguia “fazendo o bem sem olhar a quem”.
Porém, de todos os seus trabalhos, Ana era seu principal desafio. Ela amava Fernando, o marido incompreensivo e desconfiado, mas não era feliz e sua vontade de morrer não cessava.
Ulisses via naquela mulher a sua salvação, e ele a dela. Dar sentido a vida de Ana era sua nova obsessão, ele a seguia, ligava todos os dias para falar sobre coisas belas, agradáveis e intensas, mas nada adiantava, uma lacuna jamais era preenchida.
Naquela tarde de sábado, ela dissera que se jogaria na linha do metrô, provavelmente na estação Barra Funda, pois ela achava ser menos tumultuada que as demais, e não atrapalharia a vida de tanta gente, ao mesmo tempo em que o remorso no coração do marido provocaria estrago de proporções inimagináveis.
Ele a aconselhou de diversas formas, mas faltava algo, talvez aquela “voz da experiência” tão necessária para gerar verdade naquelas declarações. Ulisses era bom moço, certinho demais para ter a ideia de como descrever situações extremas como saltar de um pára-quedas, viajar sem destino ou viver uma grande paixão. Não se arriscava, tomava cuidado e cuidava dos outros, suas atitudes eram previsíveis, não chegava atrasado, não bebia, não tinha tatuagem, nada de muito espontâneo, nada.
Mas, aquelas palavras de Ana tiveram o efeito de desnorteá-lo e fizeram com que saísse em disparada ao seu encontro. Antecipou-se e chegou à estação bem antes dela, estava em completo estado de alerta até que teve a visão de um anjo renascentista e fixamente prendeu-se em admirá-la. Ana era realmente bonita, extremamente alva e pálida, olhos verdes que se destacavam em olheiras insones, altura mediana e um curvilíneo corpo brasileiro de descendência italiana. O andar trôpego, a pele translúcida e os cabelos esvoaçantes, fizeram com que em um impulso Ulisses a abraçasse fortemente e jogasse seus corpos para dentro do trem rumo à estação Corinthians-Itaquera.
Naquele momento Ana era medo e conforto , sentia-se estranhamente amada e protegida por aquele homem de quem reconhecera a voz. E os acontecimentos daquela tarde de dezembro do ano de 2006 estavam apenas começando...
Naquela atípica tarde houve um apagão geral na cidade de São Paulo e no silencioso vagão paralisado pela falta de eletricidade a explosão aconteceu.
Sinuosas ondas de energia chocavam aqueles corpos, se amaram ali mesmo, louca e intensamente. Entrelaçados constituíram uma única matéria, um só batimento, fio condutor de profunda sinergia e imersão, puro desejo, definitivamente almas gêmeas.
A noção de tempo fora completamente perdida, e o que a substituía era uma nova razão de viver, para ambos.
Fui expectador cativo dessa relação singular e mais tarde pude melhor compreender a conexão daquele improvável casal em dadas circunstâncias.
- Naquele instante eu nascera e o real sentido da minha existência foi concebido em uma miscelanêa de sabores, perfumes e o atrito quente, suave, porém, avassalador daquela pele de veludo- diria Ulisses anos mais tarde em uma carta encontrada por mim em seu apartamento.
Resolvi me aproximar de Ana, já que agora a infidelidade estava consumada e meu trabalho seria levar uma prova ou uma confissão para Fernando, vi que ela sorria discretamente, mas, certamente era uma expressão de felicidade, diferentemente de todas as outras vezes em que eu a vira. Segui-a até o Conjunto Nacional, onde ela parou na famosa livraria da Paulista e folheou admirada um livro de fotos de beijos cinematográficos. Me aproximei e perguntei se Ana era uma apaixonada por cinema, de forma muito sutil para que não parecesse flerte e pudesse assustá-la, ela abriu um grande sorriso e disse que sim, que era uma apaixonada, sibilando entusiasmada.
Pudemos conversar sobre teatro, cinema, melhores livrarias da cidade e Ana não parecia em nada com aquela mulher que eu observava há tanto tempo. Notei que ela se assustou ao olhar o relógio, despediu-se e saiu apressada como quem estivesse atrasada para um encontro.
Sem que me pudesse notar, continuei seguindo aquela moça eufórica pelo principal cartão postal da cidade e fui testemunha de mais um momento certamente inesquecível na vida de Ana.
De repente a cidade era toda em câmera lenta, exatamente como num filme, o semáforo com o piscante amarelo, ressoava sonoramente o barulho ensurdecedor de buzinas, o cheiro de chuva no fim da tarde impregnava, e o grito de dor de Ana que doía em quem pudesse ouvi-la. O maior receio de Ulisses tomava forma e naquela noite quente às vésperas de um ano que nascia, a morte se aproximava daquela história de vida, de triunfo e de paixão.
Um carro em alta velocidade na pista molhada e lisa da Avenida Paulista colidia com o corpo de Ulisses e o lançava a pelos menos 2 metros de altura, encontrando a fúria sofrida no grito de Ana. Ela parou o trânsito e conseguiu alcançá-lo, me aproximei como um anônimo no meio de tantos outros curiosos que se aglomeravam e somente eu e Ana, cúmplices da brevidade daquele relacionamento que se findava com a velocidade em que o sangue jorrava das entranhas de Ulisses.
E pude ouvir: - Jamais faça nada contra a sua vida, minha vida não teve sentido até conhecer você. Eu achava que ajudava pessoas ,mas fui eu quem fui salvo. Morro em paz, feliz por saber o que é desejar algo mais que tudo e amar tão violentamente que fui consumido por tanta energia e felicidade. Ana, você é a razão de tudo isso, e nunca houve no mundo homem mais feliz do que eu, ninguém recebeu mais vitalidade e amor do que eu recebi de você. Acho que vivi para te conhecer .-dizia ele. Não fale assim, não se canse, já chamaram a ambulância, vai dar tudo certo, ficaremos juntos, felizes e vivos para sempre. -sussurrava Ana.
- Me prometa- dizia Ulisses com dificuldade.
- O quê?
- Faça germinar esse amor que eu sei que existe em você, me prometa, Ana.
- Farei isso com você.
-Fará sim, não importa com quem seja, prometa isso e me salvará mais uma vez.
-Sim, farei tudo que me faça ficar próxima a você.
E assim foi.
Ulisses salvara mais uma vida, a que para ele seria a mais importante de todas, pois ao ler o diário daquele rapaz que falecera tão cedo, pude ver que ele era mais que um heroi, era um sobrevivente e o amor dele por Ana era digno de um romance shakeasperiano. Tratei de encaminhar anonimamente aquele diário a uma jovem gestante que certamente faria bom uso daquelas confissões e poderia fortalecer –se não só nos momentos difíceis que ela certamente passaria, mas faria com que a esperança e a vontade de viver fosse diariamente alimentada.